31/05/11

De Chimoio para Svendborg: Encerrados para férias [um post para os amigos]

Não conheço Gaza e conheço pouco Inhambane e Cabo Delgado. Nunca fiz a viagem de comboio de Nampula para Cuamba. Já me disseram que é sinal de que hei-de voltar.
No total, a Karen e eu vivemos aqui 7 anos – o que, se vivermos o que se costuma nas nossas terras, é quase um décimo da nossa vida. Para o Alexander, a Joana e a Siri, esta é, em grande parte, a sua terra, porque viveram mais aqui que noutro sítio qualquer. Havemos todos de ter muitas saudades do planalto de Manica, isso é certo, como já temos de Nampula e, sobretudo, da Alta Zambézia. Havemos todos de ter muitas saudades de Moçambique, seja.   
Saímos de Moçambique no dia 15, mas fico sem internet hoje. O blogue encerra, então, para férias e mudança de instalações, digamos assim. Quando reabrir, deveria, pela lógica, passar a estar incluído no agregador de blogues e sites da Dinamarca, mas duvido que isso exista… E ‘tou com’ò outro que diz: “Agradecemos a vossa continuação”!

Um bicho de muitas cabeças

Vi na semana passada Mother and Child, um filme do realizador colombiano Rodrigo García Barcha. É um filme sobre adopção (acho que se pode reduzir o tema do filme a uma única palavra) e levanta muitas questões interessantes, independentemente do que se achar dele como obra cinematográfica. Provavelmente, aliás, o facto de levantar demasiadas questões é um dos seus pontos menos positivos como obra cinematográfica, mas não me adianto mais na crítica, porque não é minha ideia discutir o filme. Apenas aconselhá-lo, como matéria de reflexão, e usar esta referência para introduzir algumas pequenas considerações sobre a questão da adopção.
Fundamentalmente, o que me parece interessante notar é que, ao filme Mother and Child, como a outras narrativas sobre adopção e à discussão geral sobre esta questão, subjaz uma ideia forte que, mesmo que não se recuse completamente, deve ser repensada e muito matizada: a ideia de que dar para adopção ou adoptar é naturalmente problemático e gerador de conflitos e tensões, porque não é o rumo natural das coisas.
Parece-me indiscutível que é a protecção da criança que deve constituir o cerne da legislação e é verdade que se pode constatar (segundo a informação que recebi durante o curso de adopção que fiz e que já tive oportunidade de ver algumas vezes confirmada depois disso) percentagens mais elevadas de crianças com problemas físicos ou psíquicos entre os adoptados do que entre não adoptados, bem como de crianças vítimas de maus-tratos. No caso dos problemas físicos e psíquicos que não sejam causados pelos pais adoptivos (e estes são muito, muito poucos), porém, é impossível, demonstrar que é a adopção que causa os problemas dos adoptados e nem sequer há melhores razões para valorizar essa hipótese relativamente a outra hipótese que faça derivar a maior percentagem de problemas dos adoptados de circunstâncias pré-adopção*.
Candidatámo-nos a adopção em 2001 e fizemos um curso de adopção em 2002. O curso é obrigatório na Dinamarca e o seu conteúdo parece dar-me razão quando afirmo que adoptar é uma forma tão natural como outra qualquer de ser mãe ou pai, porque se passou o curso todo a falar de questões gerais, que não dizem mais respeito a adoptantes que a pais biológicos. Quando, em Abril de 2003, nos propuseram duas crianças colombianas, tornou-se mais uma vez claro que um dos problemas maiores da adopção são as leis de adopção – ou a sua inexistência, em certos países... Na altura, foi-me difícil conseguir o documento que me era exigido, comprovando que tinha um emprego fixo, porque estava a trabalhar como tradutor e professor em regime de freelance. E até nem ganhava mal a vida. A minha mulher, sim, tinha um emprego fixo com um bom salário, mas, segundo a lei colombiana, o homem é o chefe de família e, por isso, o homem é que tem de ter emprego fixo para adoptar… Escrevi nessa altura um texto que, ligeiramente revisto, vos deixo a seguir:
Só partindo do princípio que adoptar não é uma forma natural de ter um filho se compreende que as leis de adopção, que deveriam apenas assegurar que sejam respeitados os direitos de todas as partes envolvidas no processo de adopção, antes de mais das crianças adoptadas, acabem por exigir dos pais adoptivos condições e acções que nunca são exigidas a quem faz um filho. Ora, na minha opinião, adoptar é uma maneira tão natural como a outra de ser mãe ou pai – ou, se preferirmos ver as coisas do ponto de vista dos filhos, ser adoptado é uma maneira tão natural como qualquer outra de ser filho.
É claro que reproduzir-se é responder a uma pulsão fundíssima, essencial para a preservação da espécie, mas isso não justifica, por si só, que a maternidade e a paternidade biológicas sejam mais naturais ou melhores que a maternidade e a paternidade por adopção. Porque, para a preservação da espécie, não é só necessário que os indivíduos se reproduzam, mas também que haja mecanismos de protecção para que eles se mantenham vivos. E os sentimentos que qualquer criança desprotegida causa num adulto são, precisamente, um desses mecanismos: se vemos que uma criança precisa de comida, abrigo, ou qualquer tipo de ajuda, há em nós uma tendência natural para tratarmos dela, por muito que não a conheçamos de lado nenhum. É verdade que o mesmo acontece relativamente a outros adultos em perigo ou em sofrimento – é a tão celebrada solidariedade da espécie. O apelo mudo à ajuda e à protecção de uma criança indefesa é apenas uma das muitas formas de simpatia para com os seres humanos. Quando se trata de uma criança, porém, parece haver uma diferença de grau – porque o sentimento de solidariedade que desperta num adulto é, em geral, mais intenso que aquele que despertaria um adulto em desgraça – e também uma diferença de tipo – porque uma criança desprotegida não apela apenas a que a socorramos agora, mas também, frequentemente (no caso de a sabermos sem outros adultos a quem pertença, evidentemente), a que tomemos conta dela indefinidamente. Dito de outra maneira, os adultos humanos são mães e pais potenciais de todas as crianças. O que faz todo o sentido, do ponto de vista da preservação da espécie: uma criança sozinha não sobrevive.
A concepção da maternidade e da paternidade que enforma as leis de adopção existentes é uma visão muito restrita destas condições, com base na ideologia da família nuclear moderna, de pais e filhos biológicos, e está longe de ser a concepção dominante em todos os lugares e tempos. Em muitas sociedades, uma criança, qualquer criança, não é criada mais com a mãe do que com outros adultos da família ou da comunidade**. Também o mesmo se passava na Europa até há pouco tempo, por muito que isso hoje nos surpreenda***: era normal que fossem outras pessoas que não os pais a tomar conta das crianças. As crianças das famílias com posses eram criadas com preceptores e amas, muitas vezes num espaço físico diferente daquele em que viviam os seus pais. As crianças das famílias pobres eram muitas vezes distribuídas por casas de parentes (ou mesmo de não-parentes) mais desafogados economicamente.
Mas não era pior assim? Não é melhor para a criança ter uma família como a conhecemos hoje? Não há provas nenhumas disso – os europeus modernos são mais felizes que as pessoas de outros tempos e de outros lugares? É bem possível que as crianças tenham nas sociedades modernas melhores condições para se desenvolverem, mas não se pode fazer derivar isso do facto de viverem num determinado tipo de família. O necessário, diz-nos o bom senso, é que a criança seja fisicamente cuidada e estimada e socializada e isso tem as mesmas possibilidades de acontecer em qualquer sistema familiar.
Mais: a adopção não só não é menos natural, como também só é invulgar se o quisermos, se fizermos com que assim seja. Numa sociedade como a moçambicana, por exemplo, em que adoptar e ser adoptado é perfeitamente normal sem se passar por processo burocrático algum, não só se resolvem assim uma série de problemas práticos (como é o caso da integração social dos milhares de órfãos que a guerra deixou, muitos deles crianças-soldados), como também se esvai completamente o conceito do adoptado como diferente. Adoptar e ser adoptado só é estranho se for uma condição tão rara que um adoptado se sinta um marciano ou se for cultivada essa estranheza, insistindo (como o fazem, implicitamente, os processos de adopção) na tal pretensa pouca naturalidade do adoptar crianças relativamente ao fazer crianças; ou considerando a priori que uma criança adoptada deve ser uma criança com problemas, como eu vi fazer aos meus filhos no jardim-de-infância em Copenhaga. É muito natural que, por ser considerada diferente e potencialmente problemática e tratada, por isso, com atenção especial, uma criança comece a sentir-se efectivamente diferente. E eis um início de um círculo vicioso que eu duvido que seja muito são.
Insisto, para concluir: As leis de adopção devem assentar na defesa dos interesses das partes mais frágeis no processo, as crianças. Uma parte importante dessa defesa é assegurar que sejam adoptadas por pessoas responsáveis, mas essa proposição contém outra proposição fundamental: Uma parte importante dessa defesa é assegurar que sejam adoptadas. Os problemas relacionados com a adopção vêm mais de certas leis de adopção e da maneira como fomos condicionados para encarar a adopção do que do simples e natural acto de adoptar. A discussão das diversas leis de adopção nos diversos países é demasiado complexa para um texto de blogue, mas há, na minha opinião, alguns princípios básicos em que todas deviam assentar: não se poder escolher os filhos adoptivos, não haver períodos à experiência, e reduzir-se a possibilidade de contacto com os pais biológicos (só por vontade expressa dos filhos, quando atingirem a maioridade). Devolver à adopção a sua naturalidade: dar uma família a crianças que a não têm.
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* E isto quer se pressuponha que eles derivam de traumas precoces, segundo as teorias da vinculação ou do apego, quer se defenda antes uma abordagem assente na genética, segundo a qual são os mesmos traços de carácter que levaram os pais às situações problemáticas resultantes no abandono ou negligência dos filhos que resultam nos problemas desses mesmo filhos. Seja qual for a posição relativamente à questão, uma destas duas ou outra qualquer, toda a gente concordará que a criança tem sempre a ganhar em ser adoptada e em ser adoptada o mais cedo possível.
** Quero referir aqui, a propósito, um dito que encontrei no blogue Beijo-de-mulata e que vi noutros lados referido como “provérbio africano”: «Para criar uma criança é preciso uma aldeia inteira.» Venha ela donde vier, a frase descreve uma realidade simples em muitos tempos e lugares.
*** Lembro-me, por exemplo, de como fiquei surpreendido com os dados apresentados em L’Amour en plus, de Elizabeth Badinter, quando o li há muitos anos: em 1780, de 21.000 nascidas em Paris, menos de 1.000 são amamentadas pela mãe e 1.000 são amamentadas por uma ama em casa dos pais. O tema do livro é o amor materno e não a família nuclear, mas tem muitos dados que mostram claramente que a família nuclear como nós a conhecemos é uma instituição recente.

