[Houve uma altura em que me dediquei a escrever “redacções”, que era o nome que eu dava a textos em que ia anotando tudo o que me vinha à cabeça sobre um tema qualquer, como, por exemplo, “As árvores” ou “As canetas”. No outro dia, fui dar com essas redacções algures num sótão do meu computador, reli-as, achei que esta ficava bem aqui no blogue e colei-lhe só uns quantos links antes de a pespegar aqui. Como, quando escrevi o texto, não lhe fiz as devidas notas de rodapé (acho que por ser uma “redacção”...), não sei onde fui buscar alguma da informação que ele inclui e de que não posso agora, portanto, assegurar o rigor. Mas, se me conheço bem, devo ter verificado tudo na altura…]
Os sapatos
Os sapatos, como todos os objectos, têm histórias maravilhosas que me fazem sonhar. Mais do que apenas novelas, verdadeiros romances, recheados de complicados enredos secundários.
Tomemos quaisquer sapatos, por exemplo os que trago calçados. São sapatos estupidamente clássicos, desses que em Portugal são normalmente conhecidos por
mocassin (pronunciado à francesa, mòcassã), por muito que o meu dicionário registe antes
mocassim: “calçado de pele usado pelos índios da América do Norte, sem tacão e com a sola revirada dos lados e à frente, para melhor protecção do pé; qualquer sapato desportivo que se assemelhe a este calçado”.
(O filho de uma amiga minha, nascido e criado os primeiros anos da sua vida nos Países Baixos, chamava-lhes “sapatos à turco”. É que os neerlandeses, como os outros povos da Europa do Norte, usam sapatos de atacadores, e ele só conhecia dos turcos sapatos assim. Então, quando veio para Portugal, achou curioso ver o tio dele com sapatos daqueles: “Olha, o tio Zé tem sapatos à turco!” Mas era porque ele não conhecia ainda o gosto, pelo menos o mais conservador, dos países latinos da Europa e da América. Mas então, eu, que nunca me quis nem conservador nem latino, é isso que os meus sapatos mostram que sou? Pois seja!, aceito... Com algumas reticências, como mostram claramente os três pontinhos, mas que remédio tenho senão aceitar?)
Uma das histórias maravilhosas que entram na história de qualquer objecto é a da sua designação. Por que é que se chamam
sapatos os sapatos, de onde lhes vem o nome? E os
mocassins, onde foram buscar tão estranha designação? Bom, a etimologia de
sapato, ao contrário da etimologia de
mocassin, está longe de ser pacífica.
Mocassin vem das línguas dos índios americanos, porque foram eles a apresentar aos europeus esse tipo de calçado. Há quem queira especificar que é de uma língua determinada (algonquino, por exemplo), mas é arriscado, porque parece que, entre
mokasin e
makisin, várias línguas tinham designações semelhantes.
Agora,
sapato é mais complicado. Se se seguir a opinião da maioria, a palavra portuguesa
sapato vem da espanhola
zapato, introduzida por alturas do Renascimento, que por sua vez vem do turco (
zabata ou
chabata, conforme os dicionários), provavelmente através do árabe
sabbat. Mas há quem diga que a palavra portuguesa vem directamente do árabe, e há quem defenda a origem eslava da palavra espanhola. Enfim, origem debatida, se não mesmo polémica.
A questão é que não é fácil saber o que é que vem de quê, quando há tantas palavras semelhantes (todas elas para designar tipos de calçado, embora nem sempre o mesmo) em idiomas tão distintos como o português, o occitano, o francês, o italiano, o basco, o árabe vulgar, várias línguas eslavas e inclusivamente o tártaro e o persa – a lista é do
Coromines, que é uma das autoridades nestas matérias de etimologia. É isso mesmo: o nosso
sapato pertence a uma grande família etimológica, com primos direitos uns a residir aqui perto, como o italiano
ciabatta (“sapatilha”), o francês
savate (“sapato velho”), e outros a residir bem longe, como o indonésio
sepatu (“sapato”), que foi levado para aquelas paragens, juntamente com o objecto que designa, pelos portugueses ou pelos espanhóis; e talvez até mesmo primos afastados, como
sabot (“soca”, originalmente em francês, mas naturalizado também inglês), pelo menos se for verdade a tese que diz que a palavra, surgida no século XV, vem de uma contracção de
savate (que naquela altura era “sapato” só, sem aludir ao seu estado de deterioração) e
bot (uma forma antiga de
botte, “bota”). É claro, os
mocassins pertencem também seguramente a uma família etimológica, mas essa nunca me foi apresentada.
