O que há que esperar da letra de uma canção popular é que soe bem. No mínimo, acentuações rítmicas rigorosas (na sua forma ideal a soar como percussão:
“nega do cabelo duro / qual é o pente que te penteia**” – tchikitchi… tchikitchi…),
e elegância nos jogos de timbres de vogais e consoantes
(I will compose / in fancy rhyme / or just plain prose / a song of praise / for you / my prairie rose***).
Depois, se se puder acrescentar-lhe algum significado digno desse nome, melhor.
Apresento então a quem a não conheça, ou recordo-a apenas a quem tem já esse prazer, a canção “A Luz Azul”, dos Rádio Macau, com letra de Pedro Malaquias. É que me apeteceu, vá lá eu saber porquê, dizer sobre ela umas palavrinhas:
P’la janela entra a luz azul da lua. / Das cortinas desliza p’lo chão. / Enche o quarto o frio silêncio nu da rua, / envolvente em mansa lassidão. // Tenho em mim / ruim pressentimento / de já ter vivido este momento. / Se estou a sonhar, / quando acordar, / vou correr o estore e vou deixar / a luz entrar. // Baila sobre o fio brilhante e tentador / um pontinho azul que me seduz / e num gesto exacto e breve / bebo a minha vida em contraluz. // Tenho em mim / ruim pressentimento / de já ter vivido este momento. / Se estou a sonhar, / quando acordar, / vou correr o estore e deixar / a luz entrar. // Um pontinho azul que me seduz, / fecho os olhos tento não pensar… / Não pensar…
Parece-me que se trata de um caso em que a elegância formal está sempre ao serviço de um significado. Vejam a frase “P’la janela entra a luz azul da lua”. A luz da lua é azul porque tem z. Azul é lua ao contrário mais o z final de luz, que é quase lua também. Já o frio que enche o quarto vem da rua, não da lua, embora talvez também pudesse vir da lua por ser silêncio (e se nada disto é líquido para vocês, para mim é-o com certeza, porque é isso que são o r e o l: consoantes líquidas). Será que vê letras do alfabeto quando escreve letras de cantigas, o Pedro Malaquias? Se o faz, faz bem. E fá-lo bem, também.
Agora, o que na letra mais importa, na minha opinião, é que luz azul, luzazul, é um palíndromo. No centro há um a, o princípio, rodeado de dois zz, que são o fim. É essa a sedução. O brilho ofuscante do princípio rodeado de fim por todos os lados. Que remédio há, perante tão sedutora e luminosa revelação, senão beber, de repente, a vida em contra|luz?
Um déjà-vu? Um sonho? Seja lá o que for, a vida há-de continuar. Não pensemos agora nisso, sim? Como a interpreto, a letra fala de um flirt com o suicídio. Também a interpretam assim? E, já agora: não é desse flirt que fala também “Hoje é a brincar”, do álbum seguinte, também com letra de Pedro Malaquias?
Sobre o pulso tenso a bater / Encosto o aço frio devagar / Amanhã talvez seja a valer / Hoje é a brincar.
Hoje é a brincar às análises estruturalistas, se ainda não tinham percebido. O que a gente se diverte! E um grande abraço ao Pedro Malaquias, mestre de cantigas.
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* Enfim, tudo isto é muito discutível, eu sei, porque a lírica, tal como nós a conhecemos hoje, autónoma e livre na forma, nasceu para ser cantada em canções que não eram, muitas delas, fundamentalmente diferentes da canção popular actual. Reconheço que a simplificação que faço do assunto, de tão exagerada, pode facilmente soar mais a mentira do que a simplificação. Se, ainda assim, opto por ela, é porque não é de discutir a letra da canção popular como manifestação estética que aqui se trata, mas de fazer uma análise algo delirante de uma letra de uma canção em particular. E, para introdução a uma análise dessas, estas afirmações, por muito que pouco rigorosas, até nem ficam mal de todo, acho eu…
** “Nega do cabelo duro”, de David Nasser e Rubens Soares, 1942
*** “Prairie rose”, de Brian Ferry, 1974 [Prairie rose é também o nome de uma flor, a Rosa arkansana.]
3 comentários:
Não imagina como me divirto a lê-lo! Acho os linguistas e os matemáticos pessoas absolutamente fascinantes...
(um) beijo de mulata
ah, queres festa!... analize this!
da vida duvidosa dividida
da dúvida que duvida da vida
da vária desvairada variedade
que dá de viva voz
a outra verdade
a verdadeira dor que doendo diz
o que dizendo
disse o que não quis
Obrigado, beijo de mulata.
E obrigado, última estação, eu hei-de analisar isso. Espero que não seja nada de muito grave...
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