Parece-me pacífico afirmar que as canções, como todas as obras de arte, têm sempre uma existência independente do que delas quis quem as criou. O mais que os seus autores podem é estabelecer algumas restrições a essa vida própria que as canções ganham. Um músico e/ou um letrista podem, por exemplo, proibir as suas músicas ou as canções de serem usadas numa campanha política ou publicitária. E acho muito bem. Mas ninguém pode proibir, também por exemplo, que a sua música seja utilizada como música de fundo em lugares públicos, por muito que ache que essa utilização constitua uma violação fundamental do seu projeto artístico. Quer dizer, não sei se tem a capacidade legal de o proibir, mas é uma proibição sem possibilidade de controlo e, por isso, sem possibilidade de penalidade, pelo que não chega a ser proibição nenhuma.
Pode também discutir-se, claro está, se um autor deve poder condicionar a forma como as suas obras hão de chegar a quem as recebe; ou se as adaptações da sua obra, de formas que ele não pode prever, não constituem um natural enriquecimento da sua obra. Etc. O facto é que a legislação em vigor nos vários países e a Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas, com as suas posteriores adendas e especificações, prevê que carecem de autorização todas as reproduções, traduções e adaptações de uma obra, pelo que temos de concluir que todas as versões gravadas de uma canção são autorizadas, se não pelos autores, pelo menos pelos detentores dos direitos[1]. E uma pessoa não sabe, portanto, em certos casos, a quem se refere ao certo quando exclama «Oh, Deus meu, mas eles autorizaram mesmo estas versões?» É que há casos em que uma pessoa sente que alguém deixou ir longe demais o natural direito que uma obra tem a vida própria e se pergunta até que ponto é que as obras adaptadas são ainda versões das originais… E eu, por muito que não defenda um indefinível respeito de uma também indefinível essência de uma canção, tenho algumas vezes aversão a certas versões. Duas das minhas maiores aversões:
1
Patsy Gallant editou em 1975 uma versão já de si bastante inadmissível de “Mon Pays”, de Gilles Vigneault. Gilles Vigneault é um dos maiores cantautores quebequenses e “Mon Pays” é uma das canções históricas da identidade do Quebeque, uma canção que muitas vezes se refere como o hino informal da província.
Gilles Vigneault: “Mon Pays”, 1966
Mon pays ce n’est pas un pays, c’est l’hiver
Mon jardin ce n’est pas un jardin, c’est la plaine
Mon chemin ce n’est pas un chemin, c’est la neige
Mon pays ce n’est pas un pays, c’est l’hiver
Dans la blanche cérémonie
Où la neige au vent se marie
Dans ce pays de poudrerie
Mon père a fait bâtir maison
Et je m’en vais être fidèle
À sa manière, à son modèle
La chambre d’amis sera telle
Qu’on viendra des autres saisons
Pour se bâtir à côté d’elle
[...]
De mon grand pays solitaire
Je crie avant que de me taire
À tous les hommes de la terre
Ma maison c’est votre maison
Entre mes quatre murs de glace
Je mets mon temps et mon espace
À préparer le feu, la place
Pour les humains de l’horizon
Et les humains sont de ma race
[...]
Mon pays ce n’est pas un pays, c’est l’envers
D’un pays qui n’était ni pays ni patrie
Ma chanson ce n’est pas une chanson, c’est ma vie
C’est pour toi que je veux posséder mes hivers
Independentemente da opinião que se tenha sobre Vigneault, “Mon Pays” e a identidade quebequense, esta versão disco é uma ofensa, senão ao Québec, pelo menos ao bom gosto. Pode agora discutir-se se a versão em língua inglesa que Gallant lançou em 1977, cuja letra não tem nenhuma relação com a letra original, é ainda de mais mau gosto ou não. A versão de Gallant tornou-se um hit internacional, mas não é de estranhar que, segundo li, tenha sido silenciada nas rádios do Québec.
2
Outro caso é “Seasons in the sun”, a versão inglesa de Rod McKuen de “Le Moribond”, de Jacques Brel.
Jacques Brel: “Le Moribond”, 1961
Se a versão de McKuen e as várias interpretações que dela há são de qualidade muito variável[2], a versão que Terry Jacks lançou em 1973 e se tornou um êxito em todo o mundo é outro bom exemplo do que não se deveria poder fazer a uma canção.
Em ambos casos, é evidente que a esmagadora maioria do público desconhece as canções originais. E estou em crer (ou quero crer…) que quem as conhece sente pelas versões a mesma aversão que eu. Evidentemente, uma pessoa pode perguntar-se se as melodias dos refrães de ambas as canções (não sei se se pode falar mesmo de refrão em “Mon Pays”) não terão já na origem um caráter de popularismo imediato que não só permite como até talvez suscite estas versões. Talvez. Mas, mesmo assim…
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[1] A legislação dos EUA é diferente, para as versões de uma canção em que não haja nenhuma modificação do texto e da música originais, já que prevê, neste caso, licenciamento obrigatório, reservando-se o direito de aprovação pelos detentores dos direitos para adaptações da obra.
[2] Até à versão de Terry Jacks, as versões da canção são sobretudo por cantores folk da época: pelo Kingston Trio em 1963, pelo próprio Rod McKuen e por Alex Hassilev em 1964, por Nick Taylor em 1965 e por Bud Dashiell em 1968. A partir da versão dos Fortunes em 1968, a canção descamba quase exclusivamente para o formato pop de grande público e atinge o sucesso máximo na versão de Terry Jacks, que foi Top 1 em 20 países
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