14/09/13

A tradição nunca foi o que é

Já li várias entrevistas ao músico zimbabueano* Oliver Mtukudzi em que ele diz que, quando começou a usar instrumentos tradicionais nos seus álbuns, ao fim de uns 20 anos de carreira, o seu público reagiu mal. Mtukudzi é tão popular que se pode dizer que o seu público são todos os zimbabueanos. Provavelmente, os europeus imaginam os zimbabueanos a dançar e cantar com música de tambores e mbiras, mas o facto é, para eles, a música do seu ídolo Mtukudzi era e devia ser com guitarras elétricas, não com mbiras. Ao ir buscar instrumentos tradicionais, Mutukudzi estava, podemos dizer assim, a ir contra a tradição.

Lembro-me de discussões acesas: a música dos ranchos folclóricos portugueses, pelo menos na forma que lhes conhecemos hoje, pode considerar-se música tradicional? Então se os ranchos contribuíram, precisamente, para destruir a “verdadeira música tradicional”… Tradicional, tradicional… Tradicional de verdade e falso tradicional. O que é isso, tradicional? A verdade é que ninguém sabe bem o que é. Quantos anos é preciso uma coisa existir para se tornar tradicional? Ou há critérios mais importantes que o tempo para definir o que é – ou deve ser – tradição?

Isto de tradições tem, sem dúvida, muito que se lhe diga. Quando, em meados da década de 90, Duncan Brooker viajava pelos países da SADCC à procura de pérolas esquecidas do afro-funk africano dos anos 60 e 70 (algumas das quais havia de relançar mais tarde na Europa), as pessoas achavam estranho ele interessar-se por aquelas velharias: “isto é música velha, amigo. Porque é que você se interessa por isto? Isto não presta. Nós ouvimos Snoop Doggy Dogg.” Se o vendedor de discos recusava o velho afro-funk (que, já agora, não é nem mais nem menos tradicional que a pop africana, que nasceu nos anos 60 em Lagos ou Kinshasa inspirando-se de música latino-americana e que hoje se vende como sendo de inspiração… tradicional), não era por não ser “africano” ou “tradicional” ; era por não ser moderno! E como ele muitos africanos.

Tradição, tradição… Há que pensar na tradição de forma menos tradicional, se se pode dizer assim, como no-lo recorda Rita Dantas, num texto do seu muito aconselhável blogue Boas intenções (sublinho eu):
Há um texto muito interessante do Giddens que li há muitos anos onde ele desmontava uma grande parte das tradições ocidentais como invenções recentes (os kilts e os tartans escoceses por exemplo são filhos da revolução industrial) para dizer que isto não tem nada de extraordinário nem lhes retira legitimidade, apenas demonstra a forma como a maioria das tradições são criadas e como curiosamente são, tal como o próprio conceito de tradição, um produto da modernidade. Para lidar com o novo, inventamos o tradicional.
Procurei o texto de Giddens e encontrei este Runaway World, que reúne cinco palestras de Abril de 99 em diversos locais. Creio que é este o texto que Rita Dantas refere. Tem, pelo menos, o mesmíssimo teor. E quero acrescentar uma pequena passagem de Giddens que dá ênfase a esta ideia essencial de que a modernidade inventou a tradição para lidar com o novo (traduzo eu):
O termo «tradição», como é usado hoje, é na realidade um produto dos últimos 200 anos na Europa. (…) Na Idade Média, não havia uma noção genérica de tradição. Não era precisa tal palavra, precisamente porque a tradição e o costume estavam em todo o lado.
O Museu de Etnologia de Nampula tem coisas interessantes. Quero dizer, pelo menos tinha, já não vou lá há alguns anos. E uma das coisas interessantes que tinha era, precisamente, ter expostos muitos objetos – cestos, capulanas, pilões, colheres de pau, panelas de barro, etc., etc. – se encontram à venda em qualquer mercado da zona e existem em casa de toda a gente. Tradicionais é, pois, capaz de não ser a melhor palavra para os descrever…

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* Explico noutro texto da Travessa porque prefiro zimbabueano a zimbabuense. 

1 comentário:

Rita Maria disse...

Obrigada por encontrar o texto original!
(e pela citação, claro)