30/05/11

A paciência de um Santos, seguido de três pequenas notas sobre resignar-se, adaptar-se e envelhecer

Svendborg, Dinamarca, Agosto de 2009, férias de Verão, jantar no terraço de uma amiga. Conversa de ocasião de um amigo da amiga, enquanto aquece a grelha para as salsichas. Diz que nunca viveu em África, mas que já lá esteve, que tem amigos que lá viveram.
«Isso de viver em África, onde o ritmo de vida é tão mais lento, deve tornar as pessoas mais pacientes.»
E eu, com toda a sinceridade:
«Pode ser, não sei o que acontece às outras pessoas… Em mim, viver em Moçambique tem tido antes o efeito contrário – perdi a paciência toda…»
Não acredito, sinceramente, no que digo. É o passar dos anos que me faz perder a paciência, não viver em Moçambique. E ainda hei-de ser um velho mesmo rabugento, hão-de ver. Agora, se reajo assim à conversa do amigo da amiga, é porque me arrelia um bocadinho este preconceito primitivista. O ritmo de vida é mais lento? O que eu acho, sinceramente, é que quem assim pensa nunca viu as pessoas a trabalhar nas suas casas e machambas, nunca os viu a andar carregados, a pé ou de bicicleta, por estradas e caminhos… É verdade que se encontram pessoas a dormir a sesta às onze da manhã, mas essas pessoas levantaram-se às 4, para trabalharem o mais que podiam enquanto o calor não as impede de continuar. Conheço muitos moçambicanos que literalmente não param, entre o trabalho, que é muito, os estudos à noite e o mais que é necessário para arredondar o fim do mês, como dizem os franceses. Ritmo lento? Ora…
De que se fala então? Dos empregados de lojas, cafés e repartições públicas? Aí sim, é verdade, o ritmo aqui é muito lento. E em relação a essa lentidão – provavelmente por estar a tornar-me rabugento com a idade, pois… – não ganhei precisamente paciência nenhuma. Eu sei que há quem veja tudo isso como um traço cultural das sociedades menos desenvolvidas. E um traço cultural positivo: ausência de stress, uma bênção das culturas “pré-modernas”. É bem possível que seja um traço cultural, se aceitarmos uma definição de cultura que inclua não só a falta de tradição de trabalho assalariado como também a falta de formação técnico-profissional, os salários de miséria e o autoritarismo e incompetência das chefias, por exemplo. Talvez esta lentidão pareça hoje muito exótica a muitos europeus, que, com um olhar ingénuo, vêm nela a sobrevivência de uma paciência perdida no mundo desenvolvido. A mim, porém, é-me difícil ver o que tal lentidão tem de positivo, sobretudo para os desgraçados que esperam horas e horas nas repartições ou meses e meses por documentos oficiais que nunca mais vêem…
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Nota 1, sobre paciência e resignação: A paciência é uma grande virtude, recordava-me constantemente a minha avó. É verdade, pelo menos no sentido em que é a negação da impaciência – uma atitude de que (suponho que há nisto grande consenso) não resulta nada de muito bom. Muitas vezes, porém, aquilo a que se chama paciência é de facto resignação e a resignação já não é virtude. Talvez não se lhe possa tampouco chamar vício, mas é algo que tem de ser negativamente valorizado quando lhe avaliamos as consequências, porque, bem vistas as coisas, é contribuir para que se perpetue o que há de indesejável no mundo.
Há muitos moçambicanos que não se resignam perante o mau funcionamento dos serviços. Explicam a razão e a lógica dos mesmos, e exigem e barafustam. Agora, claro, há muitos mais que se resignam. Passando do nível das consequências para o das causas, acho que há mais uma coisa importante que é preciso dizer sobre resignação e que explica o facto de ela estar muito espalhada em certas sociedades e em certas camadas populacionais: resignação está directamente relacionada com ausência de poder. Não é determinada por ela e há às vezes pessoas com pouco poder que não se resignam. Mas é da ausência de poder que a resignação deriva mais normalmente e não surpreende que haja mais resignação entre aqueles que não têm, nunca tiveram, poder algum.

