26/11/11

[Crónicas de Svendborg #8] Sábado de novembro em Taasinge, um quase haiku

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Hoje está suave, como dizem os franceses.
O sol brilha frio, mas, a desafiar os 10 graus,
dlim dlim, dlim, a carrinha dos gelados!

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25/11/11

2 histórias da 1ª guerra mundial

1. Soldados belgas e franceses no Cemitério Auxiliar de Copenhaga [Crónicas de Svendborg #7]
Todas as histórias de guerra são tristes e cruéis, porque a guerra é sempre triste e cruel. E nem sequer deixa de ser cruel quando não é ela a causadora direta da morte dos que, por ela, tiveram de deixar a sua terra.

Na parte católica do bucólico Assistens Kirkegård, o Cemitério Auxiliar de Copenhaga, reparei uma vez em túmulos de soldados belgas e franceses, e surpreendeu-me ver que tinham datas de 1919. Eram soldados, explicou-me alguém, que tinham sido prisioneiros algures na costa norte da Alemanha e que, quando a guerra acabou em novembro de 1918, vieram de barco para a Dinamarca, para daqui seguirem para casa. Isto foi no início de 1919. Havia nessa altura na Europa uma epidemia de uma gripe violenta conhecida como gripe espanhola. Foi a gripe que matou aqueles soldados. Depois dos horrores da guerra e do cativeiro no país inimigo, quando o cansaço se começava a diluir, seguramente, na euforia do retorno a casa, veio um vírus, que não uma bala alemã, cortar-lhes a vida aos vinte e poucos anos.

Em memória dos soldados franceses e belgas mortos de gripe em 1919. Wikimedia Commons. 
2. A guerra em Moçambique
Aproveito ser hoje aniversário da batalha de Ngomano para lembrar aqui que a Primeira Grande Guerra chegou à África Austral e houve combates entre tropas portuguesas e alemãs em Moçambique. Há algumas páginas online onde podem ler mais sobre o assunto (por exemplo, as que indicarei a seguir) e não é minha intenção desenvolvê-lo aqui, mas tão-só referir aqui um facto que seria apenas surrealista se não fosse trágico e revoltante.

Francisco Proença Garcia [Moçambique na 1ª Guerra Mundial - do Rovuma ao Nhamacurra (1)] cita Azambuja Martins, que escreve:
Portugal mobilizou para aquele território, ao longo dos vários anos, 19.438 militares da metrópole, 985 portugueses recrutados localmente e 10.278 africanos, e recrutou 90.000 carregadores, 60.000 fornecidos ao Exército português e 30.000 às forças britânicas ["A campanha de Moçambique", in Martins, Ferreira, Portugal na Grande Guerra, Vol. II, Lisboa, 1938, p. 186.]. 
Os números são confirmados por outras fontes em A guerra em Moçambique. 5. última fase da campanha, de Manuel Amaral (negrito meu):
As forças portuguesas vindas sucessivamente da Metrópole atingiram 18.613 praças, enquadradas por 825 oficiais.
As 30 companhias indígenas e as 6 baterias indígenas de metralhadoras mobilizaram 303 oficiais, 682 graduados europeus e 10.278 soldados indígenas, havendo mais a contar duas baterias de montanha e uma companhia montada da Guarda Republicana de Lourenço Marques. As forças de marinha mobilizaram um batalhão de duas companhias. Mobilizaram-se também 8.000 auxiliares indígenas das capitanias mores de Moçambique [Livro de Ouro da Infantaria, pág. 100. Artigo de Álvaro de Castro].
Assim as nossas forças mobilizadas atingiram nesta colónia um total de 39.201 homens.
Os carregadores portugueses fornecidos às tropas inglesas elevaram-se a 30.000 10 e os empregados pelas nossas tropas atingiram 60.000; as perdas totais na nossa população indígena de Moçambique deviam ter-se aproximado de 100.000 almas [Dr. Egas Moniz, Um ano de política, 1919. (Apontamentos da Delegação à conferência da paz)]. 
Se já não devia ser fácil, para alguns soldados portugueses, compreender que guerra era aquela e por que combatiam, imaginem o que significaria a guerra para todos aqueles moçambicanos, que pouco ou nenhum contacto tinham tido com europeus e que eram recrutados à força e obrigados a lutar e a morrer por nações que não tinham, para eles, o mínimo significado.

