21/11/23

Um soneto, lúcia-lima, irreconhecimento e recordação

 

Não acham estranho pensar numa pessoa com uma (id)entidade que persiste ao longo do tempo? Não há nenhum eu que nos acompanhe ao longo na vida; nem como personalidade, sequer, quanto mais como mente — eis a conclusão a que chego depois de muito escrutinar a questão. Não só guardamos em nós muito pouco do corpo que vamos tendo, como a mente vai mudando tanto ao longo do tempo que, a dada altura, essa mente estranha o que já foi. A mim, pelo menos, acontece-me muito: quando observo agora coisas ditas, pensadas, feitas por outro momento de mim, não me reconheço nelas. Às vezes, nem as percebo. Penso: «o que quereria eu dizer com aquilo?» ou «que estranha forma de me comportar!». Outras vezes, o que me espanta é antes reencontrar nesse eu de outra época semelhanças com quem estou agora a ser.

Há uns dias, quando estava a limpar uma gaveta da cozinha, encontrei um saco de folhas de lúcia-lima do nosso quintal, que a minha mulher me propôs que deitasse fora, porque estavam ali há muito tempo e ninguém lhes tocava. A verdade é que nem sabia que tínhamos ali lúcia-lima. Fiz um chazinho e pus o saco no meu escritório, ao lado do computador, para não me esquecer de a ir bebendo. O odor e o sabor da lúcia-lima trouxeram-me à memória o quintal da casa na Rinchoa onde vivi consecutivamente dos seis aos dezassete e depois, a espaços, até aos vinte e quatro; e, reminiscência puxa reminiscência, lembraram-me um soneto que tinha escrito em que descrevia o quintal e falava das suas verbenas — as lúcia-limas*. Fui à procura dele. É de 15 de setembro de 1986 e está dedicado a Roberto de Mesquita. Lembro-me de que, nessa altura, tinha descoberto Roberto de Mesquita e tinha gostado muito da sua poesia. Mais de que um poema dedicado a Roberto de Mesquita, o soneto é, acho eu, um poema à maneira de Roberto de Mesquita. Resolvi corrigir-lhe a métrica, que estava torta e o resultado é este:

Pendem já maduros os cachos de uva 
Da latada, no carreiro do quintal 
Cujo saibro acarinha, suave, a chuva 
Temporã, morna morrinha estival. 

Lá do fundo do céu, ameaçadoras, 
Vêm nuvens negras de tempestade. 
Lentas como elas desfilam as horas. 
Esvai‑se do dia a turva claridade. 

O vento da tarde açoita as verbenas. 
É por certo dele esta voz sofrida 
Que vem não sei de onde e que me diz: 

«Para quê alegrias? P’ra quê penas? 
Vive‑se p’ra morrer no fim da vida 
E não p’ra ser feliz ou infeliz…»

Passados 37 anos, vivo uns 16° mais a norte e 20° mais a leste. Troense tem algumas coisas em comum com a Rinchoa da minha infância, porém, e tenho um quintal mais ou menos com o mesmo tamanho que o quintal da casa onde cresci. Não tenho oliveiras, nem limoeiros, nem laranjeiras, nem pereiras, nem ameixeiras, mas tenho maçãs, abrunhos e morangos, como tinha na Rinchoa — e uvas morangueiras, que, por causa da diferença de latitude, amadurecem umas duas ou três semanas mais tarde que as do soneto.

Voltemos à questão da impermanência do eu. O autor deste soneto é um momento tão distante de mim que, se não soubesse que tinha sido eu a escrevê-lo, nunca o reconheceria como sendo meu. «Eu não escrevo assim», pensaria. Mas não porque não reconheça a paisagem como minha, notem, ou porque não concorde, se se pode dizer assim, com o bombástico remate. (Dito assim, parece mais que estou a falar de um ensaio que de um soneto, mas acho que percebem o que quero dizer.) Podia, aliás, escrever hoje a mesma coisa, em verso ou não: não é para se ser feliz que se aqui se anda e é absurdo nortear-nos pela procura da felicidade.