Mocassin é um hipónimo de sapato, que é então, por sua vez, um hiperónimo de
mocassin, e o que estes tão estranhos palavrões querem dizer é apenas que os mocassins são um dos muitos tipos de sapatos que há. Para os que acham graça a este tipo de coisas, adianto que o fazer-se parte de um grupo “natural”, como os mocassins fazem parte dos sapatos, tem algumas implicações óbvias, que toda a gente sabe mas que só os lógicos perderam tempo a analisar e a formalizar. Por exemplo: Todos os mocassins são sapatos, mas nem todos os sapatos são mocassins. Pronto. Por isso, posso dizer: “Estavam lá muitos sapatos, mas não vi lá nenhuns mocassins”, mas não posso dizer, obviamente, (quer dizer, posso, mas hão-de pensar que eu não bato bem…) “Estavam lá muitos mocassins, mas não vi lá nenhuns sapatos”. Mas é uma relação de hiperonímia estranha, esta que há entre sapatos e mocassins, muito diferente daquelas mais clássicas como a que existe entre animal e cão. Se eu disser ou escrever “o cão entrou na sala; o animal vinha esfomeado”, ninguém hesita em compreender que o animal é o cão. Já se eu disser ao contrário, é esquisito, não é?: “o animal entrou na sala; o cão vinha esfomeado.” Mas tratando-se de sapatos, é tudo mais estranho ainda. Se “deixou os sapatos debaixo da cama; os mocassins estavam enlameados” é, como se previa, uma frase esquisita, já “deixou os mocassins debaixo da cama; os sapatos estavam enlameados” não é menos esquisito, e isso é que é esquisito…
Desisto disto e resumo para avançar: Além de fazerem parte de famílias etimológicas, tanto mocassim como sapato fazem parte de outras famílias, das quais acabo de referir a do calçado, no caso dos sapatos, e a dos sapatos, no caso dos mocassins. E como os mocassins são um dos muitos tipos de sapatos que há, são forçosamente uma variedade de calçado. Até aqui, acho que o consenso ainda vai alargado, porque o que cabe no menos cabe no mais, como diz o dito. A partir daqui, as coisas complicam-se: os sapatos, mocassins incluídos, estão incluídos no vestuário? Pelo menos em português, as duas palavras,
calçado e
vestuário, “o que se veste” e “o que se calça”, parecem referir grupos de objectos completamente distintos. Conjuntos sem intersecção: há alguma coisa que se possa vestir e calçar ao mesmo tempo? Parece que não. Mas já o meu dicionário, como os dicionários costumam, discorda desse comum senso que é o dos falantes apenas nativos e inclui o calçado no vestuário e calçar no vestir: “
calçado: peça de vestuário para cobrir exteriormente os pés”; “
calçar: revestir pés, pernas ou mãos com o vestuário que lhes compete”. Aceita-se ou rejeita se? E aceitando ou rejeitando – dá igual… –, terá isto tudo alguma lógica?
Se pusermos temporariamente de lado a nossa lusa classificação, podemos constatar que, por exemplo, em espanhol (
¡ponte los zapatos rojos y baila la jota!), em francês (
mets tes chaussures rouges et danse la java !) ou em inglês (
put on your red shoes and dance the blues!) os sapatos como a roupa se “põem”, que é uma coisa que em português só se faz aos chapéus… ou às perucas.