"General Smuts inspecionando uma unidade nativa sul-africana em França", provavelmente por John Warwick Brooke. http://digital.nls.uk/74548224.

10/11/11

Homenagem a Carl Stalling, no dia do 120º aniversário do seu nascimento

Quando eu era rapaz, pensei muitas vezes que devia ser giro ouvir só a música dos desenhos animados sem ver os bonecos, mas nunca me dei mesmo ao trabalho de gravar as bandas sonoras da televisão. Houve, porém, quem tivesse pensado o mesmo que eu sem se ficar pela ideia. John Zorn, por exemplo. John Zorn considera Carl Stalling, o compositor das bandas sonoras dos cartoons da Warner Bros., uma das suas grandes influências e um dos grandes inovadores da música do século XX e de todos os tempos. Segundo ele, Carl Stalling é inovador sobretudo a nível do tempo; mas também na conceção de que não há estilos de música melhores que outros e que, portanto, todas as músicas se podem juntar; e na substituição da regras tradicionais da música (“desenvolvimento, tema e variações, etc.”) por “um caleidoscópio em constante transformação de estilos, formas, melodias, citações e […] descrições sónicas de eventos visuais”*.
John Zorn foi o consultor de produção de The Carl Stalling Project, music from Warner Bros. cartoons 1936-1958, o primeiro disco de música de Stalling, que foi publicado em 1990 (Volume II em 1995), mas que, como Zorn diz, devia ter sido publicado muito antes. Mas enfim, mais vale tarde que nunca e eu fiquei, quando conheci o disco, muito contente de ter visto finalmente realizado um projeto de juventude. A música de Carl Stalling é um delírio, seja qual for o sentido que se dê à palavra.

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* Traduzo eu das notas do CD The Carl Stalling Project, music from Warner Bros. cartoons 1936-1958.

09/11/11

Crónicas de Svendborg #6: Novembro

Em 1986, Henrik Nordbrandt escreveu um dos mais famosos poemas dinamarqueses, provavelmente o poema que mais dinamarqueses sabem de cor*:

O ano tem 16 meses: Novembro
Dezembro, Janeiro, Fevereiro, Março, Abril
Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro
Outubro, Novembro, Novembro, Novembro, Novembro.

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* O poema nr. 2 de Håndens skælven i november (Copenhaga: Gyldendal, 1986): “Året har 16 måneder: november / december, januar, februar, marts, april / maj, juni, juli, august, september / oktober, november, november, november, november”

Avós

Há pouco mais de uma semana, uma amiga minha publicou, no seu mural do Facebook, o seguinte texto:
Definição de avó – artigo redigido por uma menina de 8 anos no Jornal do Cartaxo, Portugal…
Uma avó é uma mulher que não tem filhos, por isso gosta dos filhos dos outros. As avós não têm nada para fazer, é só estarem ali. Quando nos levam a passear, andam devagar e não pisam as flores bonitas nem as lagartas. Nunca dizem «Despacha-te!». Normalmente são gordas, mas mesmo assim conseguem apertar-nos os sapatos. Sabem sempre que a gente quer mais uma fatia de bolo ou uma fatia maior. As avós usam óculos e às vezes até conseguem tirar os dentes. Quando nos contam histórias, nunca saltam bocados e nunca se importam de contar a mesma história várias vezes. As avós são as únicas pessoas grandes que têm sempre tempo. Não são tão fracas como dizem, apesar de morrerem mais vezes do que nós.
Toda a gente deve fazer o possível por ter uma avó, sobretudo se não tiver televisão.
Perante um texto assim, o mais natural é reagir, estou eu em crer, como reagiu João Soares Barros no seu blogue Perguntas sobre…
Este artigo circula na Internet como sendo redigido por uma menina de 8 anos e publicado no Jornal do Cartaxo. Provavelmente a história não será bem esta, até porque creio que nem existe um jornal exatamente com este nome, mas sim um Jornal O Povo do Cartaxo. Mas tudo isto são pormenores, perante a verdadeira delícia que é este texto.
Agora eu, embora concordando completamente que a origem do texto não afeta em nada o seu conteúdo e a sua graça, reagi de uma maneira um pouco diferente, porque aquele texto não era novo para mim. Foi-me oferecida em 1993 uma cassete do cantautor Paul Tracey. Chama-se Songs & Stories e inclui uma canção chamada “Grandmothers” [“Avós”], cuja letra não sabia toda de cor, mas de que me lembrava que começava com a grandmother is a woman with no children of her own… [“uma avó é uma mulher que não tem filhos seus…]” e terminava com …everybody should have one, especially if your living room has no television [“…toda a gente devia ter uma, sobretudo se a sala de jantar não tiver televisão]”. A minha reação foi, então: “Ah, mas que curioso – isto é uma tradução adaptada da canção de Paul Tracey!”

