Acho que se deve questionar um ideia que muita gente acha inquestionável: a ideia de que os “dotes mentais” são mais louváveis do que os “dotes físicos”. Não acho mal que se minimize o valor do dote físico beleza, mas que o inteligente valha mais do que o forte ou o fisicamente hábil, parece-me, no mínimo discutível. Quanto mais não seja porque inteligência, mesmo que a palavra seja entendida no sentido redutor em que é normalmente usada, o de “inteligência abstracta” (conceito também pouco preciso…), é uma qualidade física como outra qualquer. Como costumava dizer um amigo meu, se somos o único primata que consegue segurar um cigarro entre dois dedos é apenas porque os outros não têm inteligência que chegue para isso… Esquecemo-nos sempre de que é preciso a mesma quantidade de capacidade mental para ser um grande futebolista e para ser um grande matemático; que há uma percentagem extremamente pequena de pessoas com capacidade tanto para ser uma coisa como a outra; que, enfim, se não deixa de haver mérito no desenvolver e cultivar essas capacidades, sem se ter nascido com alguma potencialidade para elas não se consegue provavelmente sair muito da mediania; e que, tirando as pequeníssimas margens do espectro de capacidades onde se situam os hipertalentosos e os hipotalentosos, a esmagadora maioria das pessoas tem basicamente as mesmas capacidades mentais.
E então: Numa grande parte, senão na totalidade, das chamadas sociedades modernas, as capacidades de abstracção lógica ou de cálculo, por exemplo, são mais valorizadas do que as outras capacidades mentais – que nem sequer são assim consideradas –, e, por isso, as pessoas admiram muito a “inteligência” acima da média, que é rara. O pior da valorização da inteligência é que ela traz agarrada um negativo de si, uma depreciação. Acho curioso que muita gente que tão veementemente protesta contra outras formas de discriminação alinhe, sem grande pejo, na discriminação dos “burros”…
Mas é assim. O melhor que se pode ser é “inteligente”, “ter uma grande cabecinha”, E “porque sim” parece ser a justificação implícita – e suficiente. Ora tentemos sair do a priori e ver as coisas de outro ponto de vista. Primeiro, do ponto de vista pré-moral da satisfação de cada um: É-se mais feliz quando se é mais inteligente? Faz mais sentido a vida para quem é capaz de maior abstracção ou tem maior capacidade de resolver problemas? Ah… Pouca gente responderá com um sim redondo… Numa perspectiva moral, então, a outra pergunta que se impõe: É-se melhor para os outros quando se é mais inteligente? Assentemos que, se os outros forem as pesssoas mais próximas, a resposta também não pode ser sim. Acho que temos todos disso evidência sobeja. Agora, se os outros são a humanidade no seu todo, bom, talvez a afirmativa já seja de considerar: Muitas das grandes descobertas, das grandes invenções, muitas das ideias e inovações que beneficiaram a humanidade no seu todo vieram, efectivamente, de pessoas extremamente inteligentes. Nem sempre, porque muitas vezes os grandes pensadores eram apenas pessoas com mais conhecimentos, mas enfim, admitamos que sim, que essa pequena franja dos muito inteligentes contribuiu mais do que o grupo das pessoas normais para o bem-estar de toda a gente. Que cada um dê aos outros o que pode dar, eis a regra moral que faz, para mim, mais sentido; e houve muitos outros além desses muito inteligentes que também deram o mesmo que eles, porque deram o que tinham. Por outro lado, não nos esqueçamos de que foi a mesma inteligência que serviu, muitas vezes, de alicerce aos piores crimes da história. Aliás, é curioso, estou convencido de que as muitas pessoas que consideram a inteligência uma característica intrinsecamente mais meritória do que as outras sabem perfeitamente que essa inteligência que admiram e louvam tanto serve para o bem como para o mal – como a força, o conhecimento, a beleza e a determinação… E também devem saber que para o mundo funcionar bem – ele vai funcionando mais ou menos, mas é possível pô-lo a funcionar melhor do que funciona… – bastam as capacidades físicos e mentais medianas da esmagadora maioria das pessoas.
“Mas, então, se num dia dizes mal do louvor da força, no outro dia do louvor da inteligência – e referindo ainda, de passagem, que a beleza também não merece ser valorizada… –, que raio!, quais são as características das pessoas que merecem elogio, que podem ser tomadas, se não como ideais, pelo menos como mais desejáveis?”
Nenhumas. É nisso, precisamente, que me parece importante insistir.
recado para os Dominique Pelicot que andam por aí à solta
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Na semana em que Dominique Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por
ter repetidamente drogado a sua mulher para a violar e a pôr à disposição
de outro...
Há 2 dias
3 comentários:
Ora aqui está um exemplo prático de como se podem louvar e premiar os valores morais http://news.yahoo.com/s/ap/20090506/ap_on_re_mi_ea/ml_saudi_miss_beautiful_morals_1
Está claro que isto não tem lá muito que ver com inteligência.
Caro Nuno,
Para um moralista duro como eu, o que se pode louvar são só os valores morais e as acções em sentido lato. O que eu quero dizer é que não faz sentido, do ponto de vista moral, louvar nem as características das pessoas, nem as próprias pessoas, nem grupos de pessoas em abstracto.
Se alguém faz alguma coisa que eu acho louvável ou condenável, o que me merece elogio ou repúdio é a acção em si, o ter-se feito o que se fez. É uma armadilha - moral, mental... - fazer da pessoa ou das características "positivas" ou "negativas" que ela tenha o objecto do meu elogio ou da minha crítica. E creio que concordas com o que acabo de dizer, ou não? (Por acaso, estava a pensar fazer um post sobre isto mesmo que acabo de escrever, a ver quando me sai...)
Aqui vai o link comprimido, a ver se funciona.
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