11/12/13

Pedra, papel e tesoura

O jogo pedra-papel-tesoura é muito conhecido, mas, para quem não conheça, aqui fica a explicação: jogam duas pessoas, que, à contagem de três – ou outra qualquer – apresentam ao adversário a mão numa de três posições: de punho fechado (pedra); com o indicador e médio esticados e restantes dedos dobrados (tesoura); ou aberta (papel). Cada uma das formas apresentadas pode ganhar a outra: a pedra ganha à tesoura (parte-a); a tesoura ganha ao papel (corta-o); e o papel ganha à pedra (embrulha-a).

Podia dizer-vos aqui várias coisas interessantes sobre o jogo. Por exemplo:

[1] Li na Wikipédia que há fenómenos naturais que reproduzem a lógica do jogo. As estirpes de bactérias Escherichia coli produtoras de antibiótico (colicina) superam as estirpes sensíveis ao antibiótico, que superam as estirpes resistentes ao antibiótico, que, por sua vez, superam as estirpes produtoras. E, entre os lagartos Uta stansburiana, verifica-se uma seleção sexual assente na frequência de três tipos com cores de pescoço diferentes, que se baseia também num mecanismo do tipo pedra-tesoura-papel. Mas eu não sei nada nada de bactérias nem de lagartos e, por isso, não posso, infelizmente, desenvolver aqui este ponto, nem torná-lo menos árido…

[2] Há um robô que ganha sempre às pessoas. É tão rápido a fazer batota que ninguém dá conta da batota que faz. De facto, o robô só dispara a sua posição depois de ter visto que posição a pessoa está a fazer. Mas, como o faz num milisegundo, ninguém se apercebe de que está a fazer batota.



[3] O nome mais comum do jogo em inglês, rock-paper-scissors, corresponde diretamente ao nome em português, pedra-papel-tesoura, mas, em dinamarquês, chama-se sten–saks–papir, que é como quem diz “pedra-tesoura-papel”. Porque se altera a ordem dos elementos? Talvez por aplicação da Lei do SegundMais Pesado… O linguista Claude Hagège postulou que, em pares fixos de palavras, como mais ou menos, mais cedo ou mais tarde, etc. (incluindo aqueles em que os elementos não têm significado independente, como tiquetaque), há uma tendência natural e universal para pôr no fim o termo mais pesado, quer dizer, com mais sílabas ou sílabas mais graves. É bem possível que a lei se aplique também a expressões ternárias e papir venha no fim em dinamarquês porque é mais longo, como scissors e tesoura, mais longos, vêm no fim em inglês e português. Mas isto sou eu a especular.

***
Tudo isto é interessante, mas há outro aspeto do jogo que acho mais interessante ainda. Habituámo-nos a pensar com silogismos simples, também no que diz respeito a relações de poder entre pessoas: se X é mais forte que Y e Y é mais forte que Z, então X é mais forte que Z. Quem diz “é mais forte” pode também dizer “tem ascendente sobre”, “domina”, etc. Mas isto nem sempre funciona e o que acho mais interessante no jogo pedra-papel-tesoura é que dá conta duma outra lógica que governa às vezes as relações entre as pessoas: X é mais forte que Y, que é mais forte que Z, que é mais forte que X

06/12/13

Nelson Mandela

A esmagadora maioria das pessoas, se não toda a gente, já disse ou dirá o mesmo: que foi o mais importante político da segunda metade do século XX; que é o político que mais admiram; que é um exemplo para todos os políticos; que ninguém, como ele, soube pôr acima de tudo o mais a vida e o bem-estar do povo do seu país. Mesmo os que alguma vez o consideraram um terrorista ou um perigoso radical vão sentir-se obrigados a dizer isso também. Não creio que o consenso sobre as qualidades de uma pessoa seja necessário para definir a sua grandeza. Mas, neste caso, este amplo consenso é, penso eu, um sinal claro da grandeza de Nelson Mandela.

04/12/13

Género e música popular, mais uma vez

Ainda não há muito tempo, as letras de canções populares diziam das mulheres coisas muito estranhas que eu acho que hoje já ninguém quer dizer – ou já não se atreve a dizer, por muito que o queira fazer. Dou-vos exemplos:

“Parchman farm” (1957), de Mose Allison, foi uma canção de grande sucesso, de que foram gravadas mais de duas dezenas de versões. A Wikipedia diz que o autor deixou de a cantar nos anos 80, porque começou a ser considerada politicamente incorreta. Mais concretamente, começou a não ser aceite o verso final:
Well I’m a gonna be here [in Parchman Farm] for the rest of my life / And all I did was shoot my wife (“Vou ficar aqui o resto da vida / E a única coisa que eu fiz foi dar um tiro na minha mulher”)
Pode considerar-se que a canção funciona como uma piada, se tivermos em conta a relação entre os últimos versos da primeira e da última estrofe, como aqui sublinho:
And I ain’t never done no man no harm …/ And all I did was shoot my wife ( “Nunca fiz mal a ninguém [literalmente “homem nenhum”] / E a única coisa que eu fiz foi dar um tiro na minha mulher”)
Piada de mau gosto, nisso concordarão as minhas leitoras e os meus leitores [1] [2]... Talvez surpreenda que só nos anos 80 se tenha começado a considerar inaceitável a letra de “Parchman farm”, mas a verdade é que, se havia alguma coisa a mudar na situação das mulheres na sociedade, não é nada que se note muito nas letras da música popular: seguindo a tradição do blues e da folk, uma parte das letras de música rock e pop continua a maldizer a infidelidade ou o espírito interesseiro das mulheres e a considerá-las, em grande medida, o mal do mundo. Mas não só. Cabelo comprido e instrumentos elétricos não são sinais imediatos de uma atitude nova perante as relações de género… Neil Young, por exemplo, encara a possibilidade de arranjar uma mulher que lhe faça a comida e lhe lave a roupa, porque “A man needs a maid” (“Um homem precisa de uma criada” [ou “rapariga”, num uso mais arcaico]) (1972):
I was thinkin' that maybe I'd get a maid / Find a place nearby for her to stay / Just someone to keep my house clean / Fix my meals and go away / A maid, a man needs a maid (“Estava a pensar que talvez arranjasse uma criada / Lhe arranjasse um lugar para ela ficar aqui perto / Só alguém para me limpar a casa / Fazer a comida e ir-se embora / Uma criada, um homem precisa de uma criada”)
A letra foi muito discutida e houve vários homens a dizer que só por incompreensão era considerada machista. O que acham vocês? “A man needs a maid” deve ou não fazer parte da lista de cantigas que hoje já ninguém escreveria? É certo que, pelo menos, “A man needs a maid” deixa muito mais espaço para várias interpretações que, por exemplo, “Be a Caveman” (1965) dos Avengers:
You gotta treat your woman tough / Be a caveman, oh, oh, oh, keep her in line // You gotta pull her by the hair / Hold her tighter than a grizzly bear … // You gotta show a woman who wears the pants / If you want her to stick by you / If you want her to be eating out of your hand (“Tens de tratar a tua mulher com dureza / Sê um homem das caverna, oh, oh, oh, mantém-na na linha // Puxa-a pelos cabelos / Aperta-a mais do que se aperta um urso // Tens de mostrar às mulheres quem é o homem / Se queres que ela fique contigo / Se queres que ela te venha comer à mão”)
Já ninguém escreve letras assim, pois não? Alguma coisa mudou nos últimos 40 anos. Não tento como deveria ter mudado, nisso estamos de acordo, mas alguma coisa mudou. Nas letras de canções populares, creio que mudou mesmo muita coisa.
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Notas finais com vídeo:

[1] O uso genérico do masculino foi muitas vezes usado humoristicamente. Lembro-me, por exemplo, da “Suite «Los Noticieros Cinematográficos»” (1971) do grupo humorístico Les Luthiers, em que se diz, a dado passo, que “las nuevas máquinas incorporadas […] permiten el procesamiento de las gaseosas sin intervención de la mano del hombre – estas máquinas serán atendidas exclusivamente por mujeres.

[2] Bobbie Gentry, no álbum The Delta Sweete (1968), tem uma versão da canção que vale a pena mencionar aqui, porque é das poucas versões femininas que conheço e porque Gentry, para a adaptar a uma voz lírica feminina, lhe introduz uma interessante transformação:
… My man's sittin there on Parchman Farm / He ain't never done nobody no harm // Well he's gonna be there for the rest of his life / And all he ever did was shoot his wife (“O meu homem está ali na prisão / nunca fez mal a ninguém [mas não na forma no man, “homem nenhum”, do original] // Bem, vai ali ficar o resto da vida / E a única coisa que fez foi dar um tiro na mulher”)
A letra alterada por Bobbie Gentry não tem, claro, uma leitura única, mas creio que muita gente entende que a voz da canção é da amante do condenado. Não discutirei aqui se esta alteração introduz ou não alguma mudança ideológica na letra, mas isso é, claro, muito discutível – em qualquer  sentido da palavra…

 

03/12/13

Uma ideia estranha

Há quem defenda que a existência de um deus criador se pode concluir da improbabilidade das condições que permitem a existência de vida. As probabilidades de o universo ser como realmente é são ínfimas e, por isso, para haver vida e nós existirmos, alguma vontade inteligente deve ter afinado o universo para ele ser desta maneira – com a finalidade de nele haver vida e nós nele existirmos.

É um argumento muito estranho. Parecerá evidente a muita gente que o facto de uma determinada ocorrência ser improvável não é motivo suficiente para pensar que ela é produto de uma vontade. Mas nem é preciso ir tão longe, porque, bem vistas as coisas, este argumento não chega a ser argumento nenhum: admitindo a possibilidade de um deus criador, as probabilidades de ele ter vontade de criar um universo como o nosso também são ínfimas, como as de esse universo existir como é sem ter sido criado por nenhuma vontade divina... Então, como se sai daqui? Postulando que essa vontade do deus criador, de tão improvável, só pode ter sido produto de outra vontade que o tivesse afinado para criar um mundo em que pudéssemos ser como somos – e assim sucessivamente?

[Para uma discussão mais desenvolvida da questão, ver, por exemplo, um texto recente de Ludwig Krippahl e os textos para que remete]

27/11/13

Ideais de campo, ideias da cidade

Labor omnia vicit / Improbus, et duris urguens in rebus egestas: “tudo venceu o trabalho ímprobo e a necessidade premente em duras condições”. Não é certamente a melhor tradução, mas dá uma ideia dos versos célebres de Virgílio* – que falam do trabalho agrícola em tempos anteriores ao do seu autor, mas que podiam falar da maior parte do trabalho agrícola de todos os tempos.

