A pontuação é uma invenção relativamente recente. Na escrita, foi a última coisa a ser inventada e pode até dizer-se que, como nós a conhecemos hoje, apareceu só depois da invenção da imprensa. “Se se viveu tanto tempo sem ela”, pensará logo quem não for muito amigo de pontos e vírgulas, “deve ser porque não é imprescindível…” Pois… Mas a questão não é tanto ser imprescindível ou não; a questão é que dá um jeitão!
Uma função da pontuação é marcar certos traços da fala que são pertinentes na construção de sentido, mas que são de tipo diferente dos sons que formam palavras, e que, por isso, não se podem marcar com letras nem acentos. Assim, numa língua como o português, a distinção entre uma afirmação e uma pergunta é muitas vezes marcada apenas pela entoação. Na escrita, isto é marcado com um ponto de interrogação. Neste caso, nas línguas em que as interrogações têm sempre uma estrutura sintáctica diferente das afirmações (ou mesmo nas frases em português em que essa diferença é clara, como “onde foi a Rita?”), o ponto de interrogação é de facto dispensável – e, por muito que isso nunca faça parte das regras ortográfica das línguas que conheço, é de facto muitas vezes dispensado: tenho o Outlook Express cheio de provas disso.
A segunda função da pontuação é facilitar a leitura. As convenções sobre colocação de vírgulas, por exemplo, podem ser muito diferentes de tradição escrita para tradição escrita. Um exemplo é a diferença da tradição da “vírgula gramatical” (eu acho que devia ser antes vírgula sintáctica…) relativamente à tradição da vírgula “lógica” ou à da vírgula “de entoação”: na primeira usa-se um critério exclusivamente sintáctico; na segunda, um critério que se pretende semântico, ou lógico; na terceira, que coincide muitas vezes com a segunda, procura fazer-se corresponder a vírgula a pausas do discurso oral. Trocando isto em miúdos, numa frase como “A única coisa que temos de verificar é se as casas não estão alugadas no período em que vocês cá vêm, por isso digam-me quando têm planeada a vossa visita e eu pergunto à agência que aluga as casas se elas estão desocupadas nessa altura”, usando a regra dinamarquesa tradicional de “vírgula gramatical”, teríamos vírgulas a dividir todas as orações: “A única coisa, que temos de verificar, é, se as casas não estão alugadas no período, em que vocês cá vêm, por isso digam-me, quando têm planeada a vossa visita, e eu pergunto à agência, que aluga as casas, se elas estão desocupadas nessa altura”. A mim, que aprendi a ler com vírgulas à portuguesa, este sistema de vírgulas continua a dificultar-me a vida quando leio dinamarquês, a obrigar-me a ler as frases duas vezes para as perceber; a um dinamarquês, acontece exactamente o contrário – se as vírgulas não forem colocadas assim, custa-lhe mais a ler. Isto porque as vírgulas são muletas que usamos na leitura, conforme o sistema que aprendamos.
A terceira função da pontuação é desfazer determinadas ambiguidades que resultam da concisão da língua escrita. Costuma dizer-se que uma diferença da língua falada relativamente à língua escrita é ter um número muito maior de redundâncias. É verdade que a língua escrita é, no geral, muito mais concisa, mas muitas das “redundâncias” da oralidade não o são realmente, porque servem para evitar ambiguidades e incompreensões várias. No semi-artificialismo da língua escrita, há uma série de convenções de pontuação que permitem distinguir frases que, sem elas, seriam indistinguíveis. Estes casos são raros, mas têm às vezes alguma importância. Fiquei um bocado desiludido quando descobri que o exemplo que a Wikipedia dá é o mesmo de sempre, mas depois, pensando melhor, achei que é isso que compete a uma enciclopédia e acabei até por decidir usar também aqui o exemplo: “A woman, without her man, is nothing” é muito diferente de “A woman: without her, man is nothing.” [Notem, a propósito, e para ilustrar o que dizia atrás, que ambas as frases, e sobretudo a segunda, são altamente improváveis no discurso oral.]
