10/12/25

Entre as memórias e o sonho: vozes

É capaz de ser da idade, não sei: nos momentos de calma que antecedem o sono ou o dormitar, mas também se ouço música ou se me imobilizo em contemplação de alguma coisa, parece que ouço vozes na minha cabeça. Quer dizer, talvez não seja esta a melhor maneira de o dizer. Não creio que se trate propriamente de alucinações auditivas; não são vozes claras, é tudo mais vago, como num sonho. Não sei ao certo como soam as alucinações auditivas às pessoas que delas sofrem — e que terrível sofrimento! —, mas já vi e ouvi descrições dessas alucinações e não me parece que seja o que me acontece. 
[Uma coisa curiosa é a associação que parece haver entre subvocalizações e alucinações auditivas: «pessoas com esquizofrenia que apresentam alucinações auditivas podem demonstrar o resultado de uma hiperativação dos músculos da laringe», ou, dito de outra maneira, «as alucinações auditivas podem ser projeções dos pensamentos verbais de pacientes esquizofrênicos, subvocalizadas devido a uma deficiente inibição do córtex». Subvocalizações, deixem-me explicar, são movimentos minúsculos, só detetáveis com máquinas, que o nosso aparelho fonador faz quando lemos; e, muito provavelmente, também quando pensamos em frases completas, se preparamos interiormente o que vamos dizer a alguém, ou revemos mentalmente uma conversa, ou corrigimos na mente o que deveríamos ter dito e não dissemos, coisas assim — quando temos, enfim, frases de uma língua na mente, porque, é de crer, a língua é intrinsecamente sonora, mesmo quando não chega a transformar-se realmente em som...]
Albert Maignan: As vozes do rebate, 1888. 
Amiens, Musée de Picardie, daqui.
As vozes que me surgem na mente não dizem nada concreto, e muito menos dizem mal de mim, como nas alucinações auditivas das psicoses. São vozes de pessoas que conheço bem, com expressões e entoações típicas dessas pessoas, mas dizem só coisas vagas, às vezes porque as conversas parecem ir já a meio («e eu cheguei lá, ‘tás a ver?, não encontrei mala nenhuma») ou por faltarem referências na conversa («às vezes, encontro-a, conversamos ali um bocadinho e pronto, não passa disso») Se se queixam, não sei de quem se queixam («bem, também te digo, pá, aquele tipo, quem não o conhecer que o compre…» ou «eh pá, mas então aquela gente não se enxerga?»). 
[Fazem-me lembrar as conversas que ouvia ao jantar quando trabalhei num lar para pessoas com demência. Conseguiam conversar animadamente sem ninguém saber de que estavam a falar: uma pessoa podia começar, por exemplo, com um «de maneira que é assim» a propósito não se sabia de quê, ao que outra pessoa lhe respondia, «ah, pois é, mas isso já se sabe», e uma terceira pessoa comentava «é que não tenha dúvidas, amiga», para depois uma quarta pessoa concordar também, com algum dos anteriores ou todos eles, «olhe, nisso, dou-lhe toda a razão» e assim sucessivamente, e era uma conversa educada e sem conflitos.]
As vozes das minhas fantasias fazem-me lembrar outra voz que me surgia em criança quando tinha febre, também meio sonhada como elas, meio espetral. Naquele doce intermúndio de febre infantil pairava sobre mim a voz da minha mãe. Não era a voz real da minha mãe filtrada pela febre, mas sim uma voz da minha mãe inventada por essa febre. Não me lembro do que essa voz sonhada me dizia, mas recordo bem o seu efeito calmante, como a voz do hipnotizador que se ouve ao longe quando nos deixamos levar pelo sono que ela nos pede (já tentei deixar-me hipnotizar e, cético que sou, que se esperava?, não me aconteceu nada que não fosse quase adormecer...).
É capaz de ser da idade, tudo isto: perder-me assim, às vezes, entre as memórias e o sonho, como numa cantiga que há, numa parte de mim que até há pouco desconhecia. Custa-me não saber dizer isto melhor. Dito assim, quem me ler é capaz de não perceber muito bem do 


 

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