Nas Bucólicas e nas Geórgicas, Virgílio faz o louvor do trabalho e dos pequenos proprietários e pretende secundar a política de retorno à terra do imperador Augusto. Eça de Queirós, 19 séculos mais tarde, cita algumas vezes Virgílio no conto “Civilização” e na sua versão desenvolvida, o romance A Cidade e as Serras, que fazem, também eles, a apologia do retorno à terra. Se se manteve atual durante dezanove séculos, não era nos 100 anos seguintes que havia de perder atualidade: a ideia de retorno à terra continua, sob várias formas, a ser muito atual. E nós também decidimos que não queríamos viver mais na cidade e viemos viver para o campo. Agora, agricultura não fazemos. Temos um hortazita no quintal – e chega bem.

Retorno à terra, trabalho ímprobo… Duas ou três horas a cavar a terra são suficientes, creio eu, para fazer qualquer pessoa repensar a idealização da vida rural. Ímprobo labor, de facto, nisso Virgílio tinha toda a razão. Estava ali a virar a terra na horta e a tentar imaginar o que será fazer esse trabalho – e outros tão ingratos como ele, por exemplo, mondar – várias horas por dia, durante muitos dias dos anos todos de uma vida. Mas não tenho imaginação que chegue para tal. Está bem que agora no mundo rico já não há trabalho agrícola feito à mão. Mas há noutros lugares do mundo, em muitos lugares do mundo. Em Moçambique, as mulheres começam a trabalhar às 4 da manhã, para poderem parar quando o sol já não se aguenta mesmo, por essas 10 ou 11 da manhã. E era assim a vida de muitos camponeses, também aqui, no tempo de Virgílio e no tempo de Eça de Queirós…

Não deve haver muitos camponeses a quem passe pela ideia considerar invejável a vida que têm e muito menos propô-la como modelo… Das Geórgicas e das Bucólicas a A Cidade e as Serras e aos modernos ideais de retorno à terra, o ideal bucólico sempre foi um ideal de gente da cidade, creio eu. Como os outros ideais todos – foi sempre a gente da cidade a imaginar ideais, não foi? Trabalho menos ímprobo, talvez, mas, bem vistas as coisas, não menos importante, porque é outra forma de cuidar da terra… perdão, da Terra.
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* Célebres sobretudo sob uma forma adulterada, labor omnia vincit, “o trabalho vence tudo”, uma frase que Virgílio não escreveu.

25/11/13

O arroz escandinavo [Crónicas de Svendborg #17]

Num pacote de arroz, encontro, como numa grande parte dos produtos que se vendem na Dinamarca, a descrição e as instruções de uso em quatro das línguas oficiais da Escandinávia: dinamarquês, sueco, norueguês bokmål e finlandês. Agora, traduzir de uma língua escandinava para a outra não é um trabalho linguístico em sentido estrito, é um trabalho bem mais complexo de localização linguística. Senão, vejam:

Em dinamarquês, diz-se que o arroz deve cozer 12 minutos e repousar tapado outros 12, antes de ser servido; em sueco e finlandês, o arroz deve cozer 20 minutos e repousar 5; e em norueguês, deve cozer 15 minutos e repousar 5-6…

Enxadas e pás [Crónicas de Svendborg #16]

É impossível encontrar uma enxada na Dinamarca. Não há mesmo em lado nenhum! Por acaso, tenho uma no quintal, que me emprestou um amigo meu, mas comprou-a… em Portugal.

Se cavam a terra à mão, os dinamarqueses usam estes dois instrumentos: a pá de cavar (spade) e o cultivador (kultivator).

Quer dizer, fui buscar um cognato para traduzir kultivator, mas não sei se é assim que se chama em português este pequeno arado manual, não lhe encontro o nome em lado nenhum. E é curioso, a página da Wikipédia em dinamarquês que refere o instrumento, corresponde sempre, em páginas noutras línguas, a motocultivadores. Notem que também não há página da Wikipédia em português que corresponda à de spade em dinamarquês e noutras línguas. Aliás, o português usa a mesma palavra para designar dois conjuntos de ferramentas com funções muitos distintas: esta, que serve para revolver a terra, e outra, que é um contentor e serve para tirar terra, areia, gravilha, lixo, etc. de um lugar para outro.

Uma questão interessante é: porque é que não há enxadas na Dinamarca? É claro, podia perguntar antes porque é que há enxadas em Portugal ou porque se usa tanto a enxada para cavar em Portugal, mas a verdade é que, se já tenho pouca resposta para a primeira pergunta, menos ainda tenho para a segunda, de maneira que, para já, me fico pela primeira.

Quando experimentei usar a enxada para cavar o quintal, e tive de a abandonar logo de seguida e voltar à pá, surgiu-me uma possibilidade de explicação: se calhar, a maioria dos solos é muito argilosa, como este aqui, e, quando assim é, a julgar pelo meu quintal, é muito mais fácil trabalhar com a pá de cavar. Mas eu não percebo nada de solos nem de ferramentas, de maneira que perguntei ao meu amigo Stefaan Dondeyne que é especialista de ciência dos solos, precisamente. E disse-me ele:
Isso dos solos e das enxadas é interessante... Não sei muito sobre os solos da Dinamarca, nem sobre os solos em Portugal, de facto; mas, pelo que vi na Noruega, muitos solos são depósitos relativamente recente de argilas marítimas – na verdade, quase todas as áreas a menos de 100 metros acima do nível do mar. Desde o fim da idade do gelo e do derretimento da calota glaciar, a Noruega – e com certeza também a Dinamarca – tem sofrido um levantamento isostático e muita terra que era submarina está agora ao ar livre. Esse tipo de argilas é de facto difícil de trabalhar. Em Portugal, os solos resultam de decomposição de materiais rochosos mais antigos (e, nos vales, também de depósitos aluviais e coluviais, claro), mas, assim, mesmo quando são argilosos, serão de outro tipo e mais fáceis de trabalhar. Que as enxadas não existam na Dinamarca, sim, pode ser por causa da natureza dos solos.
Pois, pode ser. Ou não, claro. Pode haver milhares de outras razões. A minha mulher, que também é agrónoma, embora não especialista em solos, sugeriu que a quantidade de pedras também pode ter influência na escolha da ferramenta. Talvez – ou talvez não…. Mas, bem veem, para mim, faz sempre sentido procurar no meio físico alguma eventual explicação para os fenómenos culturais.

Chama-se às vezes (neo)deterministas geográficos a pessoas com uma atitude semelhante à minha, mas a expressão desagrada-me, porque se presta a uma interpretação errada: não acredito que o meio físico determine a cultura, apenas que a influencie. Aliás, nem é preciso que tenha influência em toda a cultura em todas as épocas para ter uma grande influência, basta que influencie um pormenor cultural numa determinada época para isso, mais tarde, se traduzir num grande leque de características culturais – e todo esse desenvolvimento, a cultura já pode fazê-lo sozinha, sem que ele derive diretamente do meio. Neste caso, parece-me plausível que as características do solo levem ao desenvolvimento de ferramentas com formas ligeiramente diferentes. Mas não digo que têm de ser só as características do solo a modelar os instrumentos para o cavar. Nem nego que, em certos casos, a influência do meio possa ser completamente apagada por fatores de outra ordem – culturais, em sentido lato.

22/11/13

Verbos demasiado abundantes: os particípios passados duplos e as suas regras

As formas irregulares da língua são uma complicação… E ainda por cima desnecessária: não parecem ter nenhuma função especial, a não ser distinguir (pelo menos algumas delas) quem as usa bem de quem as usa mal… Uma complicação que ainda se torna maior quando coexistem, num mesmo verbo, uma forma regular e outra forma irregular – e quando é o uso da forma irregular que é considerado incorreto em várias situações… É o caso dos particípios passados em português e é disso que falo neste texto. Mas notem que falo apenas do português europeu, que é o que eu conheço melhor.

O que as gramáticas prescrevem é que, quando há dois particípio passados, se use o particípio regular nos tempos compostos e a forma irregular na voz passiva e como adjetivo[1]:
ela tinha [ou havia] prendido o cão à noite e tinha-o soltado de manhã 
e
o cão foi preso à noite e solto de manhã 
ou
o cão não está preso, está solto desde manhã. 
Gostaria, porém, de distinguir estes dois últimos casos: só quando é usada na passiva é que se pode dizer que uma forma é um particípio passado de um verbo[2] e as listas de particípios passados irregulares só deviam incluir as formas que se podem usar verbalmente. Podem eliminar-se imediatamente das listas de irregulares os verbos que nunca podem ocorrer como transitivos: se não há forma passiva, não há evidência de uso verbal do pretenso particípio irregular. Estão neste caso, por exemplo, nascer[3], morrer[4], vagar[5] e incorrer[6].

Além disso, como diz Telmo Móia[7], “certas formas – classificadas como particípios irregulares e apresentadas nas referidas listas de verbos de particípio duplo –, embora estejam historicamente associadas a particípios verbais, são hoje totalmente independentes enquanto adjectivos. A sua associação a verbos [nessas listas] não traz grandes vantagens ao utilizador da língua com dúvidas e pode mesmo induzir no erro de se considerar que estamos perante a mesma unidade lexical verbal (quando, em muitos casos, a diferença semântica é já muito acentuada).” Móia dá o exemplo das formas bento, absolto, afecto, demisso e diluto como produzindo “resultados indesejados”:
*O novo edifício foi bento pelo padre.
*O réu foi absolto.
*As crianças ficaram afectas ao animal.
*O senhor está demisso!
*O pó já vem diluto na água.
*As calças foram tintas de azul. 
Muitas outros pretensos particípios irregulares produzem resultados indesejados. Por exemplo, nenhuma das frases que se seguem pode, na minha opinião, considerar-se aceitável:
* No ano passado, foi distinto com este prémio um escritor nigeriano.
* A manifestação foi dissoluta pelas forças de intervenção.
* Fui convicto pelo João da importância de beber mais água.
* Passado pouco tempo, toda a gordura tinha sido absorta pelo papel.
* O trabalho foi correto pelo professor nessa mesma noite e entregue no dia seguinte
* A batata era já culta em toda a França em meados do séc. XVIII.
* A piada não lhe era direta a ele, mas ele pensou que sim e reagiu mal.
* Nos últimos anos de vida, foi aflito por várias doenças.
Nalguns casos, se não recusamos liminarmente a possibilidade de uso verbal do particípio irregular, ficamos, pelo menos, com muitas dúvidas sobre se alguém de facto o usa ou não – qual é a vossa opinião sobre os seguintes casos, por exemplo?
??? Perto dos dois mil metros, foi descalço por um adversário.
??? O casaco dela foi roto por uma colega de turma, mas sem querer.
??? Tudo leva a crer que essa informação foi propositadamente omissa pelo acusado.
Talvez se possam juntar também estes – e vários outros – ao grupo anterior de verbos que de facto não têm particípios irregulares...