Por via das dúvidas, meti-me a pesquisar na Internet. Cheguei relativamente depressa à conclusão de que o texto é muito popular, circula em muitas línguas[1], e atribuem-se-lhe origens várias: nalguns casos, diz-se que foi escrito por uma menina, cuja idade varia entre os 4 e os 9 anos; noutros, que foi escrito por um rapaz de 8 anos e encontrado numa igreja galesa; noutros, que foi compilado de trabalhos de uma turma de crianças de 8 anos, etc. 
No blogue de Raquel Moura, de Mogi Mirim, São Paulo, encontrei uma primeira referência concreta à origem da frase[2]:
Li isto num livro chamado Lar Doce Lar de um dos meus autores prediletos, o Dr. James Dobson. Ele conta que "há muitos anos, uma menina de 4 anos, chamada Sandra Louise Doty, sentou-se numa banqueta numa floricultura, enquanto sua avó atendia os compradores. Quando a avó e a neta conversaram, a menina começou a descrever o que ela achava ser uma avó. A idosa senhora anotou as palavras de Sandra, que têm sido citadas em todos o mundo. Sandra é atualmente a Sra Andrew De Mattia, e deu-nos permissão para transmitir a você sua composição original, intitulada “O que é uma avó”.
O texto que se seguia tinha, em parte, o mesmo conteúdo que o texto publicado pela minha amiga no Facebook, mas acrescentava-lhe alguns pontos: acrescentava referência ao avô (“Um avô é um homem avó” [que] sai para passear com os meninos e eles falam sobre pescaria, tratores e outras coisas semelhantes”) e acrescentava à descrição das avôs que “são velhas, por isso não devem brincar muito nem correr”; que “já fazem muito quando nos levam de carro até as lojas, onde está o cavalo de mentira, e levam uma porção de moedinhas separadas”; que, além de óculos, usam também “roupas de baixo esquisitas”; que não sabem tirar só os dentes, mas também as gengivas”; que “não têm de ser muito inteligentes, somente responder a perguntas como «Por que os cachorros odeiam os gatos e Deus não é casado?»; e que “não falam como os bebés falam, como fazem os visitantes, porque é difícil de entender”.
Ao princípio, pensei que se tratasse de uma referência ficcional, sobretudo porque não encontrei nenhum livro de James Dobson chamado Home sweet home e porque, juntando numa única pesquisa “James Dobson” e “Sandra Louise Doty”, só me apareceram páginas em português e espanhol[3]. Mas descobri que a referida edição de James Donson em português existe mesmo: é de 2000 e é a tradução de um livro chamado Home with a Heart (Living Books, 1999). Mais recente, portanto, que a cassete de Paul Tracey, pensei eu.
No dia seguinte, depois da grande limpeza de sábado de manhã, fui buscar a cassete de Paul Tracey (uma das poucas cassetes que conservo), para tirar a letra. E dei-me conta de que acabávamos de deitar fora o único leitor de cassetes que havia cá em casa. Era uma aparelhagenzinha que estava na cozinha e que estava funcionar tão mal que decidíramos, nessa mesma manhã, deitá-la para o lixo. Mas fui buscar a aparelhagem ao lixo e tirei a letra da canção [traduzo eu]:
Uma avó é uma senhora que não tem filhos seus, / mantém-se sempre ocupada a coser coisas que precisam de ser cosidas. / Gostam das meninas dos outros e dos meninos também, / mas tens de ter cuidado, senão tropeça-te nos brinquedos. / Não tem de fazer muito, a não ser só estar ali, / nunca tem de dizer «Despacha-te lá» nem de olhar quando estás nu. / As avós usam todas óculos e roupa interior esquisita, / e conseguem tirar dentes e gengivas e depois levá-los a consertar. / Não têm de ser espertas, mas têm de saber, as avós, / por que Deus não é casado e que altura tem o céu. / Nunca falam à bebé, como as outras visitas, / e são incrivelmente justas a fazer coisas à vez – agora és tu, agora é ela. / Um avô é um homem-avó; traz o carvão para dentro, / vai pôr o lixo lá fora, depois acha que vai dar uma voltinha… / As avós leem-te histórias, todos deviam ter uma, / sobretudo se na sala de estar não houver televisão[4].
Agora, como podia ter a certeza de que era este texto que tinha dado origem a todos os outros? O melhor, pensei eu, era perguntar ao autor se eram dele estas ideias. E foi o que eu fiz: “O texto é inteiramente seu, como eu parto do princípio que é”, escrevi eu a Paul Tracey, “ou baseou a sua canção em textos, anedotas ou aforismos preexistentes sobre as avós?”
