Perguntou-me noutro dia Luís Santos, leitor desta Travessa, a minha opinião sobre «a flexão do verbo haver no sentido existencial», dando os exemplos de “Houve casas que ficaram totalmente inundadas durante as cheias” versus “Houveram casas que ficaram totalmente inundadas durante as cheias”. «Actualmente, a não-observação desta regra», escrevia Luís Santos, «é tida como uma gafe de todo o tamanho, mas, que eu saiba, ela não era seguida pelos grandes escritores e poetas dos sécs. XVI-XVIII». Eis o que sei dizer sobre a questão:
No princípio era o verbo
habere (desculpem, mas eu desrespeito propositadamente a regra de referir os verbos latinos pela primeira pessoa do presente do indicativo) e
habere era um verbo tão transitivo como o verbo
ter, que é, basicamente, o que ele queria dizer. Bom, talvez tivesse outros usos não transitivos que eu desconheça, porque eu de latim sei muito pouco, mas, em princípio,
habere tinha uma estrutura do tipo
alguém habere alguma coisa. E depois, começou a usar-se, não sei se já em latim, mas seguramente, pelo menos, nas várias línguas neolatinas emergentes, com o sentido de “existir” (umas vezes acompanhado de uma partícula locativa, como o
y francês, outras não). Quer dizer, é do uso transitivo que deriva o uso impessoal.
Habere perdeu o sujeito, o “depositário” da coisa tida, e passou a ter só o objecto – com caso acusativo, que ainda se mantém no nosso haver mesmo com sentido existencial: “Não creio em bruxas, mas lá que
as há, há-
as”. Ou talvez não se possa dizer, com propriedade, que perdeu completamente o sujeito, e se deva antes dizer que, nos falares padrão, começou a ser utilizado quase sempre sem sujeito expresso, se bem que, como acontece outros verbos impessoais, a construção com um sujeito
ele impessoal não seja nem muito rara nem considerada incorrecta – é antes muitas vezes sentida como marca de um registo informal ou popular.
Ele há para aí vários sujeitos, porém, que usam, assim,
haver com sujeito… No fundo, passou-se com o verbo haver o mesmo que se passou precisamente com o verbo
ter no português do Brasil, onde só em registos muito especiais se usa
haver para dizer a existência: na linguagem normal, não
tem verbo haver, só
tem verbo ter… E pronto, é precisamente por o único argumento do verbo (a entidade que se afirma existir) ser um acusativo que se postula que o verbo não deve fazer concordância com ele. Tem lógica.
Os verbos sem sujeito são, porém, raros e, neste como noutros casos, há quem tenda a colocar na posição de sujeito o acusativo do verbo, flexionando o verbo para fazer a concordância da pessoa verbal com esse pretenso “sujeito”. É assim que aparece “Houveram casas que ficaram totalmente inundadas durante as cheias”. Parece, no entanto, haver limites a esta tendência: ouve-se e lê-se
houveram,
houvessem,
houverem e
haviam em vez de
houve,
houvesse,
houveram e
havia, por exemplo, mas não se ouve nem lê
hão em vez de
há (só no título deste post...). Porque será? Outra coisa que é interessante constatar é que, mesmo quem faz do objecto de
haver um sujeito não o põe antes do verbo: mesmo quem diz “Haviam lá muitas pessoas” nunca diz “*Muitas pessoas haviam lá”, não é verdade
*?
Agora, estou em crer que não há aqui nada de novo, e, embora haja quem afirme que isso acontece cada vez mais, pode-se constatar que essa tendência, se não existiu sempre, existe pelo menos há já muito tempo. O que é interessante notar também é que a atitude em relação à norma de não-flexão do
haver “existencial” não é sempre a mesma em todos os tempos. Houve épocas em que flexionar
haver em pessoa era menos uma «gafe de todo o tamanho». Luís Santos diz que a regra de não-flexão pessoal de
haver «não era seguida pelos grandes escritores e poetas dos sécs. XVI-XVIII» e é verdade que, pelo menos, não o era sempre.
Há um texto de Camilo Castelo Branco em que ele responde a um crítico (o brasileiro Carlos Laet) que o acusa de ter usado no plural um haver “existencial” – e note-se que o facto de ele responder ou é sinal de que não considerava que fosse apenas um erro que lhe tivesse escapado ou então de que era tão orgulhoso que, em vez de admitir a falha, preferiu convencer-se e tentar convencer os outros de que tinha razão. E fá-lo, como Camilo sempre faz tudo (eu sou fã de Camilo, aproveito para confessar de passagem), com graça e estilo. Não posso citar aqui a passagem, porque tinha-a num livro (
Ecos humorísticos do Minho) que perdi quando, uma vez, me ardeu a casa toda, mas lembro-me de que Camilo usa o artifício retórico de começar por, aparentemente, pedir desculpa, que foi com certeza um erro do tipógrafo, para depois afirmar que o tipógrafo, se quisesse justificar uma enormidade dessas, até podia defender-se, porque a forma foi usada por pessoas que deviam saber mais da língua portuguesa do que a pessoa que lhe critica o erro. E dá uma lista de “autoridades” que usaram essa forma nos seus escritos.
