10/11/23

Uma terra de animais felizes

Uma coisa que chama a atenção a todos os estrangeiros, quando entram na Geórgia (e sobretudo se não aterrarem em Tiblíssi), é a grande quantidade de animais à solta no espaço público, sem pastores nem ninguém que tome conta deles: vacas, porcos, cães e cavalos nas ruas, nas estradas, nas autoestradas, por todo o lado, enfim.

Conheci ainda em Portugal, os cães vadios nas cidades e, fora delas, outros animais domésticos a deambular sem grandes restrições, também à beira das estradas; e vivi, em África e na América, em lugares onde muitos animais domésticos e cães vadios gozavam também de grande liberdade. Também não é só na Geórgia que os cães vadios são controlados e vacinados pelas autoridades. Mas na Geórgia os cães vadios são mais simpáticos e estão mais bem tratados. Nunca vi cães vadios agressivos, nem se veem nas ruas cães magros ou doentes. Várias vezes, nas cidades ou fora delas, fomos acompanhados por cães vadios durante muito tempo. Pareciam escoltar-nos, metendo-se entre nós e as pessoas com que nos cruzávamos, como que a proteger-nos; mas isto pode, claro, ser imaginação nossa. Às vezes, em percursos mais longos, um cão deixava a certa altura de nos acompanhar — talvez por não querer sair de um determinado território, vá lá uma pessoa saber porquê… — e aparecia outro para o revezar. Nunca pedincham, nem nas esplanadas de cafés ou restaurantes.
Uma vez, num dos nossos passeios no Alto Svaneti, veio juntar-se a nós um grande cão branco, muito limpo e bem tratado, que nos acompanhou durante uns bons dez quilómetros. Quando parámos numa aldeola, para comer uma sopa e beber uma cerveja, ficou ali um bocado à nossa espera e depois acabou por se ir embora. «É daqui da aldeia?», perguntamos ao homem do estabelecimento. Nunca o tinha visto, dali não era de certeza. São assim: acompanham os caminhantes, mas depois separam-se deles e vão à sua vida. Como farão no inverno, quando gela o Cáucaso?
Sobretudo, nunca noutros países os cães vadios e outros animais todos — que, não sendo vadios, passam a vida a vadiar — me pareceram tão felizes. Evidentemente, ninguém sabe, olhando para um bicho, se ele é feliz ou não. Mas enfim, costumam agora considerar-se animais domésticos felizes os que têm liberdade de decisão e movimentos, e parece-me uma maneira sensata de definir a felicidade dos animais. Falei várias vezes disto com outros estrangeiros de visita à Geórgia ou lá residentes, e todos eles estavam também agradavelmente surpreendidos como a maneira como os animais são tratados no país. E pensei: não deve ser assim tão difícil passar a tratar os animais, nos outros países, como eles aqui são tratados. Que pode ser perigoso deixar andar os animais à solta, causar acidentes? Corremos uma boa parte da Geórgia, das duas vezes que lá estivemos (é um país pequeno, cerca de dois terços de Portugal). Não vimos um único mamífero morto na estrada (só duas ou três aves), nem nunca vimos um acidente com animais. Deve ser por as pessoas terem mais cuidado com os bichos, por estarem habituadas a que eles andem por todo o lado. 

O que eu vi, isso sim, foi porcos a fazerem muita porcaria no meio de uma vila. É a natureza deles, não é verdade?  

Também tanta liberdade pode parecer às vezes exagerada. Na segunda noite de uma caminhada de Mestia para Ushguli, paramos para dormir numa aldeia chamada Adishi. No dia seguinte, tínhamos de atravessar um rio, que estava demasiado cheio para se passar a vau, ao que nos disseram. Mas havia quem atravessasse os viajantes a cavalo. A dona da pensão disse-nos que a filha, uma rapariga de 14 anos, tinha um cavalo e podia passar-nos. Falámos com a rapariga e combinámos o preço. Fez-nos um bocadinho mais barato que o habitual. No dia seguinte, quando estávamos prontos para seguir viagem, veio a rapariga dizer-nos que, afinal, não nos podia levar. Tinha andado à procura do cavalo no dia anterior, mas não o tinha encontrado. «Fugiu?», perguntamos nós. Não, não, ele não fugia, mas, como andava sempre à solta pelos montes, ela nem sempre sabia onde ele estava e tinha de esperar até ele voltar para casa — quando lhe apetecia. 

3 comentários:

jacinta disse...

Que bom! Essa liberdade, os animais daqui não têm. Assim que um cão sai de casa para passear logo o levam para o canil.

conversas várias disse...

Tens de ir ao Soajo, Vítor.
Cavalos e vacas no meio da estrada e em liberdade pelos montes: quantos quiseres.
Da última vez que lá fui, ao sair da aldeia passei ao lado de uma mãe javali com uns 10 javalizinhos. Iam pela estrada abaixo aao longo de um muro, e depois enfiaram por um portão aberto.

Também vi cães vadios na Arménia. Mas não me pareceram felizes, antes desesperados de fome.

V. M. Lucas Lindegaard disse...

Hei de ir ao Soajo, mal possa, mas não é disso que se trata. Conheço muitos sítios em vários países com vacas à solta no campo e cães vadios no campo e na cidade. Cresci rodeado de cães vadios. Ainda agora há duas semanas estive a dar uma volta pelo Douro e vi muitos cães vadios. E é certo que sempre vi cães vadios magros e doentes. Agora, neste texto, devo ter-me explicado mal. Na Geórgia, as vacas à solta não são aqui ou ali: são em todas as estradas do país. Há vacas à solta na autoestrada de Batumi para Tbilíssi. Não falo de zonas de 1 quilómetro quadrado: falo de todo um país de 70.000 km quadrados. E só falo de animais domésticos no texto, nota, de bichos criados pelas pessoas. Javalis e ibex não contam. O que é surpreendente, precisamente, relativamente aos cães vadios, é que eles não são magros, nem doentes, nem esfomeados – não são como o que se espera de cães vadios, como os que há na Arménia, em Portugal e em Moçambique e em dezenas de países. E não se veem mamíferos atropelados, o que também é muito diferente de Portugal e de muitos outros países. Pode ser que, das duas vezes que lá estive, tenha tido muita sorte e tenha uma visão distorcida das coisas. Acontece. Também falei com outras pessoas com a mesma experiência, mas também isso não é evidência de grande coisa. Mas que ficámos contentes, a Karen e eu, por termos tido essa experiência, mesmo que deformada, da vida daqueles bichos, lá isso ficámos.