Continuei a pesquisar na Internet. E encontrei uma referência bibliográfica clara num texto de Steven J. Cole: Adoro esta perspicaz redação de uma menina da terceira classe, chamada “O que é uma avó?” (James Dobson, What Wives Wish Their Husbands Knew About Women [Tyndale], pp. 47-48).
A lista de livros de James Dobson da Wikipedia diz que o livro é de 1995, mas verifiquei que há pelo menos duas edições mais antigas deste livro, uma de 1981 (Living Books) e uma de 1982 (Tyndale House Publishers). A cassete de Paul Tracey, essa, não fazia ideia de quando seria, porque não tem qualquer data… Aliás, o próprio autor também não sabe quando gravou a música, como me explicou na resposta ao meu e-mail. Paul Tracey foi extremamente amável e respondeu-me imediatamente, contando-me a história da canção:
A minha mãe vivia em Inglaterra e há muito tempo – anos antes de haver Internet – encontrou as ideias de base para a canção sobre as avós, apresentadas como se tivessem sido criadas algures por uma criança. A minha mãe mandou-me o texto. Não faço ideia de quem o terá escrito de facto, mas fiquei desconfiado e duvidei de que tivesse realmente sido uma criança.
Transformei o texto na minha canção, tirando alguma coisas que não conseguia encaixar e fazer rimar, e acrescentado alguns bocados meus.
Tenho de admitir, porém, que é uma das minhas canções de que gosto menos! Talvez seja porque sou agora tão egocêntrico que só canto canções que tenha escrito eu próprio! Não é bem verdade, mas quase. Decididamente, roubei as ideias do original e não é nada o meu estilo!
E acrescentava que ele próprio tinha conhecimento de que o texto circula por aí:
Para o seu blogue, sugiro que esta obra em particular de facto não viajou nada depressa. Se, como me diz, anda agora a circular, isto demorou muito tempo a acontecer. Acho que, pessoalmente, já topei com ela 3 vezes desde que escrevi a canção há cerca de 40 anos
Fiquei assim a saber que, ao contrário do que eu pensara inicialmente, o conteúdo do texto não foi criado por Paul Tracey. Provavelmente, devia simplesmente partir do princípio que a autora era mesmo a tal Sandra que James Dobson referira. Mas, enquanto não me decidia a dar por terminada a pesquisa, ia displicentemente variando um pouco as pesquisas em Google. E tive de repente novos resultados: Há no site Jokes from the Web, de Richard Lowe, uma carta de uma senhora chamada Sandra L. DeMattia, que reclama a autoria do texto [traduzo eu]:
A obra que publicou chamada “O que é uma avó?” não foi escrita por uma turma de crianças de oitos anos nem por uma menina da terceira classe. Foi uma conversa que uma menina de 3 anos teve com a avó em 1952. Foi publicada pelo primeira vez em meados dos anos setenta pelo Dr. James Dobson e depois noutro livro seu de 1996 chamado Home with a Heart. Esta entrada aparece nas páginas 20 e 21. Se for possível, poderia corrigir a autoria? Como já disse a outros administradores de sites da Internet, sei que sou um bocadinho forte – como a minha avó – mas não tanto que se me possa considerar um grupo ou uma turma. Continue, por favor, a usar o texto, já que ele parece fazer sorrir avós em todo o mundo. Como já deve ter adivinhado, sou eu a menina de três anos – 53 anos mais tarde. Se quiser mais alguma informação sobre o assunto, sinta-se à vontade para me contactar[5].
É fácil verificar que James Dobson publicou de facto livros nos anos 70. O facto de a referência ser mais uma vez vaga (só a referência à edição de 1996 é que dá páginas) e de não haver uma identificação mais concreta desta Sra. DeMattia não ajuda muito a acreditar que estejamos finalmente perante a verdadeira autora do texto original[6]. Bom, podia ter escrito a Richard Lowe a perguntar, podia ter encomendado um ou mais livros de James Dobson, ou até ter-lhe escrito também, para tentar descobrir mais alguma coisa, mas não – prefiro desistir desta história e dedicar-me antes a outras… como direi?... atividade mais proveitosas.