Nota 2, sobre adaptação: Está bastante espalhada a ideia de que, vivendo fora da nossa cultura, há que adaptar-se, aceitando que as coisas são como são na cultura em que vivemos. Trata-se, como a entendo, de uma perspectiva puramente estratégica, descartando a ponderação ética. Porque, se o que achamos que está bem ou que está mal muda conforme o lugar onde nos encontramos, é porque não assenta em nada de muito sólido; ou porque temos da moral uma perspectiva, digamos, etimológica (mores significa “costumes” em latim, não é verdade?) e aceitamos que são apenas os costumes que devem reger a nossa ideia de bem e de mal. Ora eu, que não sou maquiavélico, que sou um moralista racional, daqueles que acham que se deve repensar constantemente os princípios que devem reger as nossas acções, não posso aceitar tal posição: no geral, não aceito nem na Dinamarca nem em Moçambique o que não aceito em Portugal.
Se digo no geral, é porque há, ainda assim, diferenças que têm de ser tidas em conta e que podem justificar, nalguns casos, alguma flexibilidade tanto no que se aceita como no que se exige. No caso de Moçambique, por exemplo, há que ver que não se pode dar saltos no desenvolvimento, que o baixo nível de cultura profissional e de formação são obstáculos que levam algum tempo a vencer. Ainda assim, alguém tem de fazer aqui as mesmas exigências que outras pessoas fizeram já noutros lugares para que mudassem lá as coisas que aqui ainda não mudaram. É certo que, em absoluto, Moçambique não é apenas uma versão mais antiga nem da Europa nem de nenhuma outra parte do mundo e que, por isso, nunca as coisas foram noutro sítio exactamente como são aqui. Mas há coisas aqui que também já houve noutros lugares e de lá desapareceram porque as pessoas fizeram alguma coisa para elas desaparecerem. 
O que muitas vezes se considera aqui adaptação de um estrangeiro à vida local é uma evolução imoral e discriminatória: começar a aceitar que estas pessoas são essencialmente diferentes de nós e que, portanto, não se pode ou deve esperar ou exigir delas (diferentes nuances modais, conforme a nossa postura, mais ou menos activa, perante o mundo…) e para elas o mesmo que exigimos das “nossas” pessoas e para as “nossas” pessoas. Esta “adaptação” é também passar a aceitar assimetrias inaceitáveis: que o sistema feudal é uma realidade inelutável e que há que aceitar os privilégios dos privilegiados, sejam eles régulos, administradores ou ministros; que os pobres morrem “naturalmente” em África e que não há nada a fazer contra isso; que haver uns a meter ao bolso o dinheiro do Estado ou dos outros é a maneira normal de “estes países” funcionarem, e por aí adiante. Resignação…

Nota 3, sobre envelhecer: Não é só rabugenta que uma pessoa se torna, ao ir para a idade: é chata também, repetitiva. Já viram que, num texto tão pequeno, repito três vezes (esta é a terceira!) que me estou a tornar rabugento com a idade?

20/05/11

Caminhos de Chuquisaca

Dentro de alguns anos, lembrar-me-ei com certeza do planalto de Manica com as mesmas saudades com que me lembro agora das montanhas da Alta Zambézia ou do planalto andino.
Vivi dois anos em Camargo, na Bolívia (a 50 metros da igreja que se vê na página da Wikipedia sobre esta pequena cidade), e muitas vezes dou comigo perdido em nostálgicos devaneios, a passear mentalmente pelos cerros de Chuquisaca.
As estradas agora já estão muito melhores, ao que consigo perceber, e não encontro no YouTube nenhum vídeo da antiga estrada de Tarija para Potosí, que eu fiz dezenas e dezenas de vezes, sempre cheiínho de medo. Sim, porque a gente habitua-se um bocadinho àquelas estradas, mas nunca se habitua completamente. Mas deixo um vídeo de uma estrada um pouco mais a sul, que dá uma ideia bastante clara do tipo de estrada a que me refiro*.