Nos restantes casos, porém, em que o particípio passado tem indubitavelmente uso verbal, nem todos os particípios irregulares se portam da mesma maneira. O que se verifica atualmente, mais uma vez segundo as palavras de Telmo Móia, que não tenho dúvidas em subscrever, é que “para cada um dos dois contextos relevantes [tempos compostos e voz passiva], há uma gradação na tendência para o uso maior ou menor de um dos particípios. E registam-se mesmo tendências contrárias às generalizações das gramáticas: há verbos cujo particípio irregular tende a impor-se em todos os contextos (mesmo com ter) e há verbos cujo particípio regular tende a impor-se em todos os contextos (mesmo com ser). Em suma, as acentuadas diferenças de uso (para um mesmo contexto sintáctico) conduzem-nos necessariamente a tipologias não binárias”. Móia apresenta ele próprio uma tipologia baseada em taxas de ocorrência dos particípios irregulares nos tempos compostos no corpus CETEMPúblico[8]:
• “verbos cujo particípio regular caiu claramente em desuso”, ou seja, em que o uso da forma regular nos tempos compostos é “sentida como desvio” (ter pagado, ter gastado, ter limpado e ter ganhado praticamente não se usam);
• “verbos cujo particípio regular mostra indícios de cair em desuso, mas ainda ocorre com alguma frequência”, embora a norma conservadora seja maioritariamente desrespeitada (diz-se muito mais ter entregue (94%) que ter entregado (6%), ter salvo (92%) que ter salvado (8%), ter morto (89%) que ter matado (11%), ter eleito (80%) que ter elegido (20%), ter aceite (75%) que ter aceitado (25%) e ter expulso (75%) que ter expulsado (25%);
• “verbos cujo particípio irregular ocorre no contexto em causa, mas com relativa raridade”, ou seja, em que a norma prescrita pelas gramáticas se aplica realmente na maior parte dos casos (é muito mais comum ter expressado (72%) que ter expresso (28%), ter extinguido (74%) que ter extinto (26%), ter suspendido (78%) que ter suspenso (22%), ter prendido (80%) que ter preso (20%), ter dispersado (82%) que ter disperso (18%) e ter soltado (90%) que ter solto (10%); e, finalmente,
• “verbos verbos cujo particípio irregular não se usa ou é bastante raro” nos tempos compostos, quer dizer, em que a regra prescrita pelas gramáticas é, a bem dizer, sempre aplicada (praticamente não se vê nem ouve ter envolto, ter aceso, ter desperto, ter oculto, ter manifesto).
Deixo aos meus leitores mais um proposta de reflexão: em que grupo incluiriam os verbos assentar, cegar, emergir, empregar[9], fritar[10], imergir, imprimir, isentar, juntar, libertar, secar e submergir, por exemplo?
***
Agora, o que é que se passa na nossa cabeça quando dizemos estive em vez de *estei, que seria a forma normal? Há várias teorias sobre isso[11]. A teoria que prefiro diz que vamos buscar a forma estive a um armazém na memória que só contem formas irregulares e expressões idiomáticas. Chamemos a esta teoria regra&memória, para facilidade de exposição. Segundo a teoria regra&memória, vai procurar-se uma forma armazenada na memória e, se não se a encontra, aplica-se a regra e produz-se a forma regular. Para dar um exemplo com falar, não encontrando na memória uma forma (irregular) da 1ª pessoa do pretérito perfeito, aplica-se a regra de juntar o sufixo -ei à raiz do verbo (fal-) e temos falei. No caso de estar, a forma estive está armazenada na memória, o que bloqueia a aplicação da regra e, por isso, não se produz *estei.

Mas, e quando um verbo tem ao mesmo tempo uma forma regular e uma forma regular e é necessário usar uma forma ou a outra em contextos diferentes? O caso dos particípios duplos dos verbos portugueses parece constituir um excelente objeto de análise, teste e desenvolvimento das teorias de produção/armazenagem de formas irregulares… Neste caso, há que recuperar a forma irregular em certos contextos e produzir a forma regular noutros, pelo que a regra simples “se não há irregular armazenado, aplicar regular” não pode funcionar sem uma componente adicional: “se não há irregular armazenado no caso X, aplicar regular; no caso Y, bloquear recuperação de irregular”. Não vou aprofundar aqui esta questão, até porque não o sei fazer; mas fica aqui a ideia de projeto de investigação...

É possível que o mecanismo que leve à preferência da forma irregular dos particípios passados seja a hipercorreção que resulta do medo de erro: irregular é mais difícil e, por isso, mais seguro, porque mais difícil é mais correto. (Como se não houvesse cenouras baratas bem mais saborosas que cenouras caras…) Por outro lado, se a teoria regra&memória atrás exposta estiver certa, é normal que o facto de existir um irregular na memória bloqueie a geração de regular – quando é deficiente ou inexistente a interiorização de uma regra suplementar complexa que é seguramente “dispendiosa” em termos de processamento. Como vimos atrás, é, de facto, o que parece estar a acontecer em muitos casos: a forma irregular está a substituir completamente a forma regular – embora o seu uso nos tempos compostos seja criticado pela norma culta conservadora, ela encontra-se também com frequência no discurso das classes educadas.
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[1] As listas de particípios duplos podem ir de duas dúzias de verbos a mais de centena e meia. A maior parte é, porém, muito exagerada, pelas razões apresentadas no texto: incluem adjetivos que não são de facto particípios passados e incluem arcaísmos.
[2] Estou provavelmente a simplificar demasiado. Pode discutir-se se o uso nos chamados estados resultantes de verbos que exprimem ação é ou não verbal: partiu-se > ficou partido, morreu > está morto, etc.
[3] O uso verbal de nado (nato nunca se usa verbalmente) é claramente arcaizante: quem disser ou escrever que foi nado em Coimbra viveu há séculos ou quer soar como alguém de que viveu há séculos. É de notar que nascer tem uso transitivo noutras variantes do português, como o português de Moçambique, com o sentido de “dar à luz, parir”, mas sempre com o particípio regular.
[4] Tinha morto e foi morto são formas de matar (embora a primeira seja criticada), mas nunca de morrer, pelo que não faz sentido considerar que há uso verbal da forma irregular morto do verbo morrer. Sobre a questão do estado resultante, ver nota 2.
[5] É certo que os dicionários registam usos transitivos do verbo, mas são tão raros que nunca os vi em lado nenhum. Duvido que vago seja alguma vez usado como componente de uma forma verbal.
[6] Embora possa efetivamente ocorrer em passivas, o particípio passado incurso ocorre apenas sempre nos mesmos contextos de linguagem jurídica. As ocorrências são tão específicas que proponho que se tratem como cristalizações, isto é, formas antigas que ocorrem em expressões fixas. A característica destas formas é que não estão disponíveis para usar noutros contextos, pelo que não se aprendem e flexionam livremente.
[7] Móia, Telmo, “Algumas áreas problemáticas para a normalização linguística – disparidades entre o uso e os instrumentos de normalização”, in Actas do XX Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística. Lisboa: APL, 2004, pp. 109-125, disponível em linha.
[8] “O CETEMPúblico (Corpus de Extractos de Textos Electrónicos MCT/Público) é um corpus de aproximadamente 180 milhões de palavras em português europeu, criado pelo projecto Processamento computacional do português (…) após a assinatura de um protocolo entre o Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT) português e o jornal PÚBLICO em Abril de 2000.”
[9] A aceitação dos particípios passados empregue e encarregue varia de gramático para gramático. É inegável, porém, que, pelo menos em português europeu, as formas não só existem como são frequentes, com tendência até a tornarem-se dominantes.
[10] Há verbos formados das formas irregulares do particípio, cujos particípios passados irregulares, por isso, pertencem atualmente a dois verbos diferentes, como expresso (de expressar e exprimir) e frito (de frigir e de fritar). Se frigir é claramente um arcaísmo, exprimir coexiste com expressar no português europeu atual.
[11] Além da teoria descrita no corpo do texto, conheço outras duas teorias sobre a produção e memorização de formas flexionais irregulares: uma diz que as formas flexionais irregulares, como todas as outras formas flexionais, são produzidas pela nossa mente a partir de regras computacionais – as formas irregulares a partir de regras menores; a outra diz que todas as formas são memorizadas a partir de um sistema complexo de relações entre traços das diversas formas. Para quem queira mais informação sobre a questão, sugiro o texto (em inglês) de Steven Pinker “Words and rules” in Lingua 106, 1998, pp. 219-242 (a informação sobre as três teorias não é neutra, Pinker defende uma delas).

18/11/13

Uma injustiça… ou O que se diz, quem o diz e quando…

É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro. 
A frase é conhecida em múltiplas traduções e atribuída a muita gente, mas parece provável que tenha origem escandinava. O autor, não se sabe ao certo quem tenha sido…

A frase dinamarquesa é Det er svært at spå, især om fremtiden e o verbo spå descreve, na origem, o que fazem bruxos, adivinhos e videntes: “adivinhar o futuro” (atualmente, significa também fazer profetizar sem auxílio de artes mágicas de tipo nenhum…). Uma tradução mais literal da frase seria “É difícil profetizar, sobretudo o futuro.”

Muitas vezes, a frase é atribuída ao físico Niels Bohr ou ao humorista Storm P. (Robert Storm Petersen), mas eles parecem não ter feito mais que repetir o brincalhão aforismo, que era já conhecido na altura. O político K. K. Steincke refere a expressão num livro de memórias de 1948, dizendo que ela tinha aparecido no parlamento dinamarquês entre 1935 e 1939. Há, porém, um registo mais antigo de uma frase semelhante, que poderia estar na origem da piada dinamarquesa: o norueguês Fredrik Paasche teria escrito em 1918, num artigo no jornal Samtiden, “Det er en vanskelig sak å spå om fremtiden”, “É coisa difícil profetizar o futuro”. Talvez a tradução portuguesa soe apenas a redundância, mas, a julgar pela maneira como a frase é referida na discussão da origem da expressão, parece que, em “escandinavo”, soa claramente a dito espirituoso e não a erro.

Nem imaginam o que se tem escrito sobre a origem desta frase*… Agora, o que eu quero com esta conversa toda é dar conta de uma injustiça: se for Niels Bohr ou Storm P. a dizer uma coisa assim, acham todos muita graça à boutade (pois, pois, boutade, para ser mais fino); se for o João Pinto a dizer que só faz prognósticos no fim do jogo, a reação é logo outra… Já viram como vocês são?
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* Para não vos mandar para páginas em dinamarquês ou norueguês, eis um resumo da discussão em inglês (com uma incorreção pelo meio, felizmente notada nos comentários). Este texto tem um bónus no fim, um delicioso excerto de um discurso de Michael Berry sobre a atribuição de ideias científicas.