Além disso, em português, como em espanhol ou francês, calçam-se luvas. E será que isso faz delas calçado? Nada! Mas peças de vestuário, serão? Não nos soa. Pobres luvas, feitas assim órfãs por estas línguas ingratas. Ainda por cima, sem poderem sequer ser hiperónimos seja lá do que for, porque todos os tipos de luvas são sempre… luvas: luvas de pele, luvas de borracha, luvas de boxe, eu sei lá que mais… Já em francês, por exemplo, as luvas podem ser
gants ou
moufles ou
mitaines, conforme tenham todos os dedos e os dedos inteiros, ou só o polegar separado e um saco para o resto da mão, ou os dedos cortados a meio (eu sei que há mitenes no dicionário português, mas deve ser palavra de um falar diferente do meu, porque nunca a ouvi…). Se perguntarmos aos franceses, porém, qual é o nome genérico dos objectos que calçamos nas mãos, eles dizem-nos que são
gants, pelo que tanto
gants como
moufles como
mitaines são tipos de
gant. E é exactamente o mesmo em inglês com
glove e
mitten: parece que um dos termos é hipónimo de si próprio, pelo que é grande a confusão. E eu, que me tinha proposto falar de sapatos, acho que já estou a meter os pés pelas mãos…
Mas as línguas são assim, como se sabe: traiçoeiras. E se deitarmos fora as línguas todas e nos pusermos a pensar sem essas designações prontas-a-vestir que a língua traz, podemos ir até mais longe do que o meu dicionário e dizer que calçado e vestuário é tudo uma mesma coisa, o que nos serve para nos cobrirmos, ponto, embora o português seja tão insistente na distinção que nu é “o que não está vestido” e descalço “o que não está calçado”, ao passo que outras línguas referem os pés descobertos exactamente como os braços descobertos, por
desnudo,
nu,
naked ou
bare. E este
bare do dinamarquês é ainda mais curioso, porque designa tudo o que não está coberto, excepto se for uma pessoa inteira, que, sem roupa, o que está é
nøgen, e não
bare. E a verdade, já agora, que às vezes é nua e crua? Posso propor uma verdade descalça e crua, ou não vos cheira?
Voltando aos sapatos, e por falar em cheiros, o meu dicionário diz que chulé é o “mau cheiro dos pés”, mas poderia, com a mesma propriedade, dizer que é o mau cheiro dos sapatos, porque, nisto de maus cheiros, é difícil saber onde é que acaba o pé e começa o sapato. Tive já sapatos que me faziam cheirar mal dos pés, e que cheiravam mal eles próprios, e outros que não. Mas vá lá uma pessoa saber se é o pé que conspurca o sapato ou o sapato que conspurca o pé. Nunca me lembro de ter cheirado mal dos pés andando descalço, de chinelas, ou de sandálias bem abertas. E abandono esta excursão, que começa já a tresandar, e passo atèquenfim à história destes sapatos que trago calçados, cuja marca aqui omito para não lhe fazer publicidade, mas de que posso esclarecer que são toscanos na origem.
O que estes sapatos já viajaram, Deus meu! Senão, vejam: Primeiro, viajaram couro e sola até à fábrica, vindos sabe-se lá de onde. Depois de umas quantas passeatas por máquinas e mãos de artesãos, viajaram os sapatos que agora já o eram até algum grande armazém onde ficaram a aguardar uma sorte que não sabiam imaginar, porque a perspectiva de um sapato, nesta situação, não vai nunca muito além da sua caixa de cartão. Mas, passadas semanas, ou talvez meses, quem sabe?, começou a sua aventura maior, comparável à de tantos humanos seus compatriotas que deixaram Itália para se fixar em qualquer outro lado do mundo. Foram provavelmente de camião até um porto ou um aeroporto, e depois de barco ou de avião até à Dinamarca, que era o destino que, sem eles sonharem, lhes estava há muito fixado. Ou então foi sempre por estrada que continuaram até lá, também pode ser. É provável que tenham passado mais algum tempo nalgum sombrio armazém, quem sabe se a tiritar de frio e desesperançados do seu futuro, até os levarem à loja onde seriam depois vendidos.
Deve ter sido uma loja em Frederiksberg ou na própria Copenhaga, onde os deve ter comprado um homem já não muito jovem e de gosto conservador como eu. Sabe-se lá agora o que os sapatos terão viajado nos pés desse senhor. Talvez até Espanha ou à Grécia de férias, se calhar até Paris ou Berlim. Se calhar, o dono levou-os até de volta à sua Itália natal, onde eles pisaram pela primeira vez o solo pátrio. Depois, o senhor deve ter-se fartado deles e deu-os à Cruz Vermelha dinamarquesa, que os pôs à venda na sua loja de roupa e calçado em segunda mão em Frederiksberg, onde eu os comprei por 100 coroas apenas, ainda em muito bom estado.