Um texto – ou uma canção, ou qualquer outro objeto intelectual, artístico ou não tem sempre um autor concreto. Mesmo que seja uma variação sobre um objeto anterior, essa variação tem um autor, como o tem o objeto sobre o qual foi feita. Quando se fala de objetos artísticos “tradicionais”, por exemplo, aquilo de que se está a falar de facto é de objetos de autoria(s) desconhecida(s). A história do texto das avós ilustra bem, acho eu, o processo, ora voluntário ora involuntário, de apagamento ou ficcionalização da autoria de um objeto literário – e da sua transformação ao passar de mão em mão. Agora, se as coisas se passam assim no séc. XXI, imaginem como se passavam antes, quando a ideia de autor tinha muito menos importância do que agora e ninguém tinha aprendido a fazer referências bibliográfica – nem que se as deve fazer… Lembro-me de um documentário muito interessante de Adela Peeva chamado Whose song is this?, sobre uma canção que gregos, macedónios, turcos, sérvios e búlgaros acreditam todos ser uma canção tradicional da sua terra. Há centenas de casos assim. A “Raspa”, para dar o primeiro exemplo que me vem à cabeça, de que país acham que é?

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[1] Eis os resultados das minhas pesquisas em francês, português e inglês: uma pesquisa fechada com aspas de "une grand-mère est une femme qui n'a pas d'enfants" deu-me 17.200 ocorrências em Google; "une grand-mère est une femme qui n'a pas d'enfant" (é preciso contar com este pormenor, veem?, quando se faz pesquisas de frases específicas em francês…) tinha 18.600 ocorrências; “uma avó é uma mulher que não tem filhos” deu-me 10.400 ocorrências; e “grandmother is a lady who has no children” deu-me 12.800. Também se encontram versões com dame, senhora e lady em vez de femme, mulher e woman, respetivamente, mas têm muito poucas ocorrências. Evidentemente, nem todas as frases fazem parte de variações do texto em causa, mas a esmagadora maioria faz, como qualquer verificação aleatória rapidamente nos indica… O texto tem especial popularidade em setores religiosos do ciberspaço. 
[2] Publicado a 30 setembro 2007. Edite Esteves, de Lisboa, publicou no seu blogue, o mesmo texto, a 26 de julho de 2011, mas com uma referência bibliográfica (quase) completa: James Dobson, Lar, Doce Lar, Editora United Press Ltda, 2000
[3] A Sandra Louise Doty mais fácil de encontrar é uma esposa de um diplomata, que veio a tornar-se agente da CIA e que faleceu a 8 de abril 8 de 2010 com 69 anos. Não se pode tratar desta Sandra Louise Doty, porém, porque esta nunca se tornou DeMattia. Pelo contrário, ganhou pelo casamento o apelido Doty. O site Census Data Online diz que há 11 pessoas com o nome Sandra DeMattia nos EUA. E diz também que, para saber mais, há que pagar, imaginem vocês…
[4] A grandmother is a lady with no children of her own, / She’s always keeping busy sewing things that should be sewn. / She likes other people’s little girls and also little boys, / But you’ve got to be so careful or she’ll trip up on you toys, / She doesn’t have to do much except for just be there, / She should never say “Now, hurry up!” or look when you are bare. / Grandmothers all wear spectacles and funny underwear, / They can take their teeth and gums off and then take them for repair. / They don’t have to be clever, but grandmothers should know why / Why God isn’t married and how high up is the sky. / They never talk baby talk like others visitors, / They’re awfully fair at taking turns – it’s yours and then it’s hers. / A grandfather is a man grandmother; he brings in the coal, / He takes out the garbage, then he thinks he’ll take a stroll… / Grandmothers read you stories, everybody should have one,  / Especially if your living room has no television. Television é pronunciado de maneira a rimar com one, para obter efeito humorístico.
[5] A versão do texto apresentada neste blogue era ligeiramente diferente das que tinha visto até essa altura. Além de estar apresentada por pontos (15 pontos numerados), aparecem algumas ideia diferentes das que se encontram na maior parte das outras versões. Há sobretudo, mais perguntas a que as avós têm de responder: “As minhocas bocejam?”, “Porque é que os cães perseguem os gatos?", "A vaca saltou mesmo por cima da lua [referência a uma lengalenga infantil inglesa]?" e "Porque é que as pessoas se beijam debaixo do visgo [referência a uma velha tradição do Norte da Europa]”?"
[6] Além de que a riqueza retórica do texto é tal – e assente, ainda por cima, numa lista cuidadosamente elaborada dos clichés associados à imagem da avó na cultura ocidental – que só por ingenuidade, digo eu, se o atribui a uma menina de três anos. Mas isto é só uma impressão, não o posso provar.  

