[Este texto é uma versão revista e corrigida de um texto que aqui publiquei a 25.11.2013]
Um dos recursos utilizados por filólogos e linguistas para reconstruir pronúncias antigas é a análise de rimas estranhas, que não funcionam na pronúncia atual, mas que provavelmente já funcionaram. Se, por exemplo, na carta em verso de John Donne a Lady Carew, escrita por volta de 1612, are rima com singular e war; e fear com forbear e there; grown com complexion e none; e several com circumstantial e all, um historiador da língua tem nessas rimas material muito interessante para cruzar com outra informação que possua sobre a pronúncia da época de John Donne no lugar de onde ele é originário. É claro, é preciso saber se o poema se insere numa poética de rimas rigorosas ou se aceita rimas aproximadas ou até «rimas para o olho», em que «rimam» as letras e não os sons. Mas, quem estuda essas coisas tem naturalmente, todos esses cuidados.
É um tipo de trabalho de investigação que já não se fará em relação ao estado atual das línguas. A maior parte dos dialetos de quase todas as línguas faladas no século XX está tão pormenorizadamente descrita e documentada com gravações que os linguistas do futuro não precisarão de se dedicar a esse tipo de exercícios.
E isto tudo como introdução a uma bagatela, uma pequena curiosidade. Não deixa de ser interessante verificar que a imposição da pronúncia padrão pode esconder, às vezes, rimas que se adivinham – mas não estão lá… Em “Petisca daqui petisca”, do Conjunto António Mafra, o cantor não ousa (ou alguém não achou conveniente…) cantar com a pronúncia regional a palavra comilão, desfazendo assim uma rima que se adivinha com facilidade:
Petisca daqui, petisca, / petisca daqui, que é bom
Quem oferece o que petisca / mostra não ser comilão
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* É claro, há atualmente muito trabalho sobre a pronúncia do inglês desta época, a chamada Primeira Fase do Inglês Moderno, pelo que quem, queira saber sobre o assunto não tem de partir da análise de rimas. Eis aqui o texto de Donne acima referido lido com a pronúncia da época. Não há consenso absoluto sobre todos os pormenores do inglês da época, mas há, ainda assim, um amplo acordo entre especialistas e a pronúncia que se ouve no vídeo é muito fiável.
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