Comigo, fizeram, além de viagens pequenas casa-trabalho-e-volta que eu nunca percebi se lhes agradavam ou não, uma viagem grande de Copenhaga a Maputo, que devem ter achado demasiado cansativa para a idade que tinham: no segundo dia em Maputo abriram-se e ficaram a descansar no quarto de hotel, acho eu que sem saberem o que perdiam, porque eu passeei muito por Maputo e Maputo é daquelas cidades onde dá gosto passear. Foram em seguida de Maputo a Nampula dentro da minha mala, porque eu não me quis desfazer deles, talvez os conseguisse ainda arranjar. E então, quando cheguei a Nampula, pu-los a consertar num oficina de sapateiro de uma associação de deficientes que por lá encontrei e eles vieram do conserto muito deficientemente arranjados, porque sola não havia em Nampula, ou pelo menos aqueles sapateiros diziam que não, e substituíram-lhes a sola por borracha de má qualidade, mas enfim, tão mal também não estava que não se pudessem usar, e então, como já disse, são esses sapatos que trago neste momento calçados…
Pois é, eu cá… os meus sapatos…andaram p’los prados, pisaram a lua, dormiram em casa das fadas e fizeram dançar umas quantas,
como cantava Félix Leclerc. Além de tudo o mais para que possam servir – matar baratas ou dar pontapés numa bola, por exemplo –, uma função importante dos sapatos é aquilo a que poderíamos chamar a sua função musical: dançar… e serem cantados! Já introduzi lá atrás, muito ao de leve (com sapatos vermelhos, lembram-se?), o tema dos sapatos como motivo de canção. Ou o calçado em geral, seja. É, curiosamente, um motivo muito mais frequente do que se possa pensar, e há muitos clássicos da canção que falam de calçado, quando nos pomos a pensar um bocado. Além desta canção “Moi, mes souliers” de Félix Leclerc, há “High heeled sneakers” de Jerry Lee Lewis, “Blue suede shoes” e “Pointed Toe Shoes”, de Carl Perkins, “These boots are made for walking”, de Lee Hazlewood, “Boots of Spanish leather” de Bob Dylan, “Les sabots d’Héléne” de Georges Brassens… e dezenas de etecéteras. Os Flaming Groovies têm um E.P. de culto chamado
Sneakers e os Henry Cow têm um álbum
legendário chamado Leg End, só que, a julgar pela capa, o que, nesse caso, está na ponta da perna não é um sapato, e nem sequer um pé, é uma meia de lã, e então, pai natal falhado que sou, parece que já estou a querer enfiar nos sapatos cantigas que lá não cabem, que não entram nesta história nem com calçadeira…
O que entra nesta história sem precisar de calçadeira outra que não seja a própria palavra história é, isso sim, a História dos sapatos. Uma história que nem sequer tem muito que eu lhe diga, e ainda bem, pelo que aqui fica, com o agá grande mais pequeno que eu consigo arranjar:
Ao princípio, as pessoas andavam descalças e só depois é que começaram a calçar-se. E, por muito que se tivessem tornado, nalgumas partes do mundo, parte inalienável do corpo – como a roupa, aliás, que nós somos animais de pele insuficiente –, os sapatos nunca se tornaram (infelizmente?) património genético, de maneira que continuamos a nascer descalços e a calçar-nos só mais tarde... Durante muitos milhares de anos, as pessoas de todo o mundo calçavam-se com coisas simples, e em todos os tempos e lugares o luxo no calçar sempre foi o primeiro e mais óbvio sinal exterior de riqueza.
Há relativamente pouco tempo deu às pessoas sobretudo da Europa para disparatar também no calçado. Foram três os disparates maiores de que as pessoas revestiram, e revestem, as extremidades dos membros inferiores: O primeiro grande disparate foram as
poulaines que apareceram na Europa no século XII, cujas pontas reviradas chegavam a ter 60 cm e até a serem atadas aos joelhos! Outro disparate grande, o segundo, foram os sapatos de biqueira alargada do séc. XVI: nalguns sítios e nalgumas classes, as biqueiras alargaram tanto que a sua largura chegou a ser delimitada por lei! O terceiro e último disparate, quiçá o maior de todos, foram os tacões altos, às vezes até muito altos, inventados no fim do séc. XVI e divulgados sobretudo por Louis XIV e pela sua corte, que, desde então, nunca passaram de moda. Fazem mal, são desconfortáveis, mas enfim, dão altura e fazem sobressair a barriga da perna, o que é que querem que vos diga?
Que de excursões, como diria o outro, com os sapatos a pretexto! É como eu dizia: os sapatos têm histórias como as cerejas, que se enredam umas nas outras e, a propósito de coisa quase nenhuma, podem trazer atrás tudo o que diga respeito seja lá ao que for… Até já me doem os pés de tanto delirar sobre sapatos. Vou descalçar-me e dá-los por terminados.
Foto: Sapatos alemães da segunda metade do séc. XV e primeira metade do séc. XVI, Museu Nacional da Baviera, Munique