14/11/13

Sobre preconceito e rotinas

Preconceito é uma palavra com conotações negativas, mas não é forçosamente mau ter pré-conceitos sobre as coisas. Depende de que pré-conceitos e sobre o quê. Já aqui o disse uma vez: é-nos muitas vezes apresentado como ideal o despir-se de preconceitos e ver ou pensar constantemente as coisas como se as víssemos ou pensássemos pela primeira vez, mas, da realização desse ideal resultaria, muito provavelmente, mais confusão e cansaço que iluminação ou deslumbramento. É muito útil ir armazenando ideias sobre as coisas, os seres e as categorias de coisas e seres que vamos encontrando – para não termos, precisamente!, de os reanalisar de novo a partir do zero quando os voltamos a encontrar. Os indispensáveis mecanismos que produzem os preconceitos são, em última análise, os que nos permitem, ainda em bebés, aprender a nossa língua materna, por exemplo: fazemos estatísticas sofisticadas de toda a informação que os sentidos recolhem e chegamos a conclusões importantes sobre quais são os sons relevantes para a nossa língua – ou sobre qual o comportamento típicos dos gatos ou das pessoas com quem lidamos, nesta ou naquela situação.

É claro que estes cálculos inconscientes, por úteis que sejam, estão muito longe de ser sempre corretos. Por um lado, a nossa experiência direta do mundo engana-nos amiúde e a verdade é muitas vezes contraintuitiva – sabiam que não é o sol que se desloca no firmamento por cima de nós? Por outro lado, os conceitos prévios nem sempre resultam da nossa experiência, já que na computação da ideia que temos dos outros entram também as ideias e imagens que nos foram transmitidas e que não correspondem ao resultado de nenhuma análise estatística dos seus comportamentos. De maneira que é mesmo necessário ponderar com cuidado o que se aproveita e o que se deita fora dos pré-conceitos. Mas primeiro, e isso é provavelmente ainda mais difícil, é preciso ganhar consciência deles...

Alvo do mesmo tipo de críticas que os preconceitos costumam ser as rotinas: Idealiza-se muitas vezes uma vida em que se faça apenas o que os apetites nos vão pedindo, descartando tudo o que é impensado, mecânico. É certo que deixamos, às vezes, que uma parte demasiado grande da nossa vista seja gasta em atividades automáticas; mas também as rotinas não merecem críticas apenas: às vezes são, como os preconceitos, mecanismos úteis de poupança de tempo e recursos. E podem também facilitar, acho eu, a vida em comum, não só de casais ou de famílias, mas de qualquer grupo de pessoas. Tem sido dito muitas vezes e é bem verdade: deixar que uma relação assente apenas em rotinas é matar essa relação. Passa a ser uma relação aparente, uma coabitação. Por outro lado, uma relação sem rotinas nenhumas pode ser extenuante, pondo demasiadas vezes em confronto vontades diferentes. É bom deixar que se instalem – ou criar – as suas rotinas...

Não me entendam mal: a moral da história não é que o preconceito e a rotina são coisas boas e que se deve por isso cultivá-los – apenas que se pode compreender que utilidades podem ter. Mas não podemos deixar que os pré-conceitos nos ceguem para conceitos novos, que nos impeçam de ver as coisas como são mas não pensávamos que elas fossem. E o mesmo as rotinas: nenhum músico pode improvisar bem se não tiver os dedos rotinados em escalas e fraseados vários, mas será sempre um improvisador desinteressante se se limitar a repetir esses automatismos. Mesmo nas rotinas que fomos nós a decidir para nós próprios, há que deixar espaço para, de repente, as ignorarmos completamente.

04/11/13

A língua de Camões, de Cervantes e de Shakespeare

Uma vez, na faculdade, apresentei, numa aula de literatura portuguesa, um trabalho sobre uma cantiga d’amigo e li o poema com a pronúncia da época. Tive de praticar muito, porque não é muito fácil, mas não vi o meu esforço muito recompensado – acho que as pessoas não acreditaram que era assim que se falava na altura; e acharam, muitas delas, que era um gesto pretensioso.

Fiz o mesmo numa aula de literatura francesa medieval e foi diferente: a professora, que não sabia ela própria pronunciar provençal antigo, lembrava-se de que tinha ouvido os mestres dela, em França, lerem poemas provençais medievais. “De facto, não sei avaliar se pronunciou bem ou não”, disse ela quando eu terminei, “mas soa muito como aquilo que me lembro das minhas aulas em França.” Também na universidade, tive um professor (francês) de língua francesa que trabalhou com literatura medieval e lia sempre com a pronúncia de época.

Já ouvi várias vezes Chaucer (c. 1343-1400) dito com pronúncia do seu tempo[1]. Mas, tirando na tal aula de Literatura Portuguesa de que falo atrás, nunca na minha vida ouvi um poema português antigo lido com pronúncia da época, não sei por quê… De facto, estou convencido de que muitos portugueses de hoje pensam que D. Dinis (1261-1325) ou Camões (1524-1580) falavam como eles falam[2]. Mas não. Falavam de uma maneira muito diferente da nossa (e muito diferente um do outro…) e foi com a sonoridade da língua que falavam – e para essa sonoridade – que os seus poemas foram escritos, não com/para a sonoridade do português que hoje falamos.

Atualmente, já se representam Shakespeare (1564-1616) e Molière (1622-1673) em pronúncia da época, como se pode ver nos vídeos abaixo, mas não tenho informação de que alguma vez Gil Vicente ou António Ferreira, por exemplo, tenham sido representados com pronúncia do seu tempo. É certo que Gil Vicente (c.1465-c.1536) é mais distante de nós que Shakespeare ou Molière, mas creio que, com a ajuda do texto escrito em grafia moderna, um pouco como se acompanha uma ópera com o libreto, as peças seriam compreensíveis para a maior parte dos espetadores. Digam-me lá: devo ter esperança de algum dia ver uma peça de Gil Vicente com a pronúncia da época?

É curioso: neste aspeto, o cinema parece ser menos inovador que o teatro, apesar de o eventual uso de legendas poder resolver todos os problemas de compreensão de pronúncias antigas e as técnicas cinematográficas, com dobragens, repetições, etc., permitirem uma maior afinação dessas pronúncias. É uma coisa em que penso sempre quando vejo filmes históricos: para quando o primeiro filme falado com pronúncia da época? Há filmes falados em línguas da época antiga que descrevem (como latim em Sebastiane e latim, hebraico e aramaico n’A Paixão de Cristo[3]). O facto é que, por muito cuidado que se tenha na reconstrução de cenários, roupa, etc., só se pode dar uma ideia de um determinado ambiente da Inglaterra do séc. XIII ou da Espanha do séc. XVI, por exemplo, se se reconstruir também a maneira como as pessoas falavam.



Neste vídeo (em inglês, sem legendas, infelizmente) David Crystal e Ben Crystal falam-nos das produções de Romeu e Julieta em pronúncia original no Globe Theater e explicam como essa pronúncia permite ressuscitar rimas e jogos de palavras doutra forma perdidos. O vídeo responde também àquela pergunta inevitável quando se fala destas coisas: “Mas como se sabe como falavam antigamente? Não havia gravadores…” De facto, a resposta podia ser mais completa, mas isso implicaria entrar em explicações muito técnicas.



Excerto de Le Bourgeois Gentilhomme, de Molière, pela companhia Poème Harmonique, dirigida por Vincent Dumestre e Benjamin Lazar, responsável pelo trabalho de pronúncia restaurada (infelizmente, a qualidade da imagem não é a melhor). Esta peça de Molière é, precisamente, um documento que nos dá informação sobre a pronúncia do francês no séc. XVII – pelo que faz ainda mais sentido que seja representada com a pronúncia da época. Além de traços como a pronúncia dos ss finais, alguns notarão a semelhança com muito do francês canadiano. De facto, é um lugar comum dizer que o francês canadiano parece francês antigo e é, em grande medida, certo: como aconteceu com as outras línguas europeias transplantadas para a América, o francês manteve no Canadá muito traços antigos da pronúncia – talvez mais que as outras línguas por uma grande parte dos seus falantes viver em grande isolamento, provavelmente...
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[1] Podem ouvir o início d’Os Contos de Cantuária em pronúncia da época, mas, mesmo que tenham muito bom domínio do inglês, é melhor acompanhar com o texto, senão são capazes de não compreender grande coisa. E mesmo com o texto…
[2] Creio que alguns portugueses não gostariam de ouvir Camões com a pronúncia do seu tempo – havia de lhes soar demasiado abrasileirado ou espanholado, por causa das vogais abertas. Mas isso é outra conversa…
[3] Nestes dois filmes, a pronúncia do latim não é trabalhada com rigor. N’A paixão de Cristo, nem se usa pronúncia restaurada, mas sim a clássica pronúncia italianizada.

02/11/13

Nascer onde nasce o sol

Há cerca de dois anos, disse-me a minha filha mais nova:
Sou meio dinamarquesa meio portuguesa, mas nasci na Dinamarca. Quando for velha, quero ir para Portugal e morrer lá – como o sol, que nasce a leste e se põe a oeste.
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Não sei se é comum associar o nascer do sol ao lugar onde se nasce, mas dá, às vezes, bom resultados:

The Divine Comedy (Neil Hannon), "Sunrise" (1998), ao vivo no Palladium, Londres, 2004

31/10/13

Vida e morte de Isabelle Eberhardt

Conheci Isabelle Eberhardt num texto de Catherine Darley no blogue Poemas del río Wang e apaixonei-me por ela. Por Isabelle Eberhardt, quero eu dizer. Não fosse ter-me apaixonado e limitar-se-ia este texto a uma ou duas fotos e ligações para os vários textos a partir dos quais o construí[1]. Mas, como me apaixonei, decidi fazer uma biografia canónica, em que a vida de Isabelle Eberhardt aparece cronologicamente arrumada. Em muitos casos, não faço mais que traduzir, de forma livre, as minhas fontes. Duvido que o texto venha a ter muitos leitores, de longo que é, mas, depois de muito o cortar, não consegui encurtá-lo mais. Façam favor!