Passemos agora daquilo em que não me reconheço àquilo que recordo de mim, que é uma coisa diferente. Tomemos o terceto final. Se escrevesse hoje alguma coisa com o mesmo significado, quereria dela outro sentido. Quando leio esses versos neste soneto, lembro-me do que pensei muito tempo e sei que é da apologia da abolição das emoções que se trata. Foi uma obsessão minha durante muitos anos. Mais budismo que estoicismo, mas um budismo sui generis e confuso. Achava que alegria e tristeza eram ambas produto de uma mesma coisa, do maior de todos os males, a mente — um emaranhado de juízos e sentimentos, uma projeção constante de mim em tudo o que conhecia, que me impedia de ver as coisas como elas de facto eram. Agora, há muito que deixei de querer livrar-me de emoções e julgamento. Constato simplesmente que toda a vida, seja ela qual for, seja consciente ou não, não existe para nada específico, não tem telos, finalidade, propósito nenhum: é um dado biológico apenas, uma sucessão simples de reações físico-químicas, sem mais. A vida tem obviamente um único sentido, na aceção de direção — vai do princípio para o fim. Tudo o mais é a gente a dizer coisas.





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* A lúcia-lima não é atualmente incluída no género Verbena (é do género Aloysia, espécie citriodora), mas é da família das Verbenaceae. Creio que, quando escrevi o soneto, estava mesmo convencido de que era uma Verbena, até porque era muitas vezes assim referida (como Verbena triphylla ou Verbena citriodora). É uma planta maravilhosa.

2 comentários:

jj.amarante disse...

Gostei de ler este post, nunca fui à Rinchoa, agora dei uma vista de olhos via GoogleMaps, ainda tem algumas vivendas e um ambiente mais desarrumado do que Troense a que dei também uma vista de olhos via GoogleMaps.

Fiquei surpreendido há muitos anos quando comecei a ver cadernos escritos por mim em que não me lembrava de quase nada ou mesmo nada. Referi isso neste post https://imagenscomtexto.blogspot.com/2009/03/o-cubo-de-rubik-e-identidade.html. Falei do Budismo neste: https://imagenscomtexto.blogspot.com/2018/12/o-budismo-tem-razao.html

Embora o Eu seja fluido e o passado não determine o futuro, conhecer o passado de alguém ajuda a prever comportamentos mais prováveis dessa pessoa no futuro, o que poderá ter interesse.

Pareceu-me que na ilha de Troense os terrenos urbanizados e os terrenos agrícolas deixaram muito pouco espaço para eventuais espécies dinamarquesas parecidas quer à rã-de-focinho-pontiagudo (Discoglossus galganoi) quer à lagartixa de Carbonell (Podarcis carbonelli), espécies que foram perturbadas, quiçá eliminadas, durante a construção dum edifício da empresa Start Campus sobre uma charca mediterrânica, que até promovera um estudo de impacte ambiental (https://www.google.pt/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwiBnYmN-NeCAxVHAfsDHQUUCQ8QFnoECA4QAQ&url=https%3A%2F%2Fsiaia.apambiente.pt%2FAIADOC%2FAIA3633%2F22045_datacentersines4_0_eia_r1_novo2023523145011.pdf&usg=AOvVaw1k5LPdxdV2k2r94ec39fZr&opi=89978449) para a construção dum Centro de Dados no polígono alegadamente industrial de Sines. O papel de alegados facilitadores nesse imbróglio de contrapartidas ambientais está na origem da queda do governo de Portugal.
Resumindo, como em tudo qualquer boa intenção, como por exemplo a de não causar danos ao ambiente, pode levar a exageros inaceitáveis e a consequências de vulto.

V. M. Lucas Lindegaard disse...

Caro José Júlio,

Troense não é uma ilha, é uma aldeia. A ilha onde está situada Troense chama-se Tåsinge. Tåsinge tem cerca de 70 km2 e cerca de 6200 habitantes, dos quais cerca de 1300 vivem em Troense e cerca de 2400 em Vindeby, que é a aldeia vizinha e a maior povoação da ilha. O resto da ilha é pouco povoado e há muita fauna bravia, mas não sei nada de rãs nem de lagartixas, só vejo corços e gamos (frequentemente também aqui no quintal), lebres e ouriços, e muitas aves, marítimas e não só. Sei que há um ninho de águia-rabalva (Haliaeetus albicilla), mas nunca o vi. Há faisões por todo o lado (também frequentemente aqui no quintal). Já viu fotos de Troense no blogue, aqui: https://tinyurl.com/288wrjnd e aqui: https://tinyurl.com/mrybk3my