31/05/25

Uma ave de truz

Começo como começava (como começavam...) as redações das escolas primárias de há muito tempo: a avestruz é um animal útil, porque nos dá as penas, a carne, os ovos e uma história que é mentira.

A gema de um ovo de avestruz é a maior célula animal que existe, porque as gemas dos ovos são as maiores células animais e os ovos de avestruz são os maiores de todos: li algures que, em média, equivalem a duas dúzias de ovos de galinha. Nunca comi ovo de avestruz (acho que, neste caso, ovo deve vir no singular e entender-se como partitivo: «nunca comi um bocado de ovo de  avestruz»...)

Os espanadores de plumas de avestruz são o melhores espanadores que há. Sem comparação. Agora, há de haver muito quem ache que não se deve andar a arrancar plumas às avestruzes e eu concordo. Mas também se pode argumentar que é melhor aproveitar as penas das avestruzes que são mortas para comer que mandá-las fora e é certo. E também se pode contra-argumentar que, comprando penas de avestruz, se está contribuir para um mercado que, se for suficientemente grande, pode levar a que se produzam avestruzes especificamente para lhes tirar as plumas, passando o resto a subproduto... Nunca comi carne de avestruz. 

A história que é mentira é que a avestruz mete a cabeça na areia quando se sente ameaçada, que deu origem à expressão enterrar a cabeça na areia como a avestruz e outras parecidas, para dizer «ignorar os seus problemas/a realidade». É estranho que se tenha acreditado numa história tão esquisita. Enterrar a cabeça na areia seria uma estratégia com grandes desvantagens adaptativas, não vos parece?

Chamam-se avestruz duas espécies do género StruthioStruthio camelus (a avestruz comum) e Struthio molybdophanes (a avestruz somali). E é precisamente da palavra que define o género, struthio-, que vem o nome de avestruz. Parece que a história do nome é a seguinte: em português arcaico existia o nome estruz, que vinha do latim strūthion, provavelmente através do provençal estrutz. O nome latino vinha do grego strouthíōn, um forma  abreviada de strouthokámēlos, um composto de strouthós, «pardal»,  e kámēlos, «camelo» que era – e ainda é – o nome da avestruz e que deu origem ao seu nome científico atual. O que é curioso, não só em português, como também noutras línguas, é que se tenha anteposto ave a estruz e que a palavra ave se tenha fundido com o nome do animal. É como se se chamasse reptilagarto a um lagarto, por exemplo... 

Os dicionários dizem que avestruz pode ter os dois géneros, mas creio que a diferença é dialetal: diz-se um avestruz no português do Brasil e uma avestruz no português de Portugal (e, creio, no português dos outros países de língua portuguesa, mas não tenho a certeza absoluta). Ave é uma palavra feminina, e já avis o era em latim, pelo que o uso do masculino significa que já ninguém associa a ave a primeira parte da palavra. Mas isso é verdade também quando se diz avestruz no feminino, não é? 

Já nem me lembro do que me levou a escrever este texto sobre a avestruz... Mas enfim, já que o escrevi, publico-o. 

30/05/25

Desequilíbrio, exagero e linhas de movimento: o que faz mexer um desenho?

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Desenhar movimento é difícil. David Apatoff diz que «captar movimento com um desenho estático exige que um artista sugira para além do que é visível.» Referindo-se apenas ao movimento humano, acrescenta que «para mostrar o que aconteceu antes ou depois do instante registado, é bom compreender a distribuição do peso do corpo e do apoio, equilíbrio e contrabalanço, a função do músculos e osso, o movimento da roupa e do cabelo.» 

Não há dúvida que é disso que se trata, e para qualquer movimento, humano ou não: dar a entender de onde se vem e para onde se vai. Mas como? Os mestres de desenho e os seus manuais ensinam várias técnicas para captar melhor as posições mais interessantes do ser ou da coisa que se mexe, aquelas que dão melhor conta da trajetória do movimento. Ainda assim, um desenho, uma pintura ou uma fotografia são, em geral, a fixação de um momento, uma fração de segundo — sem movimento por si, sem antes nem depois... 

Não sou de modo algum especialista na matéria, nem fiz sobre ela nenhuma pesquisa, pelo que corro o risco de dizer banalidades e/ou afirmar coisas que quem saiba mais que eu nunca aceitaria; mas, como amador de ilustração, banda desenhada e desenho em geral, alinho a seguir, ainda assim (isto é só um blogue, não é verdade?), umas quantas notas dispersas sobre o tema, ilustradas com desenhos tirados principalmente de bandas desenhadas, sobretudo do séc. XX, que são as que conheço melhor.

Linhas de movimento

Quero, antes de mais, começar por constatar que ilustradores e artistas de BD, sobretudo estes últimos, muitas vezes lançam mão de um recurso inexistente no desenho clássico: linhas de movimento, os traços que se usam para indicar a trajetória do movimento de uma parte do corpo, de um objeto, etc. Sendo uma convenção gráfica, sem uma correspondência direta no mundo visível, as linhas de movimento são, de facto, uma forma simples de sugerir para além do visível, para usar a expressão de Apatoff. Mas é um recurso que, em geral, não é nem suficiente nem necessário para pôr um desenho a mover-se. Há desenhos cheios de linhas de movimento que não têm movimento nenhum e há desenhos sem linhas de movimento que estão cheios de movimento.

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Figura 1: Compare-se estas duas versões de uma sequência de cinco quadros de André Franquin: em cima, a versão original, em baixo a mesma sequência limpa por mim das linhas de movimento e de um som de queda (aqui a página toda a cores). Como Franquin é mestre em imprimir movimento aos seus desenhos, não se nota nenhuma perda de movimento na versão sem linhas de movimento.

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Figura 2: A mesma experiência com outro mestre desenhador, Joseph Gilain, capaz de grande movimento: a série de baixo, a que retirei as linhas de movimento originais, não perde movimento pela sua falta. Como na figura anterior, alguns quadros ficam apenas mais vazios.

