10/12/25

Vozes de alguma poesia

 

Um autor pode desejar contextos específicos para se entrar em contacto, ou simplesmente estar em contacto, com a sua poesia. Ninguém é obrigado a respeitá-los, claro está, e, na minha opinião, nada garante, aliás, que deles resulte uma versão de alguma forma mais essencial de uma determinada obra poética, porque não creio em tal essencialidade.

Uma questão interessante é a da voz da poesia. Se é certo que a poesia, em sentido lato, nasceu com voz — porque é, provavelmente, anterior à escrita —, também é certo que, ao cabo de tantos séculos de palavra escrita, ela deve ser já independente dessa voz. A chamada poesia gráfica ou poesia visual é uma expressão clara, se bem que não necessariamente a única, desta independência.

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Página de Vents, de Saint-John Perse.

«Após a revisão final, o texto é cuidadosamente paginado. 
A escolha deliberada do itálico, o uso do espaço em branco 
e os requisitos tipográficos fazem dele um objeto gráfico
imediatamente reconhecível. A qualidade visual do texto,
a aparência física do livro, mesmo para uma edição padrão,
é de tal importância para Saint-John Perse que ele
 assume sem hesitar o papel de paginador.”

Traduzo eu daqui. Foto daqui.     
Saint-John Perse, que foi prémio Nobel da Literatura em 1960, não gostava que os seus poemas fossem lidos em voz alta (traduzo eu daqui):
«Em princípio, sou contra qualquer recitação poética, que me parece, pelo menos em francês, limitar ou distorcer o alcance da escrita nas suas múltiplas vertentes, convergente e divergentes. [...] E, mais particularmente, no que me diz respeito, nunca consegui suportar a ideia de ler fosse o que fosse em voz alta, nem sequer para mim próprio, e ignoro completamente, como poeta, do som da minha própria voz. A poesia parece-me feita apenas para o ouvido interior.»
No extremo oposto de Saint-John Perse, Allen Ginsberg, por exemplo, dizia que não bastava que os seus poemas fossem bons nas páginas de um livro — tinham também «a dimensão sonora que Ezra Pound sublinhara». 

Não tenho, sobre isto, nenhuma posição definitiva. Parece-me que há poemas que ficam bem em voz alta e há outros que vivem bem do seu silêncio na página, mas não tenho para isso nenhuma justificação sólida… É só uma questão de gosto. E já que estamos em maré de gosto, o que muitas vezes me desagrada, devo confessar, é uma tradição que há de pompa e/ou dramática emotividade na declamação de poesia. 

***

É interessante ver como dizem os poetas os seus próprios poemas. Não que os digam melhor que os outros, ou que se deve seguir o seu estilo de declamação, mas talvez isso nos dê alguma pista sobre uma hipotética voz inicial dos poemas, se a há, quando a há.

Se Pound destacava a dimensão sonora da poesia, a sonoridade que gostava de dar aos seus poemas era sempre excessiva, teatral, e às vezes até algo alucinada, independentemente do tipo de poema que lia. De Ginsberg poder-se-ia esperar talvez uma declamação próxima do falar quotidiano, e às vezes aproxima-se de facto disso, mas não se afasta completamente de alguma teatralidade própria da tradição declamatória.

***

Uma declamação que sempre achei singular, eu que nada sei de declamação, é a de Alexandre O’Neill ao dizer os seus poemas. O’Neill dizia que, com a sua poesia, queria sobretudo desimportantizar ou aliviar: «aliviar os outros, e a mim primeiro, da importância que julgamos ter». Talvez a maneira de declamar a sua poesia reflita de alguma forma o seu projeto poético, desimportantizando a declamação, aliviando-a do peso e da imponência que ela muitas vezes gosta de conferir à poesia. 

Não sei. O que me parece certo é que, haja ou não desimportantização, a voz que dá aos poemas não se aproxima, como talvez se esperasse, do discurso oral quotidiano, mas martela antes algumas palavras, como que para sublinhar por que motivos — sons, ritmos, sentidos — as escolheu para o poema. Veja-se, por exemplo, como diz “Velhos de Lisboa”:

Mas o que eu pensava que era uma maneira única de dizer poesia é capaz, afinal, de não ser assim tão única: descobri recentemente que a declamação de Mário Cesariny, por exemplo, pode ser muito parecida com a de O’Neill. Eis como Cesariny diz o seu poema “Pastelaria”:

Algumas das muitas vozes, então, que os poemas podem ter...




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