07/11/11

Livros em segunda mão #2: Storm P. 1940-1948 [Crónicas de Svendborg # 6]

Comprei numa feira da ladra em Svendborg, pela módica quantia de 10 coroas*, um livro chamado Robert Storm Petersen, Desenhos e textos 1939-1949. Ninguém conhece Robert Storm Petersen por este nome – é Storm P. que lhe chamam e era também assim que assinava textos e desenhos. Figura de culto, Storm P. é, para mim, sobretudo uma figura estranha: irregular no traço e nas piadas, tem desde desenhos muito bons a desenhos bastante sofríveis e o mesmo se pode dizer das suas graças, que são às vezes muito engraçadas e outras vezes sem graça por aí além. Mas fez um pouco de tudo e foi às vezes pioneiro nesse um pouco de tudo que fez: banda desenhada, por exemplo, e animação. Há também quem defenda que é ele, e não Yogi Berra, o autor daquela frase célebre que se usa muito em conversas sobre futebol, “É difícil fazer previsões, sobretudo sobre o futuro”. Deixo-vos aqui alguns cartoons que tirei do livro que comprei numa feira da ladra em Svendborg, pela módica quantia de 10 coroas, lembram-se?
O globo tem vindo a tomar uma nova forma, 
mas não foi ainda decidido que forma será ao certo… (1940)

Isto seria mesmo horrível, 
se não fosse por prazer (1940)

– Mas afinal, Péricles, o que é profundidade?
– É quando uma pessoa fica calada e franze o sobrolho. (1941)
– Ouve, Teseu, isto agora já não dá para pedir uma ajuda para um cafezinho.
– Não, o melhor agora é dizer que é para meia dúzia de ostras. (1942)
– Plantam-se todos os anos 50.000 árvores de fruto, 
mas há que esperar 5 anos até começarem a dar fruto.
– Porque não as plantam cinco anos antes, então? (1943)
– Como agora se conseguiu fabricar uma bomba que destrói tudo, 
torna-se, pois, necessário fabricar outra bomba que consiga destruir a primeira.
– E temos finalmente paz.
–  Sim – só falta agora é cerveja (1945).
– Não é fácil, porque, quando se arranja num lado, estraga-se noutro. (1948)
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* No meu tempo, 10 coroas eram 5 escudos, mas isso são outras quinhentas... Outras coroas, seja. E que presunção, no meu tempo, como se eu alguma vez tivesse tido um tempo meu...