Alberto Pimentel, em Notas Sobre O Amor De Perdição (Lisboa: Guimarães Editores, 1915) refere essa reacção de Camilo:
Não afirmo que fosse incorrecção tipográfica a frase “houvessem estradas”, na pág. 98 da 1ª edição (cap. Vlll), porque assim escreveram, até depois da primeira metade do século XIX, reputados autores, e a escrever assim foi educado o do Amor de perdição.
O próprio Camilo, quando uma vez lhe notaram acrimoniosamente o solecismo “houveram” como “feio e bestial”, entreteve-se a mostrar que bons escritores portugueses, Filinto Elísio, Dias Gomes e outros, tinham empregado o mesmo solecismo sem desdouro para a sua reputação de puritanos.
Alberto Pimentel diz depois que «
os Srs. Cortesão e Castanheira, professores em Coimbra, organizaram [em 1907 uma Selecta Literária
] para o ensino elementar da história da língua portuguesa» onde incluíram
«três composições de Camilo Castelo Branco» (uma das quais era “Amor de família”, um texto “de juventude” publicado no semanário
A Cruz em 1853), de quem «
os dois compiladores corrigiram tudo quanto entenderam ser defeito de linguagem». E prossegue Pimentel em defesa de Camilo Castelo Branco:
(…) Quanto à locução “houveram homens”, [Camilo] poderia também alegar que esta locução, que hoje consideramos incorrecta, ainda em 1853 e 1857 tinha curso usual nos livros e jornais da época. Se os dois compiladores consultarem os escritos de outros colaboradores da [revista] Cruz, neles a encontrarão repetida, bem como no Génio do mal, de Arnaldo Gama. Todavia estou plenamente convencido de que as oito palmatoadas, infligidas a um morto glorioso, em nada prejudicarão a sua imortalidade.
Agora o mais interessante do caso vem a ser que os Srs. Cortesão e Castanheira, se procurassem bem, poderiam ter encontrado em Eça de Queiroz, no Crime do padre Amaro, escrito anos depois do Amor de perdição, nada mais e nada menos que… “Houveram risos”. Queiram verificar.
E eu fui verificar e encontrei online
um excerto de Os Andradas, de Alberto Sousa (São Paulo: Typographia Piratininga, 1922), que, além de confirmar o “houveram risos” de Eça, explica que Eça repete o solecismo em
Cartas familiares e bilhetes de Paris (publicação póstuma): «Assim ele evitará o afrontoso escândalo de haverem substantivos». Aliás, segundo Alberto Sousa, «
o emprego da malsinada locução foi usual nos melhores periódicos e livros da Lusitânia até depois da primeira metade do século dezenove (…) e até 1860, aproximadamente, continuaram no velho reino escritores e jornalistas de nota a usar no plural ou pessoalmente o verbo haver (…)». Machado de Assis, por exemplo, também escreve no conto “A mulher de preto”, de 1870: «Ali haviam vários deputados que conversavam de política, e os quais se reuniram a Meneses».
É assim, mudam as modas... que não a regra, neste caso. E a conclusão? Eu escrevo o
haver impessoal e aconselho esse uso, porque é o que me parece lógico. E há ainda outra boa razão, de ordem estratégica, para se ficar pelo
há,
houve e
havia, sem plural, e para seguir, aliás, todas as normas linguísticas que sejam, como esta, muitos consensuais: É que é provável encontrar muitas reacções negativas ao desvio, de maneira que se corre o risco de os outros não lerem ou não ouvirem o que temos dizer, só de chocados que ficam pela tal «gafe de todo o tamanho». É como ir de calções para uma reunião de negócios, digamos assim: mesmo que não se veja mal nisso, se queremos que nos levem a sério, bom, não convém…
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* É de notar que a mesma coisa se passa com verbos com óbvio sujeito pessoal (se bem que não agentivo), como
estar,
chegar,
vir, etc., pelo menos quando é “indefinido”: diz-se “Estavam lá muitas pessoas”, mas nunca “*Muitas pessoas estavam lá”, e diz-se “Veio uma carta da SPA”, mas não “*Uma carta da SPA veio.” O mesmo se passa com passivas com sujeito indefinido (o mesmo tipo de sujeito, portanto), sobretudo quando o agente não é expresso: “Foram reabilitadas três escolas” e não “*Três escolas foram reabilitadas”. A aceitabilidade das frases muda bastante com a introdução de novos elementos e a questão é bastante complexa. Nunca vi nenhuma descrição completa do fenómeno nem nenhuma proposta de explicação, pelo que fico grato a quem me possa indicar estudos sobre a questão.