No que respeita a desfazer equívocos e ambiguidades com pontuação, um dos casos que surge com mais frequência é a distinção entre sintagmas restritivos e apositivos. Para dar também um exemplo clássico, se eu escrever “A minha irmã que mora no Porto chega amanhã”, qualquer pessoa deverá compreender que eu tenho pelo menos duas irmãs e que só uma delas mora no Porto, ao passo que, se eu escrever “A minha irmã, que mora no Porto, chega amanhã”, compreende-se que só tenho uma irmã e que essa única irmã mora no Porto. A distinção pode ser significativa, como no caso de um relatório que eu traduzi no outro dia: “Os camponeses do distrito, que foram apoiados pelo projecto, melhoraram a sua produção em mais de 10%” é muito diferente de “Os camponeses do distrito que foram apoiados pelo projecto melhoraram a sua produção em mais de 10%” – a diferença é de milhares de pessoas e milhares de toneladas de produtos agrícolas… Mas só para quem não tenha ideia do que o projecto é, porque quem o conheça sabe bem que ele não abrange todos os camponeses do distrito…
É de notar que esta distinção não se aplica só a orações relativas, mas a outro tipo de sintagmas. Por exemplo, se eu escrever, referindo-me à escola dos meus filhos, que “A funcionária da secretaria Júlia Nhacumbe está de licença de parto”, há pelo menos outra funcionária; mas se eu escrever que “A funcionária da secretaria, Júlia Nhacumbe, está de licença de parto” ou a secretaria está fechada ou contrataram uma substituta.
Mais complicado é o caso em que o uso de uma vírgula tanto pode resolver ambiguidades como criá-las, como acontece com a vírgula a separar o último elemento de uma enumeração. Este uso da vírgula é típico do inglês e, mesmo nessa língua, é discutido. Não se costuma usar assim a vírgula em português, mas eu faço-o às vezes, quando e apenas quando é mesmo necessário para resolver ambiguidades, o que acontece normalmente com um elemento composto no fim na sequência. Por exemplo, escrevo “as actividades extracurriculares que a escola propõe são desporto, informática, poesia e drama” se a escola propõe 4 actividades extracurriculares e “as actividades extracurriculares que a escola propõe são desporto, informática, e poesia e drama” se a escola propõe 3 actividades extracurriculares e em caso nenhum “as actividades extracurriculares que a escola propõe são desporto, informática e poesia e drama”, porque acho confuso. Mas enfim…
Outra situação em que uso uma vírgula que nunca vi recomendada é antes da conjunção
e, quando ela não liga sintagmas do mesmo tipo. Por exemplo, escrevo, como toda a gente, “estivemos a tarde toda à espera deles e a jogar xadrez” e escrevo “estivemos a tarde toda à espera deles e a noite toda a conversar”, mas escrevo “estivemos a tarde toda à espera deles, e eles não vieram”: se usasse um
mas, punha vírgula, porque não hei-de pôr vírgula antes de um
e com valor de
mas?
Ainda outra pontuação “estranha” que uso frequentemente é o ponto de interrogação a delimitar as interrogativas no meio de períodos. Não gosto da forma canónica de, por exemplo, “O que é que tu achas que devíamos fazer, quando nem sequer temos a certeza de que tenha sido ele a fazer aquilo?”, e uso “O que é que tu achas que devíamos fazer?, quando nem sequer temos a certeza de que tenha sido ele a fazer aquilo”.
Já que estou em maré de interrogações, deixem-me acrescentar que sou apologista do uso dos pontos de interrogação e exclamação invertidos no início de interrogações e exclamações, como na tradição espanhola (embora os use pouco, porque não quero chocar muito quem me lê...). São um excelente auxiliar de leitura, sobretudo em voz alta (mas não só). Talvez não faça muito sentido usá-los em frases como “Onde foi a Rita?” ou “Vai-te já embora, pá!”, mas deviam usar-se pelo em frases longas em que a exclamação ou a interrogação aparece só a meio da frase: “Ao fim de dois anos de conversa de chacha aqui neste blogue, com temas que, ¡sejamos honestos!, não interessam nem ao menino Jesus, ¿não sente nunca que era melhor deixar em branco este espaço de leitura, para cada um poder ler no branco o que lhe aprouvesse?”
Mas enfim, tudo isto são manias minhas, que eu não quero impor aos outros (propor, posso sempre propor, não é?). O que é importante para mim é que ninguém me obrigue a pontuar como não quero aquilo que escrevo, sobretudo quando tenho razões para pontuar como pontuo.