Numa carta ao diretor do jornal Petite Gironde, datada de 23 de abril de 1903, Isabelle Eberhardt faz uma autobiografia:
Filha de pai muçulmano de nacionalidade russa e de mãe russa cristã, nasci muçulmana e nunca mudei de religião. Tendo o meu pai morrido pouco depois do meu nascimento, em Genebra, onde morava, a minha mãe ficou na cidade com o meu velho tio-avô, que me criou completamente como rapaz, o que explica por que há muitos anos visto roupa masculina.
Comecei primeiro o curso de medicina, que abandonei ao fim de pouco tempo, irresistivelmente atraída pela carreira de escritora.
Com 20 anos, em 1897, fui com a minha mãe para Anaba, na Argélia, onde ela morreu passado pouco tempo, depois de se converter à fé muçulmana. Voltei então para Genebra, para aí cumprir o meu dever filial para com o meu tio-avô, que morreu, também ele, pouco depois, deixando-me uma pequena fortuna! Sozinha, ávida de desconhecido e de vida errante, voltei para África, onde percorri sozinha, a cavalo, a Tunísia e a Argélia oriental, bem como o Saara Constantino. Para maior comodidade e por gosto estético, acostumei-me a usar roupa árabe, e falo bastante bem a língua do país, que aprendi em Anaba.
Em 1900, estive em El Oued, no extremo sul da província de Constantina. Conheci aí o Sr. Sliman Ehnni, nessa altura sargento dos spahis. Casámo-nos segundo a tradição muçulmana.
Nos territórios militares, em geral, os jornalistas são mal vistos, porque gostam de meter pauzinhos na engrenagem... Foi esse o meu caso: desde o início, as autoridades militares, que, nessa zona, são também administrativas (Gabinetes dos Assuntos Árabes), mostraram-se muito hostis: quando demos conta, o meu marido e eu, da intenção de consagrar o nosso casamento religioso através de uma união civil, foi-nos recusada a autorização para tal.
A nossa estadia em El Oued durou até janeiro de 1901, altura em que, em circunstâncias muito misteriosas, fui vítima de uma tentativa de assassinato por parte de uma espécie de louco nativo. Apesar dos meus esforços, não se esclareceu esta história no julgamento que decorreu em junho de 1901, perante o Conselho de Guerra de Constantina.
Ao sair do Conselho de Guerra, a que, naturalmente, tive de comparecer como principal testemunha, fui bruscamente expulsa do território argelino (e não de França), sem que se dignassem sequer explicar-me os motivos de tal medida. Fui brutalmente separada do meu marido. Como se tinha naturalizado francês, não era válido o seu casamento muçulmano.
Refugiei-me junto do meu irmão, em Marselha, onde o meu marido logo se veio juntar a mim, pedindo colocação no 9º regimento de hussardos. Aí, foi-nos concedida licença para nos casarmos, após inquérito e sem qualquer dificuldade... É certo que foi em França, longe dos proconsulados militares do Sul da província de Constantina. Casámo-nos na Câmara Municipal de Marselha, a 17 de outubro de 1901.
Em fevereiro de 1902, terminou o período de serviço do meu marido, ele deixou o exército e voltámos para a Argélia. O meu marido foi pouco depois nomeado khodja (secretário - intérprete) na comuna mista de Ténès, no Norte do distrito de Argel, onde ainda está. Esta é a minha vida real, a vida de uma alma aventureira, livre de mil pequenas tiranias, daquilo que se chama os costumes, o “património”, e ávida de grandes espaços abertos, e de uma vida variada e livre.
Talvez a breve autobiografia de Isabelle Eberhardt vos desperte a curiosidade e talvez a achem demasiado sucinta. Para quem queira saber um pouco mais sobre a escritora suíça, desenvolvo um pouco a sua história:

A mãe de Isabelle chamava-se Nathalie e era uma aristocrata de São Petersburgo. O pai, não se sabe quem foi; nem se sabe se a própria Isabelle o sabia. É improvável, porém, que tenha sido um «muçulmano de nacionalidade russa», como ela diz na carta ao Petite Gironde[2].

Com 22 anos, Nathalie casou-se com Paul de Moerder, de 63 anos, um general russo de origem alemã. Paul tinha dois filhos de um casamento anterior e teve com Nathalie mais quatro filhos.

Em 1871, Nathalie deixou a Rússia com os três filhos mais novos e foi instalar-se em Genebra. Parece que o médico teria aconselhado um clima mais sadio, de altitude, como remédio para os problemas de saúde do filhos mais novo, então com 3 anos. Mas sugerem-se também outras razões, nomeadamente que, dado o clima fortemente antissemita que havia na Rússia da época, Nathalie, de ascendência judaica, tenha decidiu afastar-se para não prejudicar a carreira do seu marido, que fora nomeado conselheiro do czar.

Com Nathalie e os filhos viajou o precetor destes, o arménio Alexander Trofimóvski. Alexander era um homem muito austero e de uma grande erudição, que tinha tido uma educação religiosa, mas perfilhava agora ideias niilistas e individualistas. Deixou a mulher e os filhos quando começou a trabalhar para a família Moerder. Muitos creem que é ele o pai de Isabelle. Seja ou não seu pai biológico, foi, na prática, o verdadeiro pai de Isabelle e ela tinha por ele, ao que parece, verdadeiro amor filial.

Pouco depois de se fixarem na Suíça, Nathalie deu à luz o quinto filho de Paul, Augustin. Augustin é o único irmão de Isabelle com quem ela manterá uma relação muita próxima – e muito conturbada.

Quando Paul Moerder morreu, em 1873, Alexander mudou-se para casa de Nathalie e tornou-se tutor oficial dos seus filhos. Nathalie fê-lo também gestor da sua renda e Alexander comprou uma casa em seu próprio nome, perto de Genebra.

Isabelle Eberhardt nasceu a 17 de fevereiro de 1877 e foi registada como filha de pai incógnito. Se Alexander se tinha tornado amante de Nathalie e era, de facto, o pai de Isabelle, a razão para não ter assumido a paternidade pode ter sido que, nesta altura, era ainda oficialmente casado. Isabelle foi, por isso, registada com o apelido de solteira da mãe.

Isabelle e os irmãos nunca foram à escola: foram escolarizados em casa pelo tutor. Parece que receberam dele uma educação escolar ao mesmo tempo clássica e progressista. Isabelle estudou russo, francês, alemão, italiano, inglês e árabe. Leu muito e devem encontrar-se em Eugène Fromentin, Pierre Loti e Lydie Paschkoff (correspondente de Le Figaro e, segundo Edmonde Charles-Roux “a primeira mulher a fazer da literatura de viagens a sua profissão”) as suas influências no género do relato de viagens.

Em 1984, Isabelle começou a frequentar a sociedade genebrina e a interessar-se sobretudo pelos meios turcos da oposição ao sultão Abdul Hamid II. Em setembro de 1895, com o pseudónimo Nicolas Podolinsky, Isabelle publicou numa revista francesa o conto “Infernalia.Volupté Sépulcrale”[3], que trata de uma relação sexual numa morgue entre um estudante de medicina e uma morta. Em outubro do mesmo ano, foi publicado na Nouvelle Revue Moderne outro conto com o mesmo pseudónimo:“Vision du Moghreb”[4]. Isabelle tinha 18 anos e dava conta da sua atração por um mundo a que havia de se entregar completamente. Aparece no conto a personagem Mahmoud, nome que ela própria viria a usar nas suas viagens. No início de 1986, começou a escrever a novela Trimardeur [5], que nunca terminou.

Começou também nessa altura a frequentar os meios russos de Genebra. Vestia-se às vezes de marinheiro, outras vezes usava um fez. A polícia vigiava-a. Convidava para festas de fim de semana em sua casa toda a classe de marginais e revolucionários, socialistas e anarquistas, mas nunca participou em nenhum movimento. Tornou-se amiga da russa Vera Popova, que era nessa altura estudante de medicina. É a única amizade feminina que se lhe conhece. Leu Kropotkine e Elisée Reclus, descobriu o poeta russo Semyon Nadson, que começou a traduzir para francês e começou a traduzir poemas de Puchkine para árabe. Reforçou os laços com os jovens turcos e com os revolucionários arménios.

Isabelle Eberhardt em trajes exóticos. A foto da esquerda é de 1896, provavelmente de Genebra. As outras duas são de 1897 e não sei se foram tiradas em Genebra ou durante a estadia em Anaba com a sua mãe.
Em maio de 1897, Nathalie e Isabelle fizeram uma viagem a Anaba, na costa argelina. “Os muçulmanos receberam-me de braços abertos e não conheço ainda nenhum francês nem francesa. O que me desgosta aqui é a odiosa conduta dos europeus para com os árabes, esse povo de que gosto e que, inch’Allah, será um dia o meu povo”, escreve ela nessa altura a Ali Abdul Wahab, filho do governador de Mahdia na Tunísia, com quem tinha começado a corresponder-se um ano antes. E continua:
O que pensará se lhe digo que eu, sem religião, filha do acaso, criada entre a incredulidade e infelicidade, atribuo, no fundo da minha alma, a pouca felicidade que me coube na terra à bondade do Deus Clemente e Misericordioso? … Eis talvez as causas desse respeito e desse profundo apego que eu sinto pelo Islão... Depois disto, entenderá por que atribuo a minha vinda a um país muçulmano à vontade augusta de Deus, que quis provavelmente salvar-me um dia das trevas da ignorância … Sei que é o único que pode entender-me e não receber esta minha declaração com incredulidade, como alguns muçulmanos, ou com desprezo e escárnio, como todos os cristãos.
Não quer, porém, que o seu interlocutor entenda nesta confissão alguma submissão a preceitos sociais que Isabelle recusa liminarmente:
Não me creio de forma alguma obrigada, para ser muçulmana, a usar gandoura e mleya[6] e a ficar enclausurada. Estas medidas foram impostas aos muçulmanos para os salvaguardar de possíveis quedas e os manter puros. Assim, basta praticar essa pureza e a ação será, por isso, ainda mais meritória, porque é livre e não é imposta … Diga-me com toda a consciência: tenho ou não de me pôr a fazer papel de um Dr. Grenier feminino, que parece implicar o hábito é que faz o monge, e que usar burnous ou ferrachia [tipos de vestidos] de mulher significa ser muçulmano? São as sua próprias palavras, que não é preciso mascarar-se de árabe para se ser muçulmano … Não são geralmente aqueles que fazem grandes gestos e muita confusão, para falar de maneira mais simples, que são os melhores crentes. E, para mim, o Islão, a religião mais luminosamente clara e mais grandiosamente simples de todas, para mim, nunca o Islão consistirá em ostentação gratuita …
E acrescenta, noutro lugar:
… que a mulher fique forçosamente subordinada à vontade do marido ou do amante, só por se unir a ele, isso não compreendo e nunca hei de querer admiti-lo. É o único ponto em que sou kéféra [infiel, não-muçulmana].
Ali Abdul Wahab visitou-a duas vezes durante a sua estadia em Anaba. Em julho ou agosto – não se sabe a data exata – Isabelle converteu-se publicamente ao islamismo.