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Figura 3: Esta breve sequência de dois quadros de Ray Moore é um bom exemplo de falta de dinamismo em BD. No primeiro quadro há linhas de movimento, no segundo não. Mas as linhas de movimento do primeiro quadro são perfeitamente inúteis quando as figuras não têm dinamismo nenhum. A única figura que tem um pouco de movimento é da direita da segunda imagem, tudo o resto é perfeitamente estático. A figuras estáticas como estas, pode acrescentar-se as linhas de movimento que se quiser sem lhes conseguir imprimir nenhum movimento.

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Figura 4: Alex Raymond, um mestre do movimento e de tudo o resto. O quadro da direita, sem linha de movimento nenhuma, tem mais movimento que o da direita. Curiosamente, no da direita, a linha de movimento parece estar lá para dizer: a mulher está a esbofetear o homem e não a empurrá-lo agarrando-o pela cara, que seria a leitura natural sem as linhas de movimento – e em que o meu cérebro, apesar dessas linhas, continua a insistir.

É impossível, numa representação de um momento, imprimir movimento a gestos curtos e lentos. As linhas de movimento são então o único recurso possível.

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Figura 5: Guido Buzzelli, que tem obras repletas de movimento (ver, por exemplo, aqui ou aqui) sem praticamente usar traços de movimento, recorre aqui a linhas de movimento para indicar o movimento da mão que desenha. E fá-lo de forma engenhosa, quase fundindo as linhas de movimento e o fumo do cigarro nos traços curvos que os expressam.

Mas, enfim, não sendo nem suficientes nem necessárias para fazer mexer riscos numa superfície plana, os traços de movimento podem contribuir para o equilíbrio de um desenho, fazer parte integrante da sua composição e da sua beleza. É esse uso, mais do que apenas expressar movimento, que eu aprecio em certos desenhos em que eles são usados. 

As linhas de movimento podem ser engraçadas, bem concebidas ou até distintivas — ou tudo isso e mais, à vez — e de grande efeito visual.

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Figuras 6, 7 e 8:

Os icónicos traços de movimento de Hergé não são traços paralelos, como os de praticamente todos os artistas de BD, mas sim um rabisco constituído por uma sucessão de arcos interligados.

Linhas de movimento icónicas são também as de Albert Uderzo que unem as sandálias vazias de um soldado romano aos pés desse mesmo soldado, posto em órbita por um golpe de Obélix marcado com linhas de movimento semicirculares. Um caso em que as linhas de movimento são não só expressivas mas mesmo necessárias. Sem elas, o desenho perde graça e movimento.

Outras linhas de movimento imediatamente reconhecíveis são os longos rastos que a supervelocidade de Flash deixa atrás de si. Durante muitos anos, essas linhas fizeram parte integrante da personagem. Este desenho é de Carmine Infantino. Mas esta sequência de quadros tem um pormenor curioso. Como nota John Rozum, num artigo sobre como de desenha a velocidade (que, infelizmente, só li depois de ter concluído este texto, à excepção deste parágrafo que agora acrescento...),  «Aqui, Flash não só deixa atrás de si difusas linhas de velocidade, como vai a correr com tanta velocidade que atravessou os dois primeiros quadros antes de o conseguirmos ver...».

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Figura 9: Um magnífico quadro do mestre Leonard Starr. Aqui, além da sugestão de movimento – que não deixaria de existir sem elas –, as linhas de movimento contribuem para a composição do quadro no seu todo. É caso de se dizer que um grande desenhador é um grande desenhador é um grande desenhador.

Realismo, desequilíbrio, exagero e naturalidade

O óbvio, antes de mais: todas as pessoas têm uma ideia bastante razoável dos movimentos dos seres vivo que conhecem e percebem imediatamente um desvio às normas: «Que andar tão esquisito. O bicho deve ter alguma coisa espetada na pata...», etecetera, etecetera. Por isso, a primeira regra para desenhar movimento é obviamente desenhar algo que encaixe nas expectativas de quem vê o desenho. As posturas desenhadas para, por exemplo, correr, despir uma camisa, cair ou arremessar um objeto com a mão não têm de ser realistas ao ponto de corresponderem exatamente a uma fotografia (às vezes, posturas muito realista podem até parecer erradas, como aqui mostrei uma vez), mas há um mínimo de realismo que deve ser respeitado, e, insisto, não forçosamente no sentido de figurativismo ortodoxo.

Como já referi atrás, é muito difícil desenhar movimento curtos com dinamismo. É mais fácil exprimir o movimento de gestos largos ou longos, que impliquem que o corpo que se move passe por fases de desequilíbrio. Da mesma forma, é mais difícil imprimir movimento à representação de movimentos lentos que à representação de movimentos rápidos: mostrar em desenho os movimentos de uma mão que escreve ou que leva comida à boca é tarefa quase impossível – é incomparavelmente mais fácil dar dinamismo a um desenho de alguém que corre ou que salta. Creio que o desequilíbrio é aqui fundamental: numa imagem a duas dimensões, o desequilíbrio é muitas vezes lido como movimento e não se consegue ler desiquilíbrio em movimentos curtos ou lentos.

O nosso cérebro inclui com certeza aquilo que se denomina por vezes «física ingénua» ou «física popular», um conhecimento intuitivo de certas leis naturais. Até uma criança muito pequena ou certos animais demonstram surpresa perante certos truques de prestidigitação, por exemplo, porque sabem que é impossível um objeto que se atira ao ar não cair na vertical, um sólido passar através de outros sólidos, etc. Estou convencido de que, desde o nascimento ou muito cedo na vida, este conhecimento intuitivo inclui também o equilíbrio: sabe-se quando um corpo, seja ele um objeto inanimado, uma máquina ou um animal viola as leis do equilíbrio. Numa única imagem a duas dimensões, o que o cérebro pode fazer para aceitar uma posição impossível de um corpo ou de um objeto é lê-la como uma fase de um movimento: dando-lhe movimento, naturaliza-a — assim, já é possível. E é isto que acontece precisamente com pessoas ou objetos desenhados «em movimento» largo ou rápido: apresentam-se em posições que a serem estáticas, implicariam um inaceitável desiquilíbrio.

