12/12/25

O que existe e o que não


Deparo-me com frequência, em conversas de amigos, conhecidos e desconhecidos, com a estranha asserção de que a realidade não existe, que o que tomamos por realidade não passa de uma leitura subjetiva do mundo, que há tantas realidades como mentes, etc. Às vezes, não é realidade no todo que é negada, mas antes categorias específicas que, pelo menos aos olhos de um realista como eu, constituem partes fundamentais duma realidade perfeitamente real. O tempo é, nomeadamente, uma dimensão da realidade que muitos gostam de pôr em causa: que é uma ilusão, algo sem matéria própria além do vivido de cada um. Etc. 

Neste descontraído solipsismo cabem também, muitas vezes, apressadas interpretações de versões vulgarizadas de física quântica: que duas coisas podem estar ao mesmo tempo em dois lugares ou em dois estados, duas coisas podem estar intima e inseparavelmente ligadas entre si independentemente da distância que as separe, que um acontecimento pode ser influenciado ou até determinado por outro acontecimento posterior, que o vazio é a componente essencial de toda a matéria, eu sei lá o que por aí se ouve e vê escrito…

É claro, a esmagadora maioria das pessoas conhece e compreende tanto como eu — ou seja, nada — os complicados cálculos matemáticos que estão na base das esotéricas leis quânticas e muitas pessoas que fazem os artigos de vulgarização também não os compreendem melhor que aquelas para quem os «traduzem» numa linguagem acessível. E depois, as pessoas esquecem-se de que — como os especialistas gostam sempre de nos fazer recordar — as propriedades das partículas subatómicas não se aplicam ao nível macroscópico, em que podemos continuar a guiar-nos pela física newtoniana sem problema absolutamente nenhum. E que, às vezes, quando chamam macroscópicos a certos fenómenos quânticos, como no caso do prémio Nobel da Física recentemente atribuído, trata-se de um macroscópico ainda muito, muito microscópico para os nossos sentidos…  

É claro, não quero com isto dizer que a realidade não seja extremamente complexa, que não haja nuances  individuais na perceção da realidade (apesar de comum a todos nos seus traços gerais) e que, para descrever adequadamente certos aspetos dessa realidade, não seja necessário ir além da mecânica clássica. Claro que é. E longe de mim considerar que as teorias quânticas e as suas estranhas implicações ao nível do extremamente pequeno não se devem levar a sério. Quero apenas sublinhar duas coisas: 

A primeira é que não se deve discutir aquilo que não se compreende e a única maneira que compreender as implicações das teorias quânticas é compreender as equações que lhe dão origem. Não é nada que se possa visualizar, imaginar, explicar de outra forma. Não é nada em que se possa pensar, simplesmente, sem a matemática que lhe subjaz. E isto porque a nossa mente evoluiu para navegar um mundo ao nosso tamanho, em que a matéria é impenetrável e os acontecimentos se sucedem no tempo. 

James Ensor, A queda dos anjos rebeldes
(Val van de opstandige engelen), 1889
Museu Real de Belas Artes de Antuérpia 
A segunda é um pormenor simples de que muitos despreocupados relativistas parecem esquecer-se: se o mundo não tivesse uma realidade dura fora de nós e os nossos sentidos não tivessem evoluído para percecionar adequadamente essa realidade, se mundo, tempo e espaço não fossem senão o resultado de perceções, como poderia constituir um perigo percebê-los de maneira diferente? Ora quem, como eu, lida amiúde com pessoas que vivem efetivamente o espaço e o tempo e realidade em geral apenas como imagens mentais impossíveis de relacionar com as medidas de um relógio ou de uma fita métrica, à margem de relações causais básicas, etc., sabe muito bem que essas pessoas simplesmente pereceriam sem a ajuda das outras pessoas cujas perceções individuais da realidade curiosamente convergem – como devem! Em última análise, afirmar que a realidade não existe fora de nós pode, em certa medida, considerar-se ofensivo para quem sofre (e sofrer aqui não significa apenas «passar por; ser objeto de», mas sim «estar doente de, sentir-se mal») de dissociação da realidade causada por psicoses, demências e outras perturbações mentais. Essas pessoas não vivem apenas numa realidade diferente da minha, padecem muito por terem perdido o contacto com a realidade. Ou que vos parece?




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