A 28 de novembro, morreu Nathalie Eberhardt, aos 59 anos. Foi enterrada segundo o rito muçulmano no cemitério de Anaba, com o nome de Fatma Manoubia. Em dezembro, Isabelle voltou a Genebra: “Estou só, agora, no país dos descrentes. Ela já aqui não está para ouvir os meus pensamentos. Aquela que, com toda a sinceridade, me amava”, escreveu Isabelle.

Em março seguinte (1898) publicou na revista L’Athénée o texto “Silhouettes d’Afrique, les Oulemas”, em parte autobiográfico: Mahmoud, o protagonista do conto, tem muito da Isabelle do ano anterior:
Foi nessa altura da minha vida que o Islão me lançou este poderoso e profundo sortilégio que, pelas fibras mais misteriosas do meu ser, me amarrou para sempre à terra estranha de Dar al Islam … e foi nessa altura que o legado do Profeta se tornou a minha pátria de eleição, amada toda a vida, para além dos anos e do exílio ... Nessa altura – tinha vinte anos – eu amava da vida os chamarizes dourados ... Era um vagabundo – porque não tinha pátria ... Amava teoricamente, com um amor triste, um grande país do Norte – porque aí tinha nascido a minha querida mãe ... Ora na Terra do Islão encontrei a pátria tão desejada, tão desesperadamente desejada ... e amei-a ... Às vezes Sidi Mohammed e eu íamos à Djemaa El Bey, a mesquita de Anaba, para a oração da manhã … e com os tolbas [povo berbere], após as abluções rituais, entrávamos na sombra e no recolhimento da mesquita ... Esse momento da çabeha, e também o da penúltima oração, o mogh’reb, ao pôr do sol, foram as mais deliciosas horas de minha vida … Durante muito tempo, porém, no terrível conflito que dilacerava a minha alma envolta em trevas, ia à mesquita de uma forma diletante, quase ímpia, como esteta ansioso por sensações delicadas e raras ... E, no entanto, desde o início da minha vida árabe, o esplendor da glória incomparável do Deus do Islão deslumbrou-me, criou em mim um desejo inefável de deixar entrar no meu ser a grande luz suave ... para escapar à terrível solidão de descrença ..., para sair voando do abismo escuro da dúvida em direção às alturas do firmamento ... De todos os males que afligem a alma humana, porém, a dúvida é o mais lento.
Em julho desse ano, Isabelle decidiu casar-se com um diplomata turco e militante do movimento Jovens Turcos, mas o casamento ficou sem efeito quando o noivo foi colocado em Haia. Isabelle começou a trabalhar num romance chamado Rakhil.

A 15 de maio de 1899 morreu Alexandre Trofimóvski. Nada mais prendia Isabelle Eberhardt a Genebra e usufruía agora de uma renda generosa. Decidiu voltar à Tunísia.

Foto de 1897. Vi Isabelle Eberhardt comparada a Thomas Edward Lawrence, mais conhecido como Lawrence da Arábia. Mais concretamente, vi-a descrita como “a versão feminina de Lawrence da Arábia”. Não creio que Lawrence da Arábia alguma vez tenha sido referido como a versão masculina de Isabelle Eberhardt, embora ela seja 11 anos mais velha que ele. A relação com Lawrence da Arábia estabelece-se provavelmente através das fotos em que Isabelle Eberhardt aparece vestida com trajes exóticos, como Thomas Edward Lawrence – que sejam do Norte de África ou na Península Arábica não tem importância para o público europeu.
Isabelle partiu para a Tunísia em junho, com o irmão Augustin. Viajava vestida de homem, como muitas vezes fazia. No dia 14, chegaram a Tunes, onde Ali Abdul Wahab os esperava. Augustin voltou a Marselha e, no início do mês seguinte, Isabelle partiu para a Argélia, em direção a Batna, donde continuou para sul. Foi nessa viagem que descobriu El Oued e o Saara. Como viajava uma jovem suíça na Argélia em 1899? Eis um excerto do seu diário de viagem. Nem sempre é fácil compreender as notas de Isabelle, porque foram escritas para ela própria se recordar e não para o público, mas mostram claramente que Isabelle contactava de facto com a população local e se mantinha afastada dos franceses:
Quando estava a jantar no hotel Oasis, o capitão Susbielle, que tinha conhecido durante o dia, propôs-me que me juntasse à sua caravana para ir para Touggourth. Primeiro, aceitei; depois, durante as minhas conversas com os nativos, a minha intenção alterou-se quando me disseram da rudez desse oficial para com os muçulmanos. Não tive tempo para verificar o que contavam, mas, como queria conhecer bem os costumes do Sul, não queria perder a simpatia dos nativos e, no dia seguinte, quando o capitão Susbielle veio buscar-me, pedi-lhe desculpa por não ir na caravana, porque tinha de ficar em Biskra à espera de cartas da minha família que aí devia receber. O capitão disse-me que me esperava em Chegga, segunda etapa do caminho para Touggourth.
A 18 de julho à noite, parti para Touggourth. Os meus companheiros não estão com pressa de partir. Ficamos até às duas da manhã, num café chéouï, na parte antiga de Biskra, com o filho de um marabu e os spahis, a falar sobre as coisas do Sul.
No dia 19, às 9h, chegada ao bordj [citadela fortificada] Saada (Teïr-Rassou). Sesta pesada ao calor, depois do percurso noturno. Despertar preguiçoso. Damos um passeio.
Joguei às cartas com os chaoulyas (berberes de Aurès) duma caravana acampada perto do bordj. Para eles, sou um jovem estudante tunisino em viagem de estudo, de visita aos zaouïyas do Sul. Em Biskra, o tenente-coronel Friedel perguntou-me, no Gabinete dos Assuntos Árabes, se não era metodista. Quando soube que era russa e muçulmana, não entendeu nada. Quem não está no Saara por prazer não compreende que alguém aqui venha de viagem, especialmente fora de “época”. Se tivesse esta perspetiva, Fromentin nunca teria escrito Été dans le Sahara. É certo que não sou Fromentin, mas há que começar. E depois, cometi o erro de me vestir como toda a gente se veste por aqui.
O xeque dos chaouïyas da caravana é um velhote curioso que gostaria de estudar. Pediu-me às 3h para lhe dar uma aula de francês. Temos de nos separar ao mogh’reb (pôr do sol).
Chegada por volta das 11h30 a Bir Djefaïr, onde descansámos no pátio do bordj infestado de escorpiões. Para começar os meus estudos de viagens em caravana, enchi a guerba (odre) duma excelente água de poço, com a minha chávena de estanho.
Partida de novo às 2h30 da manhã, a bom ritmo. Chegada a Chegga por volta das 3h45. Encontrei soldados dos Batalhões de Infantaria de África de Guémar, sem graduados, que vinham de Guémar para apresentar uma queixa ao general, em Batna. Bebi café com eles.
Partimos de novo no dia 20, às 5h45. Chegámos a Bir-Sthil pelas 11h. Água boa. Conflito com o guarda. Febre, sede intensa. Não encontrei nada para comer (só me alimento de pão desde dia 18 à noite). Fizemo-nos de novo ao caminho às 9h da noite.
Às 9h, no posto de telégrafo ao sul de Sthil, encontrámos caravanas de chaambas [membros de uma etnia árabe do Norte do Saara] que iam de Barika para Ouargla. O xeque Abd El Kader Ben Ali, modelo de gentileza, oferece-se para me levar a Ouargla com a sua caravana, sem retribuição.
Cerca da 1h da manhã, quase que morro, com o meu cavalo, num sabkha (lago salino seco), a oeste da estrada.
Às 3h, desmontei e emprestei o meu cavalo a um trabalhador chéouï que ia connosco a pé, para não ficar sozinho. Vamos avançando, como num passeio, ao longo das plantações da Sociedade Françesa do Oued-Rir. Chegada a El Mérayer às 5h.
Partida às 9h. Enganei-me no caminho. Apanhei os chaambas perto da meia-noite. Encontrei uma casal de nómadas, que eram conduzidos por Abdou Fay, um negro armado, à djemâa [comuna, divisão administrativa], perto de Ourlana, para se divorciarem. Viajámos todos juntos.
Chegada a 22, por volta das 2h, à fonte a que chamam Aïn-Sefra. Descansei com os divorciados. Voltámos à estrada e passámos por El Berd às 5h da manhã. Apanhei os chaambas cerca das 7h. Às 9h, descansámos na primeira fonte do oásis de Ourlana.
Subi ao bordj. Susbielle tinha deixado ordens para não me deixarem ficar no bordj mais de 24 horas. História das medidas de cevada cortadas e das chicotadas dadas ao xeque (ou caide?). Dia de sede e de febre, protegida pelo grupo.
Partida ao mogh’reb. Passei quase uma hora a procurar, à luz de fósforos, a única fonte boa de Ourlana, na estrada para Maggar. E encontrei-a. Dei de beber ao cavalo e às mulas doentes com o meu bidão. Pus água nova na guerba. Na estrada, disputa com o xeque de Ourlana.
Por volta da meia-noite, encontrei o comandante do Círculo de Touggourth, que partiu de férias, de carro. Pelas duas da manhã, descansei, porque nos sentimos mal: tivemos os três vómitos e tonturas. Dormimos no meio do deserto, na areia.
Ao acordar, tivemos de ir à procura dos animais. O homem de Bou Saâda tentou acender um cigarro com um tiro de pistola. Deixámos para trás Lakbdar, com a sua mula, que levava o pão e a água.
Dia 23, entre as 2h e as 4h da tarde, atravessámos a ponta ocidental do Chott [lago salino] Merouan. Chegámos, Salah e eu, a El Maggar às quatro horas. Bebemos café árabe no posto árabe dos correios. Fomos à procura de Chlély e encontrámo-lo.
Saímos de El Maggar por volta das 6h. Chegámos a Touggourth cerca das 11h. Dormi o dia todo. Passei a noite nas «mulheres do Sul», com as cantoras e o Brigadeiro Smaïn.
Por volta das 4h, o califa Abd Al Aziz e o deïra [cavaleiro da comuna] Slimène vieram buscar-me para ir a casa do capitão Susbielle.Tivemos um conversa de quase duas horas, inicialmente com violência e depois com mais cortesia por parte do capitão. Recusou-se, de forma fria e cortês, a deixar-me em Ouargla, isto é, a dar aos meus guias autorização para me acompanharem.
Até às 10h da noite, andei à procura dos chaambas, para ir com eles, deixando os meus guias em Touggourth.
Encontrei Taïb, o chéouï, que disse que o xeque Abd El Kader mandava cumprimentos e que tinha ido fazer o asr [oração da tarde] por volta das 4h.
No dia 25, de manhã, voltei ao Gabinete dos Assuntos Árabes e pedi autorização para levar guias para Souf [El Oued]. Foi-me concedida.
Passei em Touggourth os dias 26 , 27 e 28. No dia 28, fui de cavalo a Témassine. No dia 29, às quatro da tarde, partimos para El Oued. Febre intensa. Caí na duna perto da guemira [marco de pedra para indicar o caminho no deserto] de Mthil. O carteiro negro Amrou acompanhou-me na viagem.
No dia 31, às 2h da manhã, pus-me de novo a caminho com o carteiro Bel Kheïr. Chegámos às 9h30 a Ferdjenn. Encontrei-me com o brigadeiro Osman e o spahi Mohamed ben Tahar. Passei o dia com febre.
No dia 1 de agosto, às 2h30 da manhã, fiz-me à estrada com o guia sufi Habib. Chegámos às 9h da manhã a Moïet El Caïd. Dormi a sesta e prossegui viagem depois do mogh’reb. Chegámos por volta das sete da manhã a Bir Ourmès. Passei o dia no jardim do xeque. Zaragata e combate de guias com o filho do xeque. Passei a noite em frente ao bordj.
Saímos às três e meia da manhã. Às quatro da tarde, fizemos uma breve paragem para beber em Kasr-Kouïnine. É inesquecível a impressão do sol a pôr-se na grande duna.
Cheguei a El Oued às sete. Deparei-me com um enterro muçulmano.
Isabelle não ficou muito tempo em El Oued. A 29 de agosto estava de volta à costa argelina. Passou por Anaba, onde se encontrou com Augustin na campa da mãe, e seguiu imediatamente para Tunes. Mas também não ficou muito tempo na cidade. Entre setembro e outubro, fez uma viagem no Sahel tunisino e em novembro estava em Marselha, com rumo a Paris. Foi nessa altura que terminou a relação com Ali Abdul Wahab – por um «assunto de dinheiro» (?).