A corrida é um bom exemplo. Note-se que, embora todos tenham uma ideia clara de como corre uma pessoa, a maioria das pessoas não é capaz de enunciar de forma rigorosa a diferença entre marcha e corrida. Se se pensar em posturas extremas como forma ideal de imprimir movimento a um desenho, a melhor maneira de desenhar corrida seria captar o momento em que os dois pés estão no ar, porque, tecnicamente, é o facto de, na corrida, haver um momento em que os dois pés estão no ar que a distingue do caminhar. Mas são raros os desenhos que fixam esse momento, porque não é necessário. Há uma série de posições do corpo que, por muito que não desclassifiquem ninguém numa prova de marcha, toda a gente associa a corrida e nunca a marcha.

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Figura 10 (à esqueda): Lorenzo Mattotti representa aqui a corrida de uma forma quase realista, a não ser pela excessiva abertura das pernas – que é, aliás, comum quando se desenha alguém a correr, porque algum exagero ajuda a exprimir movimento. Mattotti usa a sombra para mostrar os dois pés no ar. Embora realista, este corte na sequência de movimentos raramente é usado em desenho.

Figura 11 (à direita): Este desenho de Buzzelli parece-nos natural, e até, comparado com outras expressões gráficas mais exageradas de uma pessoa a correr, bastante realista. Mas é impossível correr assim com o corpo tão inclinado para a frente. A única ocasião em que um torso de um corredor se inclina muito para a frente é o instante da partida de provas de atletismo em distâncias curtas, porque o corpo vem de uma posição de joelhos. Mas o exagero da posição do corpo ou das pernas ajuda a criar o desequilíbrio que sugere movimento.

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Figura 12 (à esquerda): É óbvio neste quadro de Will Eisner o exagero nas posições dos corredores. Há também falta de naturalidade nos braços levantados na figura da direita. O que não há é falta de movimento. Eisner sabe usar o desiquilíbrio e o exagero das posturas.

Figura 13 (à direita): Pode o exagero ser demasiado? Creio que sim. Neste desenho de John M. Burns (que não deixa por isso de ser um excelente desenhador, na minha opinião), o tradicional exagero na amplitude dos passos na corrida é tão grande que o resultado me parece estranho. Curiosamente, não sinto que haja por isso perda de movimento.

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Figura 14: É claro que tudo depende, em parte, do registo gráfico e/ou narrativo. Num registo que não se queira muito realista, como neste desenho de Hergé, aceita-se talvez o que não se aceitaria num desenho realista. Ainda assim, note-se, o movimento de corrida de Quick é perfeitamente standard também para um registo realista e mesmo o voo de Flupke talvez pudesse também ter lugar em desenhos mais realistas. 

Às vezes, a falta de movimento que sentimos em certos desenhos releva da falta de desiquilíbrio das figuras, ou de um desiquilíbrio ligeiro demais para ser percebido como movimento.

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Figura 15: Burne Hogarth preocupava-se mais em desenhar corpos musculosos ideais que desenhar esses corpos com naturalidade e dinamismo. Neste quadro, por exemplo, tenho tendência a ler a figura como fazendo força contra a porta em vez de a ler como lançando-se em corrida contra a porta, que é o que as linhas de movimento aparecer querer sugerir. O problema é provavelmente que o corpo está num equilíbrio relativamente estável, com dois pés no chão e um ombro na porta. Falta-lhe um bocadinho de desequilíbrio que me obrigasse a projetar movimento no desenho.

Agora, se pode haver exagero — e, muitas vezes, provavelmente, deve —, não pode haver falta de naturalidade. Também temos todos, sem o sabermos, padrões interiorizados de movimento natural. Por exemplo, qualquer pessoa para se levantar da cama faz os mesmos movimentos, sem ter consciência disso. Quando, no desenho, falta naturalidade aos gestos que pretendem exprimir movimento, cria-se um ruído na perceção (há ali qualquer coisa que não está bem...) e a perceção de movimento falha. Nestes casos, as linhas de movimento ou a sequência dos acontecimentos obrigam-nos a reconstruir no desenho um movimento que não vemos lá. São desenhos — pelo menos no que ao movimento diz respeito — pouco eficazes, deselegantes, sem dinamismo, no sentido próprio da palavra.

Um exemplo do Super-Homem, um herói que muitas vezes, sobretudo em histórias mais antigas, parece mais uma estátua que um ser animado, sobretudo quando voa. A estaticidade do Super-Homem da «Idade de Ouro» da BD americana tem às vezes algo de estátua, o que ajuda à criação de uma figura que se pretende épica.

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Figura 16: O autor da tira acima (Jack Burnley e/ou Wayne Boring?) tem um traço firme, escorreito e profissional, mas o dinamismo e a naturalidade das suas figuras deixam muito a desejar. Evidentemente, a todos os desenhadores de homens ou deuses voadores se põe a dificuldade de ter de desenhar uma situação que não se pode observar. Como voa um humano? Mas é clara a falta de naturalidade do gesto de despir a camisa. E a célebre posição de voo do Super-Homem, embora tendo tido grande fortuna, é de uma grande falta de naturalidade.

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Figura 17: Mais um Tarzan, agora jovem e por Benito Gallego. Nem sempre a falta de naturalidade afeta o movimento. Neste caso, por exemplo, a posição da mão direita de Tarzan é muito pouco natural (terá o artista usado como modelo um atleta de salto à vara?), mas a figura de Tarzan não perde movimento por causa disso. Já a falta de naturalidade do movimento do símio na parte superior da figura lhe rouba  movimento. (E talvez até a posição seja possível na realidade, mas é preferível não desenhar nada realista que pareça irrealista num desenho...)

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Figura 18: Não há duas sem três e eis um terceiro Tarzan, agora por Harold Foster. A sequência dos dois quadros seria perfeita e com mais movimento ainda, se não fosse o senão da posição pouco natural (impossível?) do braço esquerdo no primeiro quadro. A posição natural, estou em crer, seria a mesma que a do outro braço. Acontece mesmo aos grandes desenhadores. 