Agora, o que o vídeo não mostra é a beleza assoberbante da paisagem. O azul (azul!) das montanhas arredondadas – são montanhas velhas, os Andes – até perder de vista lá para os lados da fronteira com a Argentina. E também não mostra as cruzes que há dos lados da estrada, a assinalar acidentes mortais. Uma vez, conheci pessoalmente um sobrevivente de uma dessas frequentes tragédias. Eis um excerto de uma carta que escrevi de Camargo nessa altura:
O mestre pintor que pintou a nossa casa chama‑se Celso. É professor de desenho e trabalhos manuais na escola secundária local e pintor de tudo, desde paredes a cartazes, montras e quadros. Um dia, já não sei a propósito de quê, perguntou‑me se eu era crente. Eu disse‑lhe que não.
«Isso é porque você nunca passou pelo que eu passei», disse ele. Ele coxeia, mas eu não sabia, até essa altura, a razão de ele coxear:
«O autocarro em que eu ia caiu por uma ribanceira. Excesso de velocidade, sabe? Morreu muita gente, foram 100 metros de queda. Mas eu safei‑me. Tinha a perna toda desfeita, mas estava vivo. Nessa altura, já tinha os meus dois filhos e acho que foi isso que me deu mais força. Agora, você vê, coxeio um bocado, mas consigo andar. E isso, ninguém acreditava que fosse possível. Mas foi. Tive de tornar‑me crente e de rezar muito. Crente em tudo: em Deus, na Virgem, na Pachamama...»
Tenho uma descrição da minha primeira viagem nas estradas daquela zona, escrita no Verão de 1999, ainda antes de lá morarmos, quando estávamos a fazer um curso de castelhano em Cochabamba:
Fomos visitar a nossa futura terra. Apanhámos um avião até Tarija e veio um colega da Karen buscar‑nos para nos levar a Camargo. A primeira coisa que vos quero dizer é que decidi que, durante os próximos dois anos, só vou sair de Camargo quando for mesmo imprescindível. E isto não é porque a vilazinha seja assim tão apaixonante que eu não queira mais nada no mundo. É antes porque as estradas que ligam Camargo ao resto do mundo (a Tarija e a Potosí, concretamente) são tão medonhas que eu não aguento. É uma tortura. Sabem que eu tenho pânico das alturas, vertigens, tudo isso. Então agora imaginem dezenas de quilómetros de estrada de montanha de cascalho solto, de quatro metros e às vezes menos de largura, em curvas permanentes, a mais de 90º às vezes, sem nenhuma protecção lateral e ribanceiras a pique de centenas de metros (isto não é exagero!), o carro a derrapar forçosamente um bocadinho de vez em quando, tudo isto com um trânsito que, sem ser intenso, é, ainda assim, razoável, sobretudo de camiões e camionetas de passageiros. Que caem, de vez em quando, como seria de esperar. Na estrada da Camargo para Potosí, por exemplo, no fundo duma ribanceira ainda lá estava a carcaça de um autocarro de passageiros. «Nos dois últimos meses caíram aqui dois nesta zona», explica o Pedro, o tal colega da Karen. «Cerca de vinte e cinco mortos de cada vez». Ou seja, a carga total das camionetas – é claro que, numa queda assim, é mínima – ou nula – a possibilidade de escapar vivo. No dia seguinte, em Potosí, recebemos a notícia de mais um desastre desses: 27 mortos, desta vez. Então, já decidi: de Camargo, só saio quando for mesmo imprescindível…
E conservo também uma descrição da minha última viagem de Tarija para Camargo, dois anos mais tarde (não me lembro já porque foi imprescindível ir a Tarija nessa altura…):
Enquanto espero pelo autocarro em Tarija, sento-me a beber umas cervejas num dos muitos botequins que há em frente ao terminal rodoviário. Vem servir-me, sorridente, uma miudinha dos seus 10 anos. Depois, vem a mãe dela meter conversa comigo: se estava tudo bem, de onde era, para onde ia. É claro, como a maior parte das pessoas aqui, não faz ideia de onde seja Portugal.
«Uh, é longe!...», digo‑lhe eu, «Do outro lado do oceano!»
Quando lhe digo que vivo em Camargo há quase dois anos, fica um bocado preocupada:
«E não lhe faz confusão estar assim longe da sua terra tanto tempo, com outras gentes, outras comidas, outras maneiras de ser?»
«Ah, não, eu estou bem em qualquer lado. Sinto falta dos amigos, mas de resto tanto me faz estar aqui como noutro sítio qualquer...»
«Ah, eu acho que não aguentava. Eu fui uma vez a La Paz e outra a Cochabamba, e só queria voltar a casa o mais depressa possível – as pessoas são estranhas, a comida é estranha, uma pessoa não se sente à vontade...»
E é assim a vida: há quem, como eu, se congratule com a sorte que tem de poder sair do seu mundo e de poder conhecer outras maneiras de viver; mas há muito para quem seja um drama ter de abandonar, nem que por pouco tempo, o seu mundo, o seu cantinho...
Tinha comprado um livrinho com o pomposo título de Bestiário de máscaras – papéis perversos do ciclo psicótico e entretive-me a lê-lo. Era um desses livros que há, publicados em edição de autor ou em pequenas editoras marginais, escritos por jovens literatos que citam escritores malditos e se sentem um deles: “A voz da literatura é um fio de água na terra seca dos discursos do poder. Essa voz imperceptível corrói as máscaras; diz a antipolítica, diz a contra-realidade, diz a periferia e os exilados mentais, diz a memória dos índios, diz os herméticos filósofos hereges e as sociedades secretas que são e foram, diz o variado bestiário da decadência, a misantropia e a loucura”.
As cervejas fizeram-me bem. Tinha, aliás, bebido de propósito para relaxar e foi isso que confessei ao senhor que ia a meu lado, com quem mantive uma animada conversa toda a viagem:
«Bebo sempre umas cervejas antes destas viagens, sabe?, para perder um pouco o medo dos precipícios…»
«Deixe estar que não é só você», respondeu-me ele, «muita gente faz a mesma coisa. Até os condutores dos autocarros…»
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* Este parágrafo foi atualizado a 18 de outubro de 2017. Antes, havia mesmo um vídeo da estrada de Tarija para Potosí, que entretanto foi retirado do YouTube.

09/05/11

Teoria e prática, ciência e técnica, reflexão e acção

Veio-me à memória, no outro dia, uma conversa com um cooperante dinamarquês meu conhecido, em Tete, há muitos anos[1]. Queixava-se ele de que, no trabalho de desenvolvimento, havia que deixar-se de discussões e passar antes à acção. Acho que quando uma pessoa diz uma frase assim, conta, à partida, com todo o apoio do interlocutor. É como quando alguém diz que os políticos só querem é encher-se ou que as pessoas são cada vez mais individualistas ou coisas assim desse género – espera-se, como resposta standard, um enfático assentimento, “não tenha dúvidas, meu amigo, não tenha dúvidas…”, e fica-se normalmente surpreendido, às vezes quase chocado, quando a resposta é, como a minha foi, a expressão de um completo desacordo[2]:

«Penso exactamente o contrário», expliquei eu ao meu conhecido. «O mal do trabalho de desenvolvimento é fazer-se muita coisa sem se pensar muito bem sobre o que se está a fazer ou sobre o que se vai fazer».