Livros em segunda mão #1: Os dois lados de tudo

I – Comprei em Maputo, a um rapaz que estava a vender livros na rua, a obra Expansão da Língua Portuguesa no Oriente nos Séculos XVI, XVII e XVIII (Lisboa: Portucalense Editora, 1969 (1ª ed. 1935)), de David de Melo Lopes. É um livro com informação interessante sobre muitas palavras, de que talvez fale aqui noutra ocasião; e é também um livro que se inscreve no quadro ideológico do louvor da “expansão portuguesa”. O autor, aliás, deixa claro isso bem claro logo de início: 
Descoberto o caminho marítimo da Índia, abriu-se à expansão portuguesa um campo ilimitado de atividade em todo o Oriente: sem falar da costa oriental de África (…), desde os portos da Abissínia e da Arábia até os da China e do Japão (…), as caravelas e naus de Portugal, ou vitoriosas na guerra ou abarrotadas de especiarias, dominaram, certamente, os mares de todo o século XVI. Os escritores estrangeiros que trataram dessa história fazem justiça ao esforço maravilhoso dos Portugueses e não lhes regateiam a sua admiração. «A audácia impetuosa da heroica pequena nação, diz um grande escritor inglês nosso contemporâneo, é pura epopeia, comparado com o qual o nosso primeiro esforço na Índia é prosa chã [Hunter, A History of British India, 1, página 3]». «O Oriente, cheio de mistérios e de riquezas, o Oriente donde vinham as sedas, as pérolas, os perfumes, as especiarias, a Índia e a China, principalmente, exerceram sobre as imaginações vivas e curiosas dos nossos antepassados uma verdadeira fascinação. Encontrar um caminho mais curto ou mais seguro para chegar a essas regiões privilegiadas, fazer concorrência aos Venezianos… era então o alvo dum grande número de espíritos ousados e aventureiros. Daí as tentativas insistentes que os marinheiros portugueses prosseguiram durante quase um século, para eterna honra sua, com uma heroica perseverança. (…) Disse-se com verdade que nenhuma nação fez tão grandes coisas como Portugal, em comparação com a sua superfície e população [Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez les peuples modernes, I, páginas 2 e 41]».
Não há nisto nada de muito original: há muito quem tenha tido este tipo de discurso e, por muito que tivéssemos, muitos de nós, chegado a acreditar que ele não sobreviveria a um regime que já passou, ou pelo menos a uma época de nacional-ensimesmamento que, em princípio, também já acabou, há também muito quem continue a tê-lo. Mas eis que, como para deixar claro que há outros mistérios tão misteriosos como os do Oriente, David Lopes continua assim:
Todavia, em França ainda há quem escreva a história assim: «Depois da tomada de Malaca pelo grande Albuquerque, os Portugueses… espalharam-se pelos países da Indochina. Não se pode dizer que os seus atores foram nobres, nem que a sua influência foi feliz: eles comportaram-se em quase toda a parte como verdadeiros piratas… [Lavisse e Rambaud, Histoire Générale, V, pág, 924]».
Porque será que David Lopes, a encerrar a secção dos elogios dos historiadores estrangeiros à épica coragem dos portugueses, referiu uma opinião tão contrária à sua, quando não tinha, aparentemente, nenhuma boa razão para o fazer? Nem sequer, pelos vistos, a ideia de a combater, pois que limita a sua crítica a Lavisse e Rambaud a uma vaga nota de rodapé: “O autor vê o argueiro luso e não vê o cavaleiro cristianíssimo”.
É claro, podia argumentar-se com a mesma ligeireza em sentido contrário: Todos os que insistem no louvor enviesado da épica expansão lusitana veem os detalhes que querem ver, mas não veem o óbvio quadro geral.