É também importante notar que, nalguns aspetos, a representação de movimento pode estar mais ancorada numa tradição de representação gráfica que na realidade. Como eu dizia noutro texto da Travessa, «normalmente, não se aprende a desenhar com base no mundo real, mas sim em desenhos». Uma coisa curiosa é a representação de pessoas que fogem em pânico. Mesmo em representações realistas, estas pessoas são representadas correndo de braços no ar, que é uma coisa que eu creio que ninguém faz.

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Figura 19: Quadro de uma BD de José Ortiz. Não é que falte movimento, mas as posturas das figuras são muito pouco naturais. A segunda figura por ordem de perspetiva parece mais patinar que correr. A figura mais próxima obedece a uma convenção: pânico = boca aberta e braços levantados..., mesmo quando se corre.

Outros recursos: som e pó e mais

É claro, é mais difícil dar movimento a objetos não animados, como um carro a alta velocidade, árvores a abanar com o vento ou um objeto arremessado desenhado em pleno ar. Não é impossível fazer com estes objetos o que se faz com animais, pô-los em desequilíbrios que forcem o cérebro do espetador a reinterpretar como movimento a estaticidade da coisa desenhada, mas há também outros truques de que se pode lançar mão. Alguns recursos simples usados muitos vezes por desenhadores, sobretudo na BD, para transmitir a ideia de movimento são os resultados perceptíveis desse movimento, como pó levantado do chão por um corredor, um cavalo ou uma mota; o ruído uma qualquer máquina com rodas; ou objetos que caem devido a um movimento brusco. 

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Figura 20: O movimento da vegetação não é fácil de representar, a não ser quando o vento é muito forte, Um dos recursos mais comuns é então a representação das árvores dobradas pela ventania. A gravura é de fins do séc. XVIII ou início do séc. XIX. Note-se o pormenor extra que contribui para «desenhar» as rajadas de vento: a personagem que segura o chapéu.

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Figura 21: Com uma grande economia de traços e recorrendo com bom resultado a linhas de movimento circulares em várias direções, Rex Maxon consegue, nesta sucessão de quadros, sugerir bem o movimento da vegetação da floresta.

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Figura 22: Um exemplo raro de uma bem conseguida sugestão de movimento das folhas das palmeiras tocadas por vento forte por Marc Bati e Jean Giraud. Mesmo que não se vissem os troncos curvados à direita da imagem, a parte esquerda do desenho transmitiria, por si só, esse movimento. 

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Figura 23: O movimento do mar é muito mais fácil de desenhar e são muito mais frequentes as representações de tempestades no mar que de tempestades em terra. Aqui um exemplo de Daniela di Matteo

Também um traço mais rápido, seja a pincel ou a pena, com contornos menos definidos, ou, no geral, formas mais esbatidas, parece transmitir melhor a ideia de movimento, sobretudo de movimento rápido, talvez porque a menor definição do que se vê corresponda à impossibilidade da nossa visão de se focar em pormenores em movimentos rápidos. 

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Figura 24: Mais um exemplo de Buzzelli. Esta imagem teria sempre muito movimento, mesmo com um enchimento a tinta mais detalhado e mais espesso. Mas creio que a leveza e a qualidade quase de esboço rápido do traço contribuem ainda mas para o movimento.

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Figura 25: Neste quadro, Leonard Starr serve-se da queda dos óculos, do candeeiro e do chapéu para dar conta de uma sucessão de movimentos que, dado o dinamismo do desenho (repare-se nas dobras do casaco), o leitor não tem dificuldade em reconstruir.

Mais uma vez, por muito que todos estes recursos sejam úteis e possam ser utilizados de forma pertinente e elegante, também não são nem necessários nem suficientes.

Sequências e sobreposições

Uma sequência de desenhos das várias fases de um movimento. é, obviamente, outra maneira de mostrar esse movimento e é, em última análise, o princípio do cinema, de animação ou não.

Uma variação sobre a ideia da sequência é a sobreposição. Há imagens que não representam um único momento, mas em que que coexistem antes vários momentos em sobreposição. Um exemplo óbvio são as fotos de longa exposição, que captam tudo o que aconteceu num determinado lugar durante um certo tempo; mas também há desenhos em que se sobrepõem diversas fases de um movimento.

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Figura 26: Neste desenho de Peyo, além dos recursos mais tradicionais referidos atrás (pó levantado e linhas de movimento), a ideia de velocidade é transmitida pela sobreposição de «várias pernas». O movimento circular das pernas, acentuado pelas linhas de movimento redondas, pretende assemelhá-las a rodas. É um recurso típico de uma banda desenhada de caricatura e comum nalguns filmes de animação.

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Figura 27: O recurso à sobreposição de várias fases do movimento num mesmo desenho aqui num registo mais realista de Irv Norvick para uma história de Flash. Note-se o progressivo distanciamento entre as várias figuras de Flash.

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Figura 28: Zil Zellub, personagem e anagrama de Buzzelli. A dança representada aqui também como sobreposição de fases de movimentos. 

Máquinas e objetos vários 

Deixo de lado os objetos voadores, que o nosso conhecimento intuitivo das leis da física percebe sempre como estando em movimento. Quanto a alguns dos outros meios de transporte, eis o que se me oferece dizer:

A posição de guiar uma mota é inconfundível e basta, por si, para a mota ser percebida como estando em movimento, como se vê no detalhe endireitado por mim à direita da imagem abaixo. Ainda assim, o mais normal é apresentar a mota inclinada, a curvar, para não haver dúvidas do movimento. São frequentemente acrescentados poeira e linhas de movimento, talvez desnecessários mas enriquecedores, sobretudo se o que se pretende transmitir é não só a ideia de movimento mas também a ideia de velocidade.

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Figura 29: Um quadro de Carlos Pino para uma série britânica de BD dos anos 70. Se compararmos o original à esquerda e o excerto endireitado, não há grande diferença no movimento percecionado. Não é propriamente necessário inclinar a mota para a mostrar em movimento, mas a inclinação dá-lhe um tudo-nada mais de movimento. Note-se o tradicional recurso à poeira, algo inverosímil num cenário urbano. 

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Figura 30: Davide Gianfelice usa neste quadro um recurso curioso: os traços que representam o asfalto funcionam também como linhas de movimento, mas linhas de movimento que não se limitam ao espaço já percorrido.