Em parte, foi por provocação que lhe respondi assim: não há, de modo algum, excesso de reflexão no trabalho de desenvolvimento, mas há efectivamente um excesso de reformas metodológicas, de elaboração de princípios e políticas, de avaliações e monitorias que nunca vêm a ter nenhuma utilidade… Mas isso é uma conversa muito comprida, que merece um texto específico. Aqui trata-se de várias formas da dicotomia reflexão versus acção e a minha provocação tinha uma base ideológica: é que discordo da tão costumeira desvalorização daquela relativamente a esta.
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A ideia de que a acção vale mais do que a reflexão é uma ideia bastante difundida. E uma variante também muito divulgada dessa ideia é a que valoriza a reflexão para a acção em relação à reflexão para a interpretação apenas. Nas Teses sobre Feuerbach (1845), Marx tem uma frase famosa (tese 11), Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt aber darauf an, sie zu verändern, que tem sido interpretada de diversas maneiras e, se calhar, nalguns casos muito transformada (aqui têm um exemplo de coincidência de interpretação e transformação, smile, smile…), mas que se pode traduzir – e se traduz – desta maneira: Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diversas maneiras; mas o que importa [ou a questão ou o que conta…] é transformá-lo.
Deixo para os estudiosos de Marx a discussão de significado e sentido exactos da 11ª tese sobre Feuerbach. O que eu quero aqui dizer é que, independentemente de qual seja o real sentido da frase de Marx, não me parece correcto afirmar, como se afirma muitas vezes, que o que importa é transformar o mundo. O que importa é compreender o mundo (sempre) e transformar o mundo quando não concordarmos com o seu estado actual. E o filósofo pode, se quiser, ser um homem de acção; pode, mesmo sem ser um homem de acção, contribuir pela sua reflexão para a transformação do mundo; mas o papel do filósofo não é, enquanto filósofo, transformar o mundo, mas sim tentar contribuir para chegar à verdade sobre o mundo – e o que lhe fica ao redor (depende muito, claro está, do que se considere o mundo…).
Nesse aspecto, o filósofo não é, aliás, fundamentalmente diferente do cientista: Para o dizer com a elegância de Tchekhov – ou melhor, de uma sua personagem –­, “cada ciência no mundo deve ter sempre um único passaporte, que é sempre o mesmo e sem o qual ela não faz sentido – deve aspirar à verdade[3]”. Como não é ao filósofo que cabe agir sobre o mundo, também não é ao biólogo nem ao químico nem ao linguista que cabe agir sobre ele. Não cabe ao cientista transformar o mundo e é erradamente que se imputa muitas vezes à ciência acções negativas sobre a realidade. A ciência apenas explica o mundo; dos males que advenham da utilização do conhecimento para intervir no mundo acusem a técnica, não a ciência; mas, quando a utilização do conhecimento teve bons resultados, dêem à técnica apenas uma parte dos louvores, reservando o resto dos elogios para a ciência que produziu esse conhecimento.
Parece-vos que temos aqui parcialidade, não é? Então, quando a técnica faz mal com o conhecimento que a ciência produziu, culpamo-la só a ela; e quando a técnica faz bem com o conhecimento que a ciência produziu, louvamo-la a ela e à ciência que produziu o conhecimento por ela utilizado? Mas não, não há aqui nada de errado, se pressupusermos, como eu pressuponho, que a produção de conhecimento é sempre e só positiva e que o que pode ser positivo ou negativo é a aplicação desse conhecimento[4].
Quanto a transformar o mundo, é dever de todos os que acharem que ele deve ser transformado (todos os não conservadores, portanto) e, por conseguinte, também de quem se especializou em filosofia, biologia, química, serralharia, contabilidade ou gastronomia, não na sua qualidade de filósofo, biólogo, químico, serralheiro, contabilista ou cozinheiro, mas enquanto membro de uma comunidade, cidadão, ser político – e isso somos todos nós, sem necessidade de nenhuma especialização em nenhuma área do saber ou da técnica.
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Maldita tendência para a excursão. Voltemos à conversa com o meu conhecido em Tete. Não é só o trabalho de desenvolvimento a enfermar de ânsia de fazer desprezando a vontade de reflectir – estou convencido de que o mundo em geral sofre mais de excesso de acção pouco reflectida que de excesso de discussão teórica relativamente à prática. E mesmo a vida emotiva de cada um. No outro dia, encontrei no Facebook a sedutora frase (traduzo eu da frase original em inglês) “Podes passar minutos, horas, dias, semanas ou até meses a sobreanalisar uma situação, tentando juntar as peças, justificando o que podia ter acontecido, o que teria acontecido – ou podes deixar apenas as peças no chão e ala!, seguir em frente”. Não sei o que significa ao certo sobreanalisar e a ideia com que fico é que o prefixo sobre- foi colado ao verbo apenas para conotar negativamente a tentativa de análise. Tirando isso, é claro que se pode, pode sempre seguir-se em frente desistindo de perceber o que se passou ou o que se está a passar. Mas é aconselhável?
Encontrei várias vezes na internet, em várias línguas e com pequenas variações de forma, a frase “um grama de acção vale mais do que uma tonelada de teoria”[5]. Para mim, é quase ao contrário. Não é bem ao contrário, porque não vejo grande sentido em afirmar que um grama de teoria vale mais do que uma tonelada de acção. Mas uma tonelada de acção, se tiver para a sustentar apenas um grama de reflexão, tem quase cem por cento de probabilidades de vir a dar buraco…
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[1] Para ele ser cooperante em vez de assessor, bem podem ver há quanto tempo não foi…
[2] E também o teria sido se ele me tivesse dito que os políticos só se querem é encher ou que as pessoas são cada vez mais individualistas…
[3] No conto “On the way”, Selected Stories. Ware: Wordsworth, 1996. Traduzo eu.  
[4] Do que se pode concluir – com alguma boa vontade, talvez… – que a teoria vale, em abstracto, mais que a prática. Mas eu já nem quero ir por aí…
[5] A frase é, o mais das vezes, atribuída a Friedrich Engels, mas é duvidoso que seja de facto uma frase de Engels. Eu, pelo menos, não o consegui confirmar. Também é às vezes atribuída a Ralph Waldo Emerson ou a Lenine, ou é ainda apresentada com um provérbio. Há uma página de Snopes.com em que se discute, precisamente, a autoria da frase. Mas a autoria da frase é completamente irrelevante para a sua discussão, pelo menos no presente contexto.

08/05/11

Hoje é a brincar

Não há que esperar de letras de canções populares prodígios de literariedade. A canção popular é, normalmente, “um domínio muito pobre”, como dizia Jacques Brel, e, claro, isso aplica-se tanto à música como às letras. Sobretudo as que são escritas para uma determinada melodia (e é assim que se trabalha muitas vezes na canção popular…) são muito limitadas e não devem, por isso, ser comparadas com poesia. Na poesia, em princípio, as limitações de métrica e de extensão do texto ou não existem (na poesia moderna) ou são muito menores – mesmo quando pensamos em formas rigidamente codificadas, o autor pode escolher a forma codificada que quer para o seu poema, o que lhe dá, ainda assim, muito mais liberdade*.

O que há que esperar da letra de uma canção popular é que soe bem. No mínimo, acentuações rítmicas rigorosas (na sua forma ideal a soar como percussão:

nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia**” – tchikitchi… tchikitchi…),

e elegância nos jogos de timbres de vogais e consoantes

(I will compose / in fancy rhyme / or just plain prose / a song of praise / for you / my prairie rose***).

Depois, se se puder acrescentar-lhe algum significado digno desse nome, melhor.

Apresento então a quem a não conheça, ou recordo-a apenas a quem tem já esse prazer, a canção “A Luz Azul”, dos Rádio Macau, com letra de Pedro Malaquias. É que me apeteceu, vá lá eu saber porquê, dizer sobre ela umas palavrinhas:



P’la janela entra a luz azul da lua. / Das cortinas desliza p’lo chão. / Enche o quarto o frio silêncio nu da rua, / envolvente em mansa lassidão. // Tenho em mim / ruim pressentimento / de já ter vivido este momento. / Se estou a sonhar, / quando acordar, / vou correr o estore e vou deixar / a luz entrar. // Baila sobre o fio brilhante e tentador / um pontinho azul que me seduz / e num gesto exacto e breve / bebo a minha vida em contraluz. // Tenho em mim / ruim pressentimento / de já ter vivido este momento. / Se estou a sonhar, / quando acordar, / vou correr o estore e deixar / a luz entrar. // Um pontinho azul que me seduz, / fecho os olhos tento não pensar… / Não pensar…

Parece-me que se trata de um caso em que a elegância formal está sempre ao serviço de um significado. Vejam a frase “P’la janela entra a luz azul da lua”. A luz da lua é azul porque tem z. Azul é lua ao contrário mais o z final de luz, que é quase lua também. Já o frio que enche o quarto vem da rua, não da lua, embora talvez também pudesse vir da lua por ser silêncio (e se nada disto é líquido para vocês, para mim é-o com certeza, porque é isso que são o r e o l: consoantes líquidas). Será que vê letras do alfabeto quando escreve letras de cantigas, o Pedro Malaquias? Se o faz, faz bem. E fá-lo bem, também.