Não parava: Paris, Marselha, Génova, Livorno e Cagliari, na Sardenha, onde encarnou, ao contrário do que costumava, uma personagem feminina. Da Sardenha, voltou a Paris, e fez, depois, várias viagens entre Genebra e Paris.

Mas o Norte de África continuava a chamar por ela. No verão seguinte (1900), partiu para a Argélia. Parece que tinha aceitado, em Paris, uma missão remunerada da Marquesa de Morès: tentar desvendar o mistério do assassinato, no sul da Argélia, do marquês de Morès, político de direita e antissemita. Se de facto aceitou esta tarefa, não se sabe que alguma vez a tenha levado a bom termo. Viajava agora como Mahmoud Saadi. Prefere sempre fazer-se passar por rapaz quando viaja no Norte de África. “Com roupa de rapariga europeia, nunca teria visto nada”, escreveu Isabelle nos Ecrits intimes, “o mundo estar-me-ia fechado, porque a vida exterior parece ter sido feita para o homem e não para a mulher.” Evidentemente, vestir-se de homem criava às vezes situações caricatas: “O chefe de posto, um capitão da Legião, olha para mim estupefacto”, conta Isabelle. “Não compreende mesmo que relação pode haver entre o meu cartão de mulher jornalista e o jovem árabe que lho dá para a mão.

Isabelle chegou a El Oued no início de agosto de 1900, para aí ficar. Foi nessa altura que conheceu Slimène Ehnni, com quem viria a casar. Slimène Ehnni era sargento dos spahis e era muçulmano de nacionalidade francesa.

Isabelle continuou a assumir a identidade de Mahmoud Saadi e era conhecida como filho adotivo do xeque El Houssine ben Brahim. Entrou para a confraria sufi Qadiriyya e casou-se com Slimène Ehnni em cerimónia muçulmana.

Em finais de janeiro de 1901, Isabelle foi atacada numa peregrinação a Behima, perto de El Oued. Um membro da confraria dos Tidjaniyas atacou-a com um sabre: “Tinha o capuz do burnous por cima do turbante, o que não me deixava ver para a frente. De repente, recebi um golpe violento na cabeça seguido de mais dois golpes no braço esquerdo.” O atacante não aceitava que uma mulher vestida de homem fosse aceite numa confraria masculina, por muito que não fosse a confraria de que fazia parte. Isabelle ficou um mês hospitalizada em El Oued. Quando saiu do hospital, foi ter com Slimène a Batna, para onde o marido tinha sido destacado, porque a sua ligação com Isabelle era considerada escandalosa. Quando chegou a Batna, foi-lhe feita uma investigação policial.

Em junho desse ano, o caso da agressão em Behima foi julgado em tribunal em Constantina. O agressor foi condenado, mas, após o julgamento, o governo geral da Argélia deu ordem a Isabelle de abandonar o território argelino, alegando que a sua vida era um fator de distúrbios.

Isabelle instalou-se em casa do irmão Augustin em Marselha, onde Slimène Ehnni foi ter com ela e onde se deu o seu casamento civil, que, fora do solo africano, tinha sido finalmente autorizado. Isabelle e Slimène voltaram à Argélia em janeiro de 1902. Instalaram-se na casbá de Argel. Slimène foi nomeado secretário-intérprete na comuna mista de Ténès, no Norte do distrito de Argel. Isabelle conheceu entretanto Victor Barrucand, director do jornal Les Nouvelles. Victor Barrucand era membro da Liga dos Direitos Humanos, criada na sequência do célebre caso Dreyfuss, e estava na Argélia para combater a agitação antissemita. Isabelle tornou-se colaboradora regular de vários jornais de Argel e colaborou na lançamento do jornal Akhbar, cujo director era também Victor Barrucand. O jornal, de tendência libertária, era editado em árabe e em francês.

Nesse mesmo verão, ela e o marido foram vítimas de uma violenta campanha de calúnias por parte da imprensa. Slimène foi colocado em Sétif, enquanto Isabelle continuou em Argel. Na carta publicada na Petite Gironde que se encontra um excerto no início deste texto, Isabelle Eberhardt defende-se dos ataques de que foi vítima. Até que ponto o que escreve corresponde ao que sente, até que ponto mente para manter a liberdade de movimentos?
Nunca tive nenhum papel político, limitando-me ao jornalismo e a estudar de perto essa vida indígena de que eu gosto e que é tão desconhecida e tão desfigurada pelos que, ignorando-a, pretendem descrevê-la. Nunca fiz nenhuma propaganda entre os indígenas e é de facto ridículo dizer que me armo em pitonisa. Em qualquer lado, sempre que disso tive ocasião, procurei transmitir aos meus amigos indígenas ideias justas e razoáveis, e explicar-lhes que, para eles, o domínio francês é bem preferível ao domínio turco, ou a qualquer outro. É, por isso, injusto acusarem-me de ações antifrancesas.
Em setembro, Isabelle partiu para o Sul de Marrocos como repórter de guerra. Isto foi logo depois da batalha de El Moungar, um marco importante da resistência antifrancesa dos berberes, que originou uma forte e longa reação da potência colonial. Tudo leva a crer que Isabelle estava realmente próxima dos movimento anticoloniais. No ano seguinte, Isabelle fez duas viagens a Marrocos. Na segunda viagem, ficou, em Hammam Foukani, na antiga zaouïa [escola ou mosteiro islâmico] do célebre resistente anticolonial Bouamama, nessa altura dirigida por Si Mohammed ben Menouar, primo e cunhado do antigo chefe, e passou os dois meses seguintes noutra zaouïa em Kenadsa. Em Setembro, voltou, doente, a Aïn-Sefra, onde foi hospitalizada.

Em outubro, o militante anarquista Ernest Girault, que Isabelle Eberhardt tinha conhecido em Argel em dezembro do ano anterior, voltou à Argélia, acompanhado por Louise Michel. Vinham fazer uma série de conferências contra o capitalismo e a opressão colonial, e Isabelle tinha-se oferecido para ser sua guia, mas não o chegou a ser – recuperada da doença, veio a morrer nas inundações que houve em Aïn-Sefra no dia 21 de Outubro de 1904. Slimène tinha chegado de visita no dia anterior. Lê-se no Petit journal illustré de 6 de novembro:
As inundações de Aïn-Sefra, 1904.
A terrível tempestade que recentemente eclodiu na região de Aïn-Sefra teve as mais terríveis consequências. Abateu-se sobre a vila e os arredores uma tromba de água, e a chuva caiu em tão grande quantidade que o oued [rio sazonal] Sefra, que costuma ser um modesto ribeiro, se encheu de repente, saiu do leito e precipitou-se na vila, inundando um grande número de casas.
A inundação deu-se tão de repente que os habitantes da vila não conseguiram prevê-la e a maioria deles não teve tempo de fugir. Foram vítimas do desastre 14 nativos e 12 europeus.
Entre os desaparecidos, encontra-se também uma escritora de verdadeiro talento, Isabelle Eberhardt. Seduzida pelos encantos da vida livre, Isabelle Eberhardt escolheu há já vários anos a Argélia como pátria adotiva. De burnous e turbante, com bom domínio do árabe, misturava-se com as tribos e escrevia estudos de costumes e contos sobre a vida árabe, com uma observação justíssima e um estilo muito pitoresco.