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Figura 31: Motocross com sidecar, por Jean Graton. Se, no geral, Graton tem um traço apenas competente, sem mais, não há dúvida que, em quadros como este, revela mestria na representação do movimento, integrando vários recursos: som, opacidade das rodas como percepção da sua rotação, cabelos esvoaçando, linhas de movimento e projeção de lama. 

Tirando talvez a opção de mostrar o cabelo esvoaçando num descapotável, não há diferença representável em desenho entre um automóvel parado e em movimento. Também neste caso é necessário recorrer a outros recursos, sendo muitas vezes o som um dos mais espetaculares. Note-se que, embora na vida real um carro a curvar a grande velocidade não levante de facto as rodas do chão, baixando antes a suspensão do lado da curva e levantando-a do exterior, há quem recorra a essa imagem clara de desiquilíbrio para desenhar movimento. O pó levantado é também outro recurso comum.

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Figura 32: Uma posição pouco verosímil para um taxi londrino a curvar, neste quadro de Ron Turner, com duas rodas no ar. Desiquilíbrio, exagero e linhas de movimento

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Figura 33: Sem a poeira, a imagem deste carro seria perpecionada apenas como a imagem de um carro parado. Neste caso, Leonard Starr deixa claro, através de pormenores dos lados da estrada, que se trata de um troço de terra, mas a poeira aparece algumas vezes também em ruas urbanas ou estradas alcatroadas, só para sugerir movimento
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Figura 34: Jean Graton desenhou muitas máquina movendo-se a grande velocidade: além das motas mostrada acima, também carros, entre os quais muitos carros de corrida. O barulho dos motores é uma parte importante não só da representação gráfica do movimento, mas também da organização gráfica das suas página (ver, por exemplo, aqui). 

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Figura 35: Uma originalidade de Leonard Starr: as linhas de movimento das rodas do carro em plano de fundo são ondulantes e não retas como de costume. Se não sugerem tanta velocidade como as linhas retas talvez sugerissem, condizem mais com as restantes formas do quadro, incluindo as dos automóveis, que também são redondas. 

Aos comboios, esses, ninguém lhe acrescenta marcas exteriores de movimento, a não ser, na representação de locomotivas antigas, em que o fumo, como cabelo ou crina, imprimem movimento ao desenho fluindo para trás. Não me lembro de ter visto linhas de movimento em desenhos de comboio, ou então só algumas escusadas linhas arredondadas a ladear locomotivas modernas. Provavelmente, as linhas de movimento resultam mal por coincidirem demasiado com as formas dos comboios e dos seus carris. 

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Figura 36: Estes quadros de Bill Bunce constituem uma boa síntese dos padrões de representação de comboios em movimento: uma perspetiva bem marcada, o mais das vezes em direção ao leitor; fumo no sentido contrário, se for caso disso; chuva e luz. E que mais se pode fazer? 

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Figura 37: Não é muitas vezes que se encontram recursos inovadores para expressão do movimento, como nesta sequência de Bernard Krigstein, de 1955, extraída, aliás, de uma obra que foi altamente inovadora para a narrativa em quadros (ver aqui, a preto e branco, ou aqui, a cores). Creio que, neste tipo de sequência, se exige mais do leitor que numa representação de movimento mais simples. Trata-se aqui de uma estratégia mista, de sequência de fases do movimento do comboio e, numa mudança de perspetiva frontal para lateral no terceiro, sobreposição da imagens do seu interior. O efeito é muito bonito. O pormenor da abertura dos olhos da passageira é digno de nota. 

Uma das situações em que o uso de linhas de movimento é mais generalizado é o de arremesso de objetos. Mas também neste caso as linhas indicando a trajetória da coisa lançada se podem omitir sem perda de movimento se a postura de quem o lança for correta e, exagerada ou não, verosímil. 

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Figura 38: Ponho aqui lado a lado dois quadros da série Hombre, desenhada por José Ortiz, que são exemplos canónicos da representação de um arremesso em BD: linhas de movimento do braço (curvas) e do objeto arrojado (curvas ou retas). Na realidade, a trajetória do objeto arrojado é sempre reta, por muito que as pessoas possam não conceber assim. Por exemplo, questionadas sobre a trajetória de um jato de água de uma mangueira enrolada, muitas pessoas intuem que ela seja curva...            

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Figura 39: Como acontece com o movimento (de partes) do corpo dos animais, que referi atrás, também as linhas de movimento são dispensáveis para sugerir o movimento de um objeto. No quadro da esquerda, retirei as linhas de movimento do quadro original de Ian Kennedy (à direita); e parece-me que o meu cérebro processa a informação visual sem dificuldade acrescida, incluindo o movimento da bola não assinalado na imagem. Uma pequena nota sobre o quadro de cima: encontra-se por vezes esta posição de corrida inclinada, sobretudo quando se quer representar alta velocidade. É possível passar por fases de inclinação numa corrida, mas a postura deste desenho é provavelmente exagerada – como já referi, uma forma de introduzir o desiquilíbrio que facilita a expressão do movimento.

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Figura 40: Também neste quadro de Alex Raymond, a ausência de linhas de movimento não prejudica de forma nenhuma a leitura dos movimentos na imagem, claramente mostrados pelas posições do corpo, do braço e da mão, e da pistola.

***

E creio que é, por agora, o que tenho para dizer sobre a sugestão de movimento em banda desenhada, ilustração e outros tipos de desenhos. Como me ative mais a quadros ou tiras isolados, deixo-vos agora, para terminar, três páginas de BD cheias de movimento. Cliquem nelas para as ver num tamanho aceitável. Da esquerda para a direita: Philip & Jijé, Jerry Spring: Le Maître de la Sierra, 1960; Joe Kubert, Sgt. Rock, 1972; e Enrique Sánchez Abulí & Jordi BernetTorpedo: Cuba, 1997

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As imagens usadas neste texto foram encontradas em linha e os seus direitos pertencem, claro está, aos seus autores ou representantes.
Considero porém que, dado o caráter do texto, o seu uso aqui pode ser considerado justo.