Agora, o que na letra mais importa, na minha opinião, é que luz azul, luzazul, é um palíndromo. No centro há um a, o princípio, rodeado de dois zz, que são o fim. É essa a sedução. O brilho ofuscante do princípio rodeado de fim por todos os lados. Que remédio há, perante tão sedutora e luminosa revelação, senão beber, de repente, a vida em contra|luz?

Um déjà-vu? Um sonho? Seja lá o que for, a vida há-de continuar. Não pensemos agora nisso, sim? Como a interpreto, a letra fala de um flirt com o suicídio. Também a interpretam assim? E, já agora: não é desse flirt que fala também “Hoje é a brincar”, do álbum seguinte, também com letra de Pedro Malaquias?

Sobre o pulso tenso a bater / Encosto o aço frio devagar / Amanhã talvez seja a valer / Hoje é a brincar.



Hoje é a brincar às análises estruturalistas, se ainda não tinham percebido. O que a gente se diverte! E um grande abraço ao Pedro Malaquias, mestre de cantigas.
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* Enfim, tudo isto é muito discutível, eu sei, porque a lírica, tal como nós a conhecemos hoje, autónoma e livre na forma, nasceu para ser cantada em canções que não eram, muitas delas, fundamentalmente diferentes da canção popular actual. Reconheço que a simplificação que faço do assunto, de tão exagerada, pode facilmente soar mais a mentira do que a simplificação. Se, ainda assim, opto por ela, é porque não é de discutir a letra da canção popular como manifestação estética que aqui se trata, mas de fazer uma análise algo delirante de uma letra de uma canção em particular. E, para introdução a uma análise dessas, estas afirmações, por muito que pouco rigorosas, até nem ficam mal de todo, acho eu…

** “Nega do cabelo duro”, de David Nasser e Rubens Soares, 1942

*** “Prairie rose”, de Brian Ferry, 1974 [Prairie rose é também o nome de uma flor, a Rosa arkansana.]

06/05/11

Notas de uma juventude suburbana

É sempre interessante reler textos que se escreveu há muito tempo. São, normalmente, a prova mais cabal de que a identidade individual é, em grande parte, uma ficção – que, além do nome que figura nos documentos, pouco há de duradouro em cada um de nós. Para mim, por exemplo, a pessoa que escreveu o texto que publico a seguir é, em grande parte, outra pessoa – apesar de ter sido eu que o escrevi, em 1986. Tinha 27 anos e morava ainda na Rinchoa.
Se se escolhe os subúrbios para local de habitação, a escolha prende‑se sempre com questões pragmáticas. Os subúrbios não são ideal de ninguém. Rebusquemos o sótão do imaginário colectivo. Eis que uma personagem nos afirma, com os olhos a brilhar de gananciosa esperança: «Ah, eu quero mais do que isto! Eu não fui feito para o campo! Não, que eu tenho outras ambições e essas só na cidade as poderei satisfazer!» A personagem em questão renuncia à sua condição inata de campesino. Decide tornar‑se citadino. Agora o exemplo contrário, tão fácil de encontrar como o primeiro: «Acho que não aguento o fumo, o stress, a violência, a desconfiança... Vou largá‑la de vez, a cidade, isto está a dar cabo de mim!» E lá vai para o campo. Citadino, quer deixar de o ser. Claro que ambas estas personagens darão provavelmente conta do engano em que caíram e, na maior parte dos casos, reconsiderarão. Mas isso é outra história.

Escolhe‑se ir passar a férias a Genève, a Roma ou a Londres, ou numa aldeia ou vila qualquer, mas nunca em Cergy‑Pontoise ou no Algueirão. A não ser que aí se fique a passar férias porque é aí que mora o tal casal amigo que nos alberga. Só que, nesse caso, contar‑se‑á no fim das férias que elas foram passadas em Paris ou em Lisboa. Os subúrbios são só uma parte da cidade. Como o nome indica, são a parte de baixo da cidade, não no sentido físico, obviamente, mas nos outros sentidos todos… Subúrbios são a sub‑cidade.

Um dos traços constantes da sub‑urbanidade é o sub‑urbanismo. No caso específico de Portugal, o urbanismo nem sequer é sub‑urbanismo, porque é inexistente. Salvo raríssimas excepções, os subúrbios são feios. Há uns mais feios que outros, naturalmente; há uns mais arborizados, mais confortáveis, menos cinzentos. Parece‑me, no entanto, não exagerar, se considerar sub‑urbanizações a quase totalidade das urbanizações suburbanas: os graffitti, nem sempre políticos, nem sempre com um propósito qualquer; o muro branco das escolas secundárias debruado a arame farpado, bastante mais do que vagamente concentracional; a pintura escamada; os elevadores avariados…

E um sempiterno tédio a pairar sobre as torres. Nos subúrbios, creio que já alguém o disse antes de mim, o tédio acarinha‑se como a um amigo. O tédio esfrega o tacão da bota bicuda contra a esquina dos prédios. O tédio passa horas sem conta à porta do café, a ver‑se desfilar na gente que passa. O tédio é sem cessar entornado nas mesas dos cafés, com gestos nervosos, impacientes: «Deixe ‘tar, que eu já limpo!», acorre solícito o empregado. E a salvação é sempre um transporte. De ou para a cidade.

Os sub-urbanos gozam de um respeito de que antes só gozavam certos habitantes da cidade, as camadas pobres dos chamados bairros populares. Para obter no nosso interlocutor o mesmo efeito que outrora se conseguia respondendo à pergunta «de onde é que você é?» com um «Alfama» ou «Ménilmontant» secos, basta agora dizer, com a mesma entoação, «Cacém» ou «Sarcelles». Não se pode dizer que tenha sido a mais simpática das conquistas da sub‑urbanidade, mas é, sem dúvida, uma das mais importantes. No imaginário colectivo, o subúrbio tornou‑se cóio de malandros, a escumalha apanhou os comboios tranvias ou as carreiras suburbanas e, da cidade, foi toda instalar‑se nos seus arredores.

Na maior parte destes antros de desolação cultivava‑se hortaliças e passava‑se férias há 30 anos. E menos. Em Cergy, não havia água canalizada há 40 anos. Há 20 anos, onde é hoje, na Rinchoa, a Urbanil, só havia algumas tamareiras e uma vacaria. Os subúrbios eram ainda verdes há pouco tempo e habitado por saloios. Debaixo de cada subúrbio há uma aldeia. E, às vezes, os restos da aldeia são ainda visíveis – se já não restam muitos dos aldeãos de Cergy, há‑os ainda em Belas ou na Abelheira. É claro que o futuro de todos os subúrbios é igual, sem lugar para nem sequer vestígios do campestre…
Há aqui na Travessa outro texto que complementa este. (Foi escrito na mesma altura, mas, talvez por ser em verso, resistiu melhor ao tempo, acho eu.) Estou agora muito longe de tudo isto. Revejo os subúrbios quando vou a Portugal de férias e já não os reconheço como meus ou como fazendo parte de mim, eu que lá cresci, imaginem vocês. Aliás, em muitos casos, pura e simplesmente não reconheço os lugares. Não sei como serão agora Belas ou a Abelheira. Provavelmente, ficam à beira de auto-estradas e já não lhes resta nada de aldeia que ainda eram um bocadinho há 25 anos.