II – Como as coisas são: eu que, aspirante a místico, passei anos da minha vida a querer descobrir uma unidade essencial por baixo da corriqueira ilusão do dualismo, digo agora que, tirando as fitas de Möbius, as coisas do mundo têm sempre dois lados e que ilusão, ilusão a sério, é querer ver só um deles. Quando o imperador do Japão expulsou os portugueses em 1587, fê-lo por os considerar propagadores de uma imoralidade fundamental: na boca deles, Deus deixava de ser Tudo para passar a ser apenas o lado bom das coisas, Deus era reduzido a metade[1]. Pois, bem, do mesmo crime contra a sua nação-divindade se pode acusar quem, na tentativa de louvar a expansão lusa, vê só bem nos feitos dos portugueses, fechando os olhos ao mal. Não acho disparate ver-se na expansão portuguesa – ou noutra expansão qualquer – uma epopeia. O que acho disparatado é querer retirar-se a essa epopeia piratarias, crimes hediondos e, no geral, todos os atos menos louváveis. Então as epopeias não são – por natureza, diria eu – relatos de todo o rol de heroicas imoralidades? Não é isso mesmo a Odisseia e a Eneida, em que a valorização positiva dos heróis a priori é que define o valor das suas ações e não uma qualquer perspetiva moral? Quem quiser louvar a pura epopeia e a heroica perseverança dos navegadores portugueses não deite fora, por favor, bocados importantes desses feitos épicos só porque eles são moralmente criticáveis (às vezes até muito).

III – Um problema das identidades é serem alógicas e amorais, como tudo o que é apenas gosto, sentimento fundo. Para se ultrapassar isto, é preciso disciplina. Podemos habituar-nos a ver com olhos outros que não os nossos, um grande exercício de realismo; e podemos forçar-nos para ver daquilo que gostamos também os aspetos negativos. Insisto que as coisas do mundo têm sempre dois lados – e que não há bela sem senão, como se costuma dizer. Estou a falar não só de nacionalismos, regionalismos e bairrismos, mas também de todas as outras paixões, definam elas ou não uma identidade.
Encontrei há dias um blogue duplo[2] interessante: de um lado, as coisas bonitas do Porto; do outro, as feias. Agora, é por apresentar o lado feio do Porto que o seu autor é menos portista? Claro que não. Até, porque, se as coisas bonitas do Porto servem para justificar o amor (não para o causar, note-se, que ele é, em boa regra, anterior a elas e delas independente; apenas para o justificar), as coisas feias podem servir para dar a esse amor uma ética, um sentido de futuro: “Isto está mal, não é assim que o Porto deve ser”. E eu não consigo ver, nem nunca ninguém me apresentou, nenhuma razão para que o amor se limite à aceitação de que o que se ama é como é, como está agora na moda propor, sem passar pelo desejo de melhorar o que se reconhece como negativo naquilo que se ama.

Que já estou longe de onde comecei? De certa maneira, sim… Conversa de blogue é como cesta de cerejas…
Moral
Frederik van Valckenborch, Paisagem com naufrágio,1603, óleo sobre tela, 100 × 199,5 cm, Museu Boijmans Van Beuningen, Roterdão (Wikimedia Commons)
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 [1] Excerto de carta do imperador Toyotomi Hideyoshi ao vice‑rei português das Índias de 1591: «A nossa terra é a terra de Deus, e Deus é espírito. Tudo na natureza existe pelo espírito. Sem Deus, não há espiritualidade. Sem Deus, não há caminho. Deus reina em tempos de prosperidade como em tempos de declínio. Deus é positivo e negativo e incompreensível. Por isso, Deus é a origem de toda a existência.» Traduzi eu de Sources of Japanese Tradition, vol. I. New York: Columbia University Press, 1958. O texto inglês diz “Ours is the land of the Gods”, mas eu, como as frases seguintes do texto inglês têm God no singular, traduzo também no singular esta ocorrência da palavra no plural.
[2] Em inglês, surge-me logo a palavra doublog, mas em português é mais difícil – nem dublogue nem duplogue resultam bem…