Lista das ilustrações:

  1. André Franquin, Capturez un marsupilami, 2002 (os desenhos são provavelmente de entre 1977 e 1981)
  2. Goscinny & Jijé, L'Or du Vieux Lender, 1956 
  3. Lee Falk & Ray Moore, The Phantom, 24.11.1939
  4. Alex Raymond, Calendar Girl, 30.12.1953
  5. Guido Buzzelli, L'Intervista, 1974
  6. Hergé (Georges Remi), Tintin, obra e data desconhecidas
  7. René Goscinny & Albert Uderzo, Astérix, obra e data desconhecidas
  8. Carmine Infantino, Showcase #14, 1958
  9. Leonard Starr, Mary Perkins on Stage, 1965
  10. Lorenzo Mattotti, da exposição  Attraper la course, l’art de courir, Angoulême, 2024
  11. Guido Buzzelli, I Labirinti, 1970
  12. Will Eisner, Spirit: Block Alley, 1949
  13. Robbie Morrison, Simon Fraser & John M. Burns, Nikolai Dante, data desconhecida (2000?)
  14. Hergé, Les exploits de Quick et Flupke, 1946
  15. Burne Hogarth, Tarzan, 1949
  16. Estúdio de Joe Shuster (Jack Burnley & Wayne Boring?), Superman, 1943
  17. Don Jurgens & Benito Gallego, Lord of the Jungle, 2022
  18. Harold Foster, Tarzan, 1933
  19. Alan Hebden & José Ortiz, The Tower King, 1982
  20. Franciscus Andreas Milatz, Landschap met storm en regen («Paisagem com chuva e ventania»), gravura, entre 1784 e 1808
  21. Don Garden & Rex Maxon, Tarzan and the Leopard Men, 1934
  22. Jean Giraud & Marc Bati, La nuit de l'étoile, 1984
  23. Audrey Alwett & Daniela di Matteo, Les Aventuriers de la mer: Or ou Sang, 2016 
  24. Alexis Kostandi & Guido Buzzelli, HP, 1973
  25. Leonard Starr, Mary Perkins on Stage Vol. 8, 1966
  26. Peyo (Pierre Culliford), Benoît Brisefer: Les Taxis Rouges, 1962 
  27. Ira Norvick, The Flash #217, 1972
  28. Guido Buzzelli, Zil Zelub [?], 1973
  29. Gerry Finley-Day & Carlos Pino, Disaster 1990, 1979
  30. Andy Diggle & Davide Gianfelice, Six Guns #1, 2011
  31. Jean Graton, Julie Wood: Un Ours, un Singe... et un Side-car (versão neerlandesa), 1979
  32. Ron Turner, The Tigers, 1972
  33. Leonard Starr, Little Orphan Annie, 1995
  34. Jean Graton, Michel Vaillant: Série Noire (versão neerlandesa), 1973
  35. Leonard Starr, Mary Perkins On Stage, 12-20-1964
  36. Bill Bunce, Clear the Track!, 1956
  37. Bernie Krigstein, Master Race, 1955
  38. Antonio Segura & José Ortiz, Hombre: Su peso en oro, 1981, e Hombre: Rabioso, 1994
  39. Ian Kennedy, Stryker, 1976
  40. Alex Raymond, Rip Kirby, 511.1956

29/05/25

De atacadores, personagens e autores

Só há cerca de 15 anos aprendi a atar os sapatos como deve ser; e aprendi, vejam lá vocês, num TED talk:

Depois, há meia dúzia de anos, aprendi que (pelo menos no que respeita a atar os sapatos) «como deve ser» é uma coisa relativa, digamos assim: porque se se fizer como se deve, mas muito mais depressa, ainda é mais como deve ser, não é? Outro TED talk:

E quando pensava que já não tinha mais nada a aprender sobre os nós dos atacadores, fiquei a saber, ao rever um episódio de uma série antiga, que também podem servir para descobrir um criminoso. Quer dizer, pelo menos foi o que aconteceu nesta narrativa ficcional. E podia, por isso, acontecer na realidade, porque há um pressuposto de verosimilhança nas histórias policiais – sem verosimilhança, transformam-se noutro tipo de histórias...

Invejei a inteligência do autor da história: «Quem me dera conseguir escrever uma história assim!» E depois pensei que também poderia antes invejar a inteligência  de Columbo e pensar: «Quem me dera conseguir desvendar assim um caso de assassínio!». Mas, neste caso concreto, a inteligência do autor e a inteligência da personagem são a mesma inteligência, ou não?

Discute-se muito, sempre se discutiu, o caráter da relação entre a obra de arte e o seu autor. Mas é conversa ampla de mais; afunilemos um bom bocado a conversa e atentemos só num aspeto específico da relação entre autores de ficção – policial ou outra qualquer, literária ou cinematográfica, não importa – e as suas personagens.

Um/a autor/a pode dar às suas personagens todas as características que conheça ou saiba sonhar e que não têm de ter a ver – e normalmente não têm mesmo nada a ver – com as suas próprias características: por exemplo, e para referir apenas qualidades positivas, pode criar pessoas mais fortes que a sua pessoa, mais audazes, mais rápidas, mais bonitas, mais bondosas, fazendo-as mostrar na história, em ações e palavras, a força, a audácia, a rapidez, a beleza ou a bondade que são maiores que as suas próprias. Todas as capacidades, exceto as capacidades cognitivas: não consegue pôr nenhuma personagem a ser mais inteligente, mais perspicaz ou mais sábia do que ele é. Pode dizer que a personagem é a pessoa mais inteligente do mundo, sem mostrar concretamente na narrativa, mas mais que isso não pode. Pode dizer: Columbo, o mais astuto detetive que alguma vez se conheceu, consegue desvendar mistérios mais complicados do que alguma vez foram escritos por um autor policial. Mas só isso. E de maneira que é assim e para lapalissada não está mau: a personagem Columbo não consegue desvendar nenhum mistério que o seu autor não consiga também desvendar. 

P.S. 1: O que se aplica às capacidades cognitivas aplica-se também às capacidades retóricas: se eu criar, numa narrativa realista, uma personagem que é um poeta extraordinário, admirado pelo público e pelos críticos, o melhor é nunca aparecerem na história os poemas desse poeta... 