Uma peça de teatro

Escrevi aqui no outro dia que tinha trocado, em Bvumba, um livro de contos de Tchekhov por uma edição de 1933 de King Solomon’s Mines de Rider Haggard; mas era mentira. Quer dizer, mentira não era, mas pretendia ser literatura, que é parecido. A verdade é que vou conservar o livro de contos de Tchekhov, pelo menos até arranjar uma edição melhor – ou uma edição maior, se a qualidade for a mesma.
De facto, guardo poucos livros. Antigamente não, guardava os livros todos e tinha uma biblioteca que, não sendo muito grande, me ocupava ainda assim uma parede de cerca de 15 m2. Um dia, ardeu-me a casa e aprendi com o incêndio uma coisa que tinha obrigação de saber antes dele, mas que, pelos vistos, não sabia: que não devemos guardar nada que não consideremos muito provável vir a utilizar. Faço agora circular todos os livros que compro ou que me dão, excepto, claro está, os de consulta ou que possam como tal vir a ser usados, e meia dúzia de obras que sei que, mais cedo ou mais tarde, hei-de reler. Os contos de Tchekhov, está agora decidido, são uma dessas obras.
Dizem que Tchekhov está para o conto como Schubert está para o Lied. Não tenho maneira de avaliar a proposição, porque os meus conhecimentos de contos e de Lieder não chegam para tal, mas posso confirmar que Tchekhov escreve contos muito bem escritos – dos mais bem escritos que conheço. Ora, como sabem, Tchekhov é conhecido não só como contista, mas também como dramaturgo. Não sei se será mais conhecido como contista ou como dramaturgo, mas – e chegamos aqui à ideia central deste texto, à ideia que me levou a escrevê-lo – parece-me que os contos de Tchekhov são também, essencialmente, sketches ou quadros teatrais; e que mesmo aqueles em que há algum movimento por diversos espaços e tempos [a maioria tem a unidade espácio-temporal típica do drama] podem, com truques simples, ser adaptados ao palco. Foi isso que fiz com este conto a que chamei O visitante importuno e que traduzi e adaptei das traduções inglesas de Constance Garnett em 1921 (“The troublesome visitor”, in The Horse-Stealers and Other Stories) e de Marian Fell em 1914 (“The troublesome guest”, in Stories of Russian Life) . Quero deixar claro, para não me criticarem depois a falta de rigor, que se trata de uma tradução dita livre, até porque não tenho maneira de verificar, no original russo, qual das duas traduções segue de mais perto o original, quando existem discrepâncias  entre as duas – e há muitas; e quero avisar também que tirei ao conto alguns pormenores descritivos, que não se deixavam transformar bem nem em indicações de cenário nem em didascálias, e o gato e o cão, que a maior parte dos encenadores não consegue dirigir...

