01/09/13

Autoestradas de informação?

Não é a estrada que modela o veículo que nela circula. Obviamente, as autoestradas de informação podem também ser as autoestradas de desinformação. Podem ser, não – são-no de facto, em muitos casos.

Há uns meses, vi de repente invadir o meu newsfeed do Facebook a notícia de que tinham sido proibidos e queimados, na Hungria, os cereais geneticamente modificados. Muita gente se deve ter interrogado e especulado sobre a questão: por que teria sido a Hungria – ou, mais concretamente, o seu atual governo de extrema-direita – a ter uma reação tão violenta contra os OGM? Curioso que sou, e espicaçado, ademais, pelo facto de os links que se iam espalhando pelo newsfeed levarem sempre a páginas de que nunca tinha ouvido falar, fiz o que faço sempre nestas situações: selecionei o título de uma dessas notícias, cliquei do lado direito do rato, escolhi Search Google for... e a pesquisa deu-me centenas de versões da notícia, que podia começar a analisar. Não demorei muito tempo a concluir duas coisas: que a notícia tinha pelo menos dois anos[1] e que não se encontrava em nenhum jornal de referência, ou, pelo menos, num jornal que eu pudesse classificar como “em princípio credível”.

Tenho a certeza de que nenhum dos meus amigos que partilharam a notícia teve o cuidado de fazer o que eu fiz. Porquê? Uns, porque confiaram nas pessoas de quem receberam a notícia; outros, porque se dispõem a aceitar acriticamente como, pelo menos, interessante e merecedor de divulgação todas as ações anti-OGM; e, a grande maioria, porque isso não faz parte das suas rotinas e dos seus hábitos – da sua cultura em sentido lato. Agora, pode considerar-se ligaçoes para este tipo de artigos de jornal – se é que de artigos e de jornal se pode falar – informação?

A histórias dos cereais húngaros é um exemplo apenas, de um sem-número que podia ter escolhido.  “Antigamente”, diz um desses irritantes aforismos apócrifos que correm o Facebook à força de cliques fáceis, “para um boato se espalhar, tínhamos de dar tempo aos barbeiros e aos motoristas de táxi de fazer o seu trabalho; hoje, é muito mais rápido – click & share, temos o Facebook.” Muito pós-modernos na (quase) autorreferência, este aforismo tem, ao contrário da maior parte dos que por aí circulam, realmente visos de verdade…

Agora, no meu newsfeed do Facebook não passa só este tipo de des-informação. Também tenho amigos com uma cultura de rigor informativo, que não publicam ligações para textos sem verificar a sua credibilidade, que não publicam textos apócrifos nem imagens sem referir a autoria, etc. Foi também no newsfeed do Facebook que me apareceu uma ligação para os comentários que Shi Zhou, investigador em Informática, faz a um estudo sobre a evolução do boato nas redes sociais de que é coautor[2].
Uma observação interessante desta pesquisa é que a desigualdade não é reduzida, mas sim intensificada, em redes sociais modernas. A nossa pesquisa sugere que as redes sociais modernas têm de facto aumentado a disparidade entre a qualidade da informação a que os diversos grupos sociais têm acesso. Sabe-se que as pessoas muitas vezes alteram uma mensagem, acidental ou deliberadamente, antes de a transmitir a outros. (…) Nós mostramos que, embora só uma pequena parte da população tenha o hábito de alterar a informação, a maioria da sociedade apenas recebe mensagens repetidamente modificadas. Nem toda a gente, porém, é afetada da mesma maneira. As pessoas com muitas ligações normalmente recebem mensagens mais autênticas que as pessoas com menos ligações. O que é surpreendente é que essa desigualdade não é mitigada, mas antes agravada, em redes sociais, onde as tecnologias modernas permitem a um pequeno número de pessoas adquirir um número de ligações desproporcionalmente grande. Neste caso, os super-relacionados são mais favorecidos, recebendo informação quase genuína muito próxima de sua forma original, ao passo que os solitários, que têm um pequeno grupo de relações nas margens da sociedade, estão irremediavelmente prejudicados por lhes serem sempre transmitidos boatos fortemente distorcidos.
É uma estudozinho e vale o que vale. Não quero, sobretudo que entendam esta citação de Shi Zhou como inserindo-se no espírito, que está longe de ser o meu, de criticar os efeitos do progresso e das tecnologias: “Estão a ver, afinal com a Internet e as redes sociais ainda estamos piores que antes!...” Não é nada disso, mas também é importante, para não cair numa idealização fácil das redes sociais, nunca perder de vista um facto simples para que nos chama a atenção o Daniel Innerarity:
Há muito quem creia que uma nova tecnologia surge no vazio, fora de um contexto social ou económico, mas não é assim. E é por isso que a mesma (nova) tecnologia tem efeitos diferentes em sítios diferentes, ou traz mudanças ”imprevistas” ou ”indesejadas”, em vez das mudanças com que sonháramos[3].
Podemos querer que a Internet e as redes sociais alterem as relações de poder, e podemos fazer algo por isso. Mas não esqueçamos que, à partida, as tecnologias reproduzem sempre as relações de poder existentes. Ou podem até, se a tese de Shi Zhou estiver certa, reforçá-las...
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[1] Não é invulgar começarem a ser difundidas no Facebook notícias antigas, sem que ninguém se dê conta da sua desatualização – e às vezes têm bem mais que dois anos…
[2] Yichao Zhang, Shi Zhou et al. Rumor evolution in social networks. 26 de Abril 2013 University College London (UCL). Podem ler o trabalho aqui, mas algumas partes são muito técnicas.
[3] Daniel Innerarity é professor de filosofia da Universidade de Saragoça e investigador, e as suas ideias são-nos apresentadas por Ismael Peña-López em http://ictlogy.net/20120125-daniel-innerarity-politics-in-the-era-of-networks/, a partir das notas que tirou na conferência Politics in the era of Networks, realizada em Barcelona em Janeiro de 2012.

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