P.S. 2: Os três vídeos acima têm legendas em português, mas o terceiro, da série Columbo, tem legendagem automática, que nem sempre é muito boa. O episódio de que o vídeo foi extraído é o primeiro da quarta série e data de setembro de 1974. O autor da história é Larry Cohen



08/05/25

Canções que referem outras canções #9: "Thirteen" e "Paint It Black"


A canção “Thirteen” foi escrita por Alex Chilton e Chris Bell e foi publicada originalmente em #1 Record dos Big Star, de 1972. A canção está na 396ª posição da lista das 500 melhores canções de sempre da revista Rolling Stone. É claro que fazer parte de uma lista dessas não diz nada sobre a canção nem sobre a sua qualidade. Mas olhem que eu, apesar de achar listas de melhores canções uma coisa bastante pateta, se fosse obrigado um dia a fazer uma lista dessas (espero que tal nunca aconteça!), era bem capaz de a incluir.

“Thirteen” é uma canção do início dos anos 70 sobre a adolescência em meados dos anos 60. Quando escreveram a canção, partindo do princípio que ela foi escrita em 1971, ano em que foi gravada, Alex Chilton e Chris Bell deviam ter 20 anos. A adolescência era ainda uma memória recente. Quando saiu “Paint it Black”, na primavera de 1966, Chilton e Bell tinham 15 anos.

 Won't you let me walk you home from school?
Won't you let me meet you at the pool?
Maybe Friday I can get tickets for the dance
And I'll take you


Won't you tell your dad get off my back?

Tell him what we said 'bout "Paint It Black"

Rock and roll is here to stay, come inside, well, it's okay

And I'll shake you


Won't you tell me what you're thinkin' of?

Would you be an outlaw for my love?

If it's so, well, let me know, if it's no, well, I can go

I won't make you

 Muitos concordarão que “Paint It Black”, de Mick Jagger e é uma das mais importantes canções dos Rolling Stones e também está na lista das 500 melhores canções de sempre da Rolling Stone: está em número 213, uns bons lugares acima de “Thirteen”. Agora, se me forçassem mesmo a fazer uma dessas disparatadas listas, livrem-me os deuses todos de tal pesadelo, era capaz de não me lembrar de “Paint It Black”, apesar de ser uma canção que conheço de cor e há muito tempo. Ao que consigo perceber, é canção sobre uma perda. O que será que as personagens da canção “Thirteen” terão dito de “Paint It Black”?

I see a line of cars

And they're all painted black

With flowers and my love

Both never to come back


I've seen people turn their heads

And quickly look away

Like a newborn baby

It just happens everyday


I look inside myself

And see my heart is black

I see my red door

I must have it painted black


Maybe then, I'll fade away

And not have to face the facts

It's not easy facing up

When your whole world is black



06/05/25

Vivement la retraite !


Não é que eu não goste do meu trabalho, não é isso… Mas, se os anos de vida que me restam passarem tão devagar como eu pressinto que hão de passar estes sete meses que restam até à reforma, terei então ainda muito tempo de vida... 

La_Motte-Chalancon_-_Fausse_plaque_avenue_de_la_retraite_tranquille_(mai_2022)
Foto de Sebleouf, licença Creative Commons, daqui.
«Avenida da Reforma Tranquila». Placa toponímica falsa, uma brincadeira.
Para quem não saiba francês, o «nome da comuna» lê-se como
 «j'ai bien bossé e j'en profite», 
que significa
«trabalhei muito e agora disfruto disso».
Vivement significa aqui «quem me dera já». Um dos exemplos do dicionário do CNRTL para este significado da palavra é precisamente o título deste breve apontamento (que lhe tinha já sido dado antes de o consultar). Isto deve significar que ansiar pela reforma não é um sentimento incomum, também entre os franceses.  

A retraite francesa é, para os portugueses, um conhecido «falso amigo», que é como se costuma chamar às palavras que, numa determinada língua, fazem lembrar palavras de outra língua (por serem cognatas ou por simples coincidência), mas significam coisas diferentes. O que é curioso é que retrete é de facto a palavra francesa, apenas com a grafia adaptada, que foi importadas para as línguas ibéricas e que ganhou aí, vá lá saber-se porquê, um sentido específico que não se lhe conhece em francês: o de sanita. A evolução é fácil de perceber: retraite significa «retirada» ou «retiro» (além de «reforma», como no título deste texto...); e, de um dos significados de «retiro», não o acontecimento mas o lugar onde este se dá, retrete fixou-se num lugar de retiro específico, tendo em seguida passado a significar um objeto central deste lugar. Duvido muito de que, em francês, retraite alguma vez tenha referido a casa de banho, e muito menos a sanita, porque o CNRTL, que costuma ser exaustivo nas suas entradas, dando também conta dos usos antigos, não o menciona



P. S.: O CNRTL classifica vivement apenas como advérbio. É-o seguramente, quanto à sua formação e a todos os seus outros usos, mas, neste que aqui trato, porta-se como uma forma verbal impessoal, com uma estrutura semelhante (que não o significado) a uma construção como «il faut», por exemplo, requerendo um objeto direto que, no caso de ser uma proposição, vem forçosamente no conjuntivo: Vivement qu'on en finisse ! Um advérbio, defina-se como se definir, não pode exigir objetos nem orações subordinadas, não é verdade? De maneira que definir categorias das palavras em abstrato, fora das frases em que são usadas, nem sempre funciona. Já agora: um caso curioso é também oxalá em português, galego e asturo-leonês ou ojalá em castelhano, que se consideram interjeições e que se portam como aquilo que de facto são, uma oração inteira – só que uma oração árabe, tomada de empréstimo e cristalizada nas línguas ibéricas, mas que continua a funcionar na frase como o que era originalmente. Outro caso curioso é eis, de que já aqui falei uma vez.  