_______________

(Interior de uma cabana pequena, de tecto baixo. Estão dois homens sentados sob o ícone escuro: ARTEM, o dono da cabana, um camponês de alguma idade com uma barba pequena; e um CAÇADOR, um jovem alto de camisa nova carmim e grandes botas enlameadas. Estão sentados num banco a uma mesa de três pés sobre a qual arde uma vela metida no gargalo de uma garrafa. Fora da janela está tudo escuro. Um vidro partido da janela está tapado com papel.)
ARTEM (numa voz meia murmurada, fixando assustado o CAÇADOR com olhos esbugalhados): Vou dizer-te uma coisa, bom cristão. Não tenho medo de lobos nem de ursos, nem de animais selvagens, sejam lá eles quais forem, mas tenho medo do homem. Dos bichos, uma pessoa pode salvar-se, com uma espingarda ou outra arma qualquer, mas não há maneira de escapar a um homem mau.
CAÇADOR: Isso é certo, pode-se disparar contra um bicho, mas, se se dispara contra um ladrão, tem de se responder por isso: vai-se parar à Sibéria.
ARTEM: Há trinta anos, rapaz, que sou guarda-florestal e nem queiras saber o que eu tenho passado com homens de mau carácter. Têm passado por aqui muitos. A cabana está numa clareira, na estrada das carroças, e é isso que os traz, esses demónios. Não há rufião que aqui não apareça e, sem sequer tirar o boné nem fazer o sinal da cruz, não comece logo a exigir: «Dá-nos lá pão, anda!» Onde é que eu vou arranjar pão para lhes dar? E que direito têm eles de mo pedir? Será que sou algum milionário, para dar de comer a todos os bêbedos que aqui passem? Mas eles parece que estão cegos de maldade e, sem hesitar, gritam-me aos ouvidos: «Dá-nos pão!» Bom, e eu dou-lhes... Não me vou pôr à pancada com esses pagãos! Alguns medem dois metros de ombro a ombro e têm punhos do tamanho das tuas botas e eu, bem vês a fraca figura que sou. Um desses tipos era capaz de me esmagar com o dedo mindinho. E então, pronto, dou-lhes pão, eles empanturram-se e estendem-se para aí na barraca a descansar e nem obrigado me dizem. Há alguns que ainda me pedem dinheiro. «Diz lá, onde é que tens o dinheiro?» Como se eu tivesse dinheiro! Onde é que eu havia de o arranjar?
CAÇADOR (rindo): Um guarda-florestal sem dinheiro! Recebes todos os meses e de certeza que vendes madeira às escondidas.
(ARTEM olha de esguelha para o CAÇADOR e puxa a barba).
ARTEM: És ainda muito novo para me dizeres uma coisa dessas. Terás de responder perante Deus por essas palavras. Quem és tu? De onde és?
CAÇADOR: Sou de Viazofka. Sou filho de Nefed, o meirinho da aldeia.
ARTEM: Andas por aí aos pássaros de espingarda na mão. Eu também gostava de caçar, quando era rapaz novo. (Boceja.) Ah, grandes pecadores que nós somos. É triste! Há pouca gente boa, mas não faltam para aí bandidos e assassinos – Deus tenha piedade de nós.
CAÇADOR: Parece que também estás com medo de mim...
ARTEM: Ora essa! Porque havia de ter medo de ti? Eu vejo as coisas... Compreendo-as... Entraste, e não entraste de qualquer maneira, benzeste-te, fizeste uma vénia, com decência, como se deve... Eu percebo bem as coisas... Posso dar-te pão... Sou viúvo, nunca acendo o fogão, vendi o samovar... Não tenho dinheiro que chegue para ter carne em casa, nem nada parecido, mas podes servir-te de pão. (Faz uma breve pausa.) Dizes então que és de Viazofka… Gente esquisita, essa gente de Viazofka. A igreja foi assaltada duas vezes no espaço de um ano... Como pode haver gente assim tão malvada? Não têm medo dos homens e também não têm medo de Deus! Roubar o que pertence ao Senhor! Enforcá-los ainda é pouco! Antigamente, os governadores mandavam cortar a cabeça a facínoras dessa espécie.
CAÇADOR: Pode-se castigá-los de qualquer maneira, mandar chicoteá-los ou seja lá o que for, não serve de nada, não se consegue tirar o mal a quem tem o mal dentro de si.
ARTEM: Que a Virgem Santa tenha piedade de nós e nos proteja, e nos salve dos nossos inimigos e de quem nos quer mal! (Suspira.) A semana passada em Volóvi Zaimíchtchi, um ceifeiro abriu o peito a outro com uma foice... Matou-o logo ali naquele instante! E aquilo tudo porquê, valha-me Deus? Sai um ceifeiro da taberna, bêbedo; o outro topa com ele, também bêbedo…
(O CAÇADOR estica-se de repente para a frente, fica com uma expressão tensa e interrompe o relato de ARTEM.)
CAÇADOR: Espera. Parece que está alguém a gritar.
(O CAÇADOR e ARTEM ficam calados a escutar, de olhar fixos. Ouve-se distintamente lá fora alguém gritar por socorro.)
CAÇADOR (levantando-se): Olha, por falar em assassinos… Está alguém a ser assaltado!
ARTEM (murmurando): O Senhor tenha piedade de nós!
(ARTEM também se levanta. O CAÇADOR olha pela janela e põe-se a andar de um lado para o outro.)
CAÇADOR: E que noite esta, que noite esta! Não se vê um palmo à frente do nariz! É mesmo noite para assaltos. Ouviste? Gritaram outra vez.
(ARTEM olha para o ícone na parede e depois para o CAÇADOR e senta-se de novo no banco.)
ARTEM: Amigo, vai ali à entrada e tranca a porta. E também temos de apagar a luz.
CAÇADOR: Para quê?
ARTEM: Podem vir dar cá a casa... Pobres de nós, pecadores!
CAÇADOR: Então nós devíamos era ir lá e tu estás-me a dizer que tranque a porta? Ora aí está uma coisa inteligente! Vens ou não?
(O CAÇADOR põe a arma ao ombro e o boné na cabeça.)
CAÇADOR: O que é que estás a fazer aí sentado? Não me vais dizer que não vens…
ARTEM: Onde?
CAÇADOR: Ajudar!
ARTEM: Porque é que havia de ir? Deixa-os lá estar…
CAÇADOR: Porque é que não vens?
ARTEM: Depois das conversas tenebrosas que tivemos, recuso-me a aventurar-me no escuro. Deixa-os lá estar! Já vi acontecerem coisas horríveis nessa mata…
CAÇADOR: Mas de que é que tu tens medo? Não tens uma espingarda? Vamos lá embora, por favor. O que mete medo é ir sozinho; é melhor irmos os dois. Estás a ouvir? Mais um grito. Levanta-te, vá!
ARTEM: Mas por quem me tomas tu, rapaz? Pensas que sou tontinho, para ir agora lá para fora e alguém me dar cabo do canastro?
CAÇADOR: Então não vens?
(ARTEM não responde.)
CAÇADOR: Vens ou não?, estou eu a perguntar!
ARTEM: Não me estejas a chatear! Se queres ir, vai tu.
CAÇADOR: Velhaco, é o que tu és!
(O CAÇADOR sai e deixa a porta aberta. A luz apaga-se. ARTEM, às apalpadelas, vai trancar a porta.)
ARTEM (murmurando): Pela minha alminha! Que tempo nos manda Nosso Senhor!
(Sempre às apalpadelas, vai para junto do fogão, deita-se e cobre a cabeça e o corpo com uma pele de ovelha.)
ARTEM: Ele é mas é doido. Aposto que até treme de medo.
(Escuro e silêncio, durante dois ou três minutos. Batem à porta com força.)
ARTEM: Quem é?
CAÇADOR: Sou eu. Abre lá a porta.
(ARTEM acende a vela e vai até à porta. Entra o CAÇADOR.)
ARTEM: O que era?
CAÇADOR (ofegante): Uma camponesa numa carroça. A carroça despistou-se e ficou presa numa moita.
ARTEM: Pateta da mulher! E assustou-se, está claro... E então, puseste-lhe a carroça na estrada outra vez?
CAÇADOR: Não me apetece falar com patifes da tua laia. (Pousa o boné no banco.) Sei agora que és um patife e o mais reles dos homens. E ainda por cima és pago para ser guarda! És uma vergonha dum guarda!
(ARTEM aproxima-se do fogão, pigarreia e baixa-se. O CAÇADOR estende-se no banco e fica com ar pensativo. Passado pouco tempo, levanta-se, apaga a vela e volta a estender-se. Vira-se e cospe para o chão.)
CAÇADOR: Estava com medo, vejam lá… E se estivessem a matar a mulher? Defendê-la para quê? Está velho, coitado… E diz que é cristão… Um nojento, é o que ele é, não passa disso.
(ARTEM pigarreia e suspira profundamente.)
CAÇADOR: Com que então, tanto se te dava que matassem a mulher? Ora, raios me partam, não fazia ideia de que tipo de pessoa é que tu eras… (Faz uma pausa.) E se fosses tu a gritar por socorro, em vez de ser a mulher? Gostavas que ninguém viesse em teu auxílio, meu animal? Pões-me doente com a tua cobardia, raios te partam! (Faz uma longa pausa.) Mas tu deves ter dinheiro, para teres tanto medo das pessoas! Um pobre não tem medo assim dessa maneira...
ARTEM: Hás-de responder perante Deus pelo que estás a dizer. Não tenho dinheiro nenhum.
CAÇADOR: Deixa-te de lérias! Os velhacos como tu têm sempre dinheiro... Porque é que tens medo das pessoas, então? Tens dinheiro, pois! Apetece-me roubar-te, só por pirraça, para te dar uma lição!...
(ARTEM desce do fogão, acende mais uma vela e senta-se debaixo do ícone.)
CAÇADOR: É isso mesmo, vou-te roubar. O que é que achas? Gente como tu merece uma lição. Diz lá então, onde é que escondeste o dinheiro?
(ARTEM puxa para si as pernas e pisca os olhos.)
CAÇADOR: Estás aí a contorcer-te para quê? Onde é que está escondido o dinheiro? Não tens língua, ó pateta? Porque é que não me respondes? (Põe-se de pé de um salto e vai até perto de ARTEM.) Está a piscar os olhos, parece uma coruja! Então? Dás-me o dinheiro ou dou-te um tiro?
ARTEM: Mas porque é me estás a atormentar? (Chora.) Que mal é que eu fiz? Deus vê tudo! Hás-de responder perante Deus por cada palavra que disseste. Não tens direito nenhum de me pedires dinheiro.
(O CAÇADOR olha para ARTEM, franze o sobrolho e começa a andar de um lado para o outro. De repente, põe o boné com um gesto irado e pega na espingarda.)
CAÇADOR: Bah! Fico mal disposto só de olhar para ti. Aqui é que eu não fico a dormir. Adeus!
(O CAÇADOR sai, batendo com a porta. ARTEM tranca a porta, benze-se e vai-se deitar outra vez junto do fogão.)