Isabelle Eberhardt foi enterrada no cemitério muçulmano de Aïn-Sefra. Não teve a morte quando a queria, quando todos a queremos: “quando a lassidão e o desencantamento [viessem] com o passar dos anos”. Também não teve a morte que queria, “acabar na paz e no silêncio de alguma zaouïa do Sul, acabar recitando orações extáticas, sem desejos nem lamentações, perante horizontes esplêndidos”. Mas poucos a têm...
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Obras sobre Isabelle Eberhardt:
Lesley Blanch, The Wilder Shores of Love. New York: Viking Press, 1954
Edmonde Charles-Roux, Un désir d’Orient. La jeunesse d’Isabelle Eberhardt (1877-1899), Paris: Grasset, 1988
Annette Kobak, Isabelle: The Life of Isabelle Eberhardt. New York: Alfred A. Knopf, 1989
Ian Pringle, realizador: Isabelle Eberhardt, filme, com Mathilda May, Tchéky Karyo, Peter O'Toole
Charles-Roux Edmonde, Nomade j’étais. Les années africaines d’Isabelle Eberhardt (1899-1904), Paris: Grasset, 1995
Robert Randau, Isabelle Eberhardt. Notes et souvenirs, Paris, La Boîte à Documents, 1997 Marie-Odile Delacour & Jean-René Huleu, Un amour d’Algérie. Paris: Joëlle Losfeld, 1998
Missy Mazzoli, Song From the Uproar: The Lives and Deaths of Isabelle Eberhardt, ópera multi-media. 2011 

Obras de Isabelle Eberhardt:
Amours nomades. Paris: Folio Gallimard, 2008
Au pays des sables. Paris: Sorlot, 1944
Dans l’ombre chaude de l’islam. Paris: Babel, 1996 (completado por V. Barrucand)
Ecrits intimes. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1991
Journaliers. Paris: Joëlle Losfeld, 2002
Lettres et journaliers. Paris: Terres d’aventure/Actes Sud, 1987
Notes de route. Maroc. Algérie. Tunisie. Paris: Actes Sud, 1998
Œuvres complètes I, Ecrits sur le sable (récits, notes et journaliers). Paris: Grasset et Fasquelle, 1988
Œuvres complètes II: Ecrits sur le sable, Ecrits sur le sable (nouvelles et roman). Paris: Grasset et Fasquelle, 1990
Pages d’Islam. Paris: Fasquelle, 1920 (prefácio e notas, talvez mais, de V. Barrucand)
Rakhil. Roman inédit. Paris: La Boîte à Documents, 1996
Trimardeur. Paris: Charpentier, 1922 (completado por V. Barrucand)
Yasmina. Paris: La Boîte à Documents, 1998.

Dans l’ombre chaude de l’Islam, Journaliers, Au pays des sables, Trimardeur, Pages d’Islam e Notes de route podem descarregar-se na Biblioteca Digital Romanda.
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[1] As fontes são tão variadas como a vida de Isabelle Eberhardt: além do já referido texto do blogue Poemas del río Wang, “De l’eau jusqu’au Sahara”, servi-me da entrada “Isabelle Eberhardt” da Wikipédia em inglês; de um artigo assinado por tasnim no “canal muçulmano” de um site religioso ecuménico, patheos; de um artigo de Rob Mulligan no site feminista Bad Reputation; de um texto de Elza Daix no site RoSa (Centre de Documentation, Bibliothèque et Archives pour l'Egalité des Chances, le Féminisme et les Etudes Féministes); e, sobretudo, das seguintes obras disponíveis em linha: Patricia Bourcillier, Isabelle Eberhardt, Une femme en route vers l’Islam; Khelifa Benamara, Le Destin d'Isabelle Eberhardt en Algérie; Isabelle Eberhardt, Dans l’Ombre Chaude de l’Islam, editado e organizado (leia-se acrescentado a seu bel-prazer) por Victor Barrucand. Não encontrei nada em português – todas as traduções são minhas.
[2] Isabelle escreveu também algures que tinha sido o resultado de uma violação em Genebra, mas não se sabe se o pretenso violador seria este mesmo muçulmano russo.
[3] Não consigo encontrar o original em linha, apenas uma tradução em inglês.
[4] Moghreb é um arabismo que Isabelle usa com frequência, muitas vezes com a forma mogh’reb, e que significa “pôr do sol” ou a “oração do fim da tarde”. Não encontrei este conto em linha.
[5] Eis uma versão terminada por Victor Barrucand em 1921: > aqui.
[6] Gandoura e mleya são tipos de vestidos. Isabelle Eberhardt usa muitas palavras árabes como estratégia retórica para de dar autenticidade e cor local aos seus escritos. É-me difícil descobrir o significado exato de muitas delas, como estas que descrevem roupa. Doravante, as explicações entre parêntese curvos são das obras de Isabelle Eberhardt e as explicações entre parêntese retos são minhas. Quando o termo aparece em itálico sem explicação, é porque foi explicado anteriormente ou porque não consegui encontrar o seu significado. Como não sei qual seria a transcrição portuguesa apropriada do árabe, conservo a transcrição francesa dos textos originais.

27/10/13

Mimesis?

Hoje, fomos der uma volta pela floresta fim-de-outono-quase-quase-inverno aqui perto de casa.

«Vê lá, que bonito», disse-me a minha mulher a certa altura, «parece uma pintura!».

Ouvi muitas vezes esta frase – ou frases parecidas –, mas nunca tinha pensado nisso: na velha discussão da relação entre a arte e o mundo real, haverá quem defenda que é a natureza que imita a arte?
 
[Sobre (mais ou menos) o mesmo tema, há na Travessa outro texto tão disparatado como este: rimésis]

Género e género: pioneiras da música eletrónica

“Mulher não é um género de música*”, diz Mollie Wells num artigo de Daniel Jones (Electronic Beats, 22 de Novembro de 2011). Defender que a música tem género, diz ela, revela mais de quem defende essa ideia que dos músicos que a fazem. “Defender que o sexo da pessoa que faz [a música] tem alguma coisa ver com ela”, continua Wells, “ é simplesmente… fútil. Delia Derbyshire, Daphne Oram, Wendy Carlos, Doris Norton, Suzanne Ciani, Cynthia Webster…..até Goldfrapp e Ann Shenton dos Add N To (X). Estas pessoas não estavam na periferia da música eletrónica – foram suas pioneiras.”

É certo que mulher não é um género de música, mas é um género na música, se faz sentido traduzir o trocadilho de Sara Savage no artigo “No Pants? No problem!”, publicado no Trip Magazine de Abril deste ano. “Mulher” é um género [gender, não genre] e um género bastante limitador, por tal sinal”, continua ela. E apresenta as estatística da radiofusão na Austrália, relativas apenas a vocalistas, que são significativas: “das 2.000 canções mais tocadas (…), 82% tinham homens a cantar, e só 18% eram cantadas por mulheres”. Ajustadas para o número de passagens na rádio, “as estatísticas continuavam a dar conta de uns avassaladores 76% de homens contra 24% de mulheres vocalistas”.

Não tenho estatísticas completas para vos dar, mas os números estão à disposição de quem queira gastar meia dúzia de minutos à procura deles – e pendem sempre com grande desequilíbrio para o lado dos homens! Já uma vez aqui disse (perdoem-me a autocitação, mas poupa-vos a leitura de um texto sobre canções de voz feminina escritas por homens):
Joni Mitchell queixou-se, no discurso que fez quando foi nomeada para o Rock’n’Roll Hall of Fame, de que, no princípio dos anos sessenta, era extremamente difícil para uma mulher entrar no mundo da canção, nomeadamente arranjar um contrato com uma editora e gravar um disco. Não sei se isto vos surpreende ou não, mas o facto é que as mulheres sempre foram uma minoria bastante minoritária no mundo da canção. Não vos posso dar números rigorosos, porque não os tenho, mas, nas poucas listas que tenho conseguido encontrar de autores e compositores de canções (normalmente do século XX – e com um peso grande dos primeiros 60 anos, é certo…), as mulheres são sempre à volta de 10%. É, aliás, também de 10% a taxa de feminilidade da minha discoteca, na música dita popular (incluindo rock, pop, soul, folk, etc., etc.) – e eu sou uma pessoa que me interesso por autoras compositoras.... Se, por exemplo, forem ao All Music Guide, e derem uma vista de olhos na lista dos 92 singers-songwriters que eles consideram mais importantes (agora já sobretudo da segunda metade do séc. XX), só 16 são mulheres – sendo que várias delas são, de facto, só intérpretes ou principalmente intérpretes… Noutro dia, vi uma lista dessas que há dos “melhores álbuns de sempre”, só que esta feita a partir de uma compilação de dezenas de outras listas do mesmo tipo, e, em 100, há 2 (!) discos escritos por mulheres! […] A percentagem das mulheres compositoras de música deve ser ainda mais baixa. Dou-me conta, por exemplo, que na minha discoteca (que está muito longe de ser exemplar e que tampouco é extensa por aí além, mas mesmo assim…), não tenho uma única obra de música dita “erudita”, seja lá de que período for, escrita por uma mulher; e as de jazz contam-se pelos dedos de uma mão…
Não fui ver como se alteraram (desde 2007, que foi quando escrevi o texto que cito atrás) os dados que refiro, a não ser na minha discoteca, e, aí, as coisas melhoraram: na minha coleção de música popular, de 1716 artistas, 294 são mulheres, ou seja 17% do total. Na música escrita, tenho agora obras de Lili Boulanger, Hildegarde von Bingen, Wendy Carlos (n. 1939) e Else Marie Pade (n. 1924). Mas mesmo assim…

Com estes dois nomes, Carlos e Pade, eis-nos de volta ao título e ao artigo referido no primeiro parágrafo: Pioneiras da eletrónica. Pode refletir os meus gostos, mas pode refletir mais que isso. É-me impossível afirmar com certeza que a percentagem de compositoras é maior na música eletrónica, mas é inegável que é uma área (penso que também não se lhe pode chamar género…) em cuja génese há várias mulheres incontornáveis. Além das duas já mencionadas, posso também referir, por exemplo, Daphne Oram (1925-2003); Éliane Radigue (n.1932) e Delia Derbyshire (1937-2001). Porquê? Poderia parecer que, segundo a atribuição tradicional de papéis de género, a música eletrónica seria, precisamente, uma área de que as mulheres estariam praticamente ausentes, porque uma grande parte do  trabalho pioneiro nesta área assenta na experimentação com construção de instrumentos e técnicas de produção ou manipulação de sons, ou seja, eletrónica no sentido técnico e não no sentido musical; e que não creio que esta fosse, dos anos trinta aos anos sessenta do século passado, uma área especialmente aberta a mulheres.

Além da interrogação do último parágrafo, deixo-vos, para ilustrar a conversa, uma peça de uma das pioneiras da música eletrónica: Music of the spheres, da compositora americana-alemã Johanna Beyer (1888-1944), composta em 1938 e gravada pela primeira vez em 1977. Segundo as notas do disco em que foi incluída a peça, Beyer compôs Music of the spheres como interlúdio entre duas secções de Status Quo, uma ópera (?) de cariz político. A obra é para “três instrumentos elétricos ou cordas” com tambor de fricção (lion’s roar) e triângulo” e é “uma das primeiras peças compostas de música eletrónica”. Imaginem como teria sido recebida em 1938...

  
Johanna M. Beyer. Music Of The Spheres (1938) / The Electric Weasel Ensemble

[Música das esferas é o nome de várias peças musicais e é também como muitas vezes se refere a ideia pitagórica de uma harmonia inaudível produzida pelas órbitas dos astros. Tenho um pasta chamada “Música das esferas”, com informação que fui recolhendo para escrever um texto para a Travessa..., de modo que é natural que um dia aqui apareça alguma coisa sobre o tema…]
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* Traduzo eu todas as citações do texto.