02/05/25

Letra de médico

Dizia um artigo da Time de janeiro de 2007:

A descuidada letra dos médicos mata mais de 7000 pessoas anualmente. É uma estatística chocante e, segundo um relatório de julho de 2006 do Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências, há também erros de medicação evitáveis que afetam mais de  milhão e meio de americanos anualmente, muitos dos quais resultam de abreviaturas e indicações de dosagem pouco claras e de letra ilegível em algumas das 3,2 mil milhões de receitas passadas nos Estados Unidos todos os anos.

Não faço ideia de qual seria a dimensão do problemas noutros países, mas, como todos sabemos, não é só nos Estados Unidos que a letra de médico tem uma longa e robusta tradição de ilegibilidade. E é incompreensível! Quero dizer, não só a letra de médico é incompreensível como é incompreensível que ela seja incompreensível. Porque será que os médicos escrevem assim? Enfim, ainda bem que agora as receitas já são eletrónicas em muitos sítios.

O rabisco abaixo é uma brincadeira que tem andado aí pela Internet e de que, infelizmente, não consigo descobrir o autor. Anónimo, passa ele então a chamar-se aqui. Sabem o que quer isto dizer (em letra de médico, claro)?

Paracetamol%20Blogue

É paracetamol, obviamente (!?).

E porque estou agora a escrever isto? Bom, recebi há bocadinho uma mensagem de uma amigo meu que é médico (ou era, seja, está reformado), em que ele me pedia a morada de um amigo comum.

«Tu já me deste a morada», escreve ele, «mas tomei nota num papel e agora não consigo ler a minha letra.»

 A sério. Para que vejam.





01/05/25

As torres dos Suanos e outras torres

 

Qualquer texto sobre a Suanécia, no Cáucaso georgiano, refere as famosas torres dos Suanos e datará provavelmente a sua construção de entre os séculos VIII e XII. A página da Convenção do Património Mundial da Unesco sobre a Alta Suanécia vai até mais longe (traduzo eu do inglês):

As origens das casas-torres da Suanécia remontam à pré-história. As suas características refletem a economia e a organização social tradicionais das comunidades suanas. Estas torres têm geralmente de três a cinco andares e a espessura das muralhas vai diminuindo a partir da base, dando às torres um perfil esguio e afunilado. As moradias têm geralmente dois andares. No rés-do-chão, há uma única sala com uma lareira e alojamento para pessoas e animais domésticos, estes últimos separados das pessoas por uma divisória de madeira, muitas vezes ricamente decorada. Um anexo no corredor contribuía para o isolamento térmico do edifício. O piso superior era utilizado pelas pessoas durante o verão e servia também para guardar forragem e ferramentas. Uma porta no segundo andar dava acesso à torre, que tinha também uma ligação ao corredor que protegia a entrada. As casas-torres eram utilizadas como residência e como postos de defesa contra os invasores que assolavam a região.

Pode parecer-nos surpreendente que construções familiares, mesmo sendo de alguma forma militares, tenham durado tanto tempo, mas não nos virá a surpresa do hábito que temos de associar monumentos à aristocracia ou à religião?

De facto, há um pouco por toda a parte habitações privadas de camponeses e burgueses que foram construídas há muito tempo, mas a maior parte delas sofreu tantas modificações que é mais correto dizer que começaram a ser construídas há muitos séculos. Evidentemente, isto passa-se também com pontes e arcos, igrejas e conventos, castelos e palácios, e todas as construções enfim, de que se costuma datar a construção, mas não surpreende que se passe em maior escala em construções mais modestas e que servem fundamentalmente para habitação. 

As grandes torres meio fortaleza meio armazém, como as da Suanécia, parecem ser uma exceção de longevidade com poucas alterações na sua arquitetura. E eu, que nunca tinha visto nada semelhante noutras partes do mundo, pensei, quando descobri essas torres dos Suanos, que eram um fenómeno único, que só havia torres daquele tipo naquela zona. Mas não é bem assim. Escreve Studiolum no seu blogue Poemas del Río Wang (traduzo eu do inglês):

Os povos das planícies, sobre os quais a abóboda celeste paira a uma altura inalcançável, constroem cúpulas que imitam esse céu: iurtas, mesquitas, catedrais. Os povos das montanhas constroem torres, como se só fosse preciso somar aqueles vinte metros aos seus mil ou dois mil metros de altitude para conseguir tocar o céu estendendo apenas a mão. Depois das torres de Assis e de San Gimignano, do vale de Theth na Albânia, das casbás marroquinas e das torres do Svaneti, Tusheti e Inguchétia, as torres de Kham, no leste do Tibete, fornecem mais provas disso.

É uma explicação muito romântica da construção das torres, mas cheia de charme. (Ou talvez se deva usar um «portanto» em vez de um «mas»…) O artigo dá informação muito interessante sobre as torres tibetanas, ilustrada por excelentes fotografias. 

As fotografias das torres da Suanécia são minhas. 

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Alta Suanécia: Adishi com as suas torres
Torres%2003%20Adishi
Infelizmente, nem todas as torres da Suanécia estão em bom estado
Torres%2005%20Ushguli
Ushguli é uma das localidades da Alta Suanécia com mais torres mais bem preservadas

Não é só na Alta Suanécia que há casas-torres na Geórgia. «Localizada na encosta norte das Montanhas do Grande Cáucaso, Tusheti é famosa pelas suas casas-fortaleza e torres fortificadas. … Semelhantes em termos de construção às torres da Suanécia, têm geralmente três a cinco andares… .

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Datlo, Tusheti, Geórgia. Foto: Lidia Ilona, CC License, daqui
Também na República da Inguchétia na Federação Russa se encontram casas-torres semelhantes às da Geórgia.

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Pyaling, Ingushétia. Foto: Timur Agirov. CC License, daqui
      
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Foto: LigaDue, CC License, daqui

Também há casas-torres em várias regiões dos Balcãs. São mais baixas que as do Cáucaso, do Tibete ou de San Gimignano e também alguns séculos mais recentes, tendo a sua construção começado no séc. XVII. 

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Thethi, Albânia. Foto: Doron, CC License, daqui

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Bujan, Albânia. Foto: ShkelzenRexha, CC License, daqui

Balc%C3%A3s%2002
Vratsa, Bulgária. Foto: Nikolai Karaneschev, CC License, daqui