Não se deve confundir poda radical com poda radicular, por muito que radical e radicular tenham praticamente a mesma raiz...
[Nem radicular nem radical, a poda das macieiras do quintal...] |
Não se deve confundir poda radical com poda radicular, por muito que radical e radicular tenham praticamente a mesma raiz...
[Nem radicular nem radical, a poda das macieiras do quintal...] |
Distinguia a minha avó
dois casacos, os quais são:
sem trespasse, paletó;
de trespasse, jaquetão.
(E não julguem qu’isto é só
devaneio ou disparate;
saibam que era a minha avó
costureira d’alfaiate!)
Mas mais que o corte, enfim,
se é ou não assertoado,
o que conta, para mim,
é o mat’rial usado;
e aquele que mais combina
comigo é, não sei porquê,
a velhinha bombazina,
– ou veludo cotelê...
Além das palavras que aparecem nas quadras acima, aprendi com a minha avó muitas outras expressões mágicas e os gestos que lhes correspondem: alinhavar, chulear, gizar, passajar, pespontar, bolsos metidos e bolsos estampados, costura inglesa, singela ou dupla, e muitas outras. Estes termos da costura são uns mais conhecidos que outros entre os não iniciados, como é natural quando se trata de termos técnicos; mas figuram todos nos dicionários, como devem, por muito que haja já pouco em Portugal quem ganhe a vida a costurar artesanalmente, ou seja, a fazer roupa à mão e à máquina... de costura.
Como acontece também noutras áreas, alguns termos da costura foram importados de línguas mais internacionais, como o inglês das mangas raglan ou o francês de plissar – depois de devidamente nacionalizado a palavra plisser – e de poche, a bolsinha de pano onde a minha avó guardava agulhas, dedais e alfinetes. Achei que, no meio de tantos empréstimos dicionarizados que há (e bem, não tenho nada contra), poche também o devia ser e propus essa entrada a um dicionário, mas a minha proposta foi indeferida – a única poche que aceitam é uma interjeição «usada para chamar e afagar um cão»...
A máquina de coser lá de casa era uma Singer a pedal, com uma correia de transmissão de couro (igualzinha a esta aqui), que a minha avó, como creio que todos os portugueses dessa época (e não só...), pronunciava com g de gelo e não com g de gato. Aprendi nela a enfiar linha e a coser – mas quem cosia sempre era o meu irmão, que cosia muito melhor que eu... Normalmente, eu alinhava e ele cosia. Cosia a minha roupa e a dele. Apertávamos sobretudo jeans, que se usavam muito justas na pernas, ou fazíamos bainhas, coisas simples.
O princípio revolucionário do olho da agulha no extremo oposto ao das agulhas manuais, a ideia que permitiria a criação da máquina de coser, foi registado por um alemão que vivia em Inglaterra, Charles Fredrick Wiesenthal, em 1755 (!). Mas Wiesenthal não inventou propriamente uma máquina de costura. Nos 100 anos seguintes, foram-se sucedendo várias desenhos e protótipos de máquinas de costura, até que surgiram em meados do séc. XIX as máquinas de costura modernas, ou seja, já não muito diferentes da primitiva máquina da minha avó (ver aqui).
Penso que as pessoas não se dão conta da revolução que a máquina de costura constitui e sugiro um vídeo de Derek Muller no seu canal Veritasium em que, além de contar a história do engenho, explica em detalhe o seu funcionamento (em inglês).
«Eu sou alfa e ómega, o primeiro e o último, o princípio e o fim». As letras alfa e ómega, com o qui e o ró de Xristos sobrepostos entre elas, na Catacumba de Domitila, Roma. |
Mudando apenas a terceira letra de Alfa, consigo encontrar dois nomes de pessoas que conheço: Alda e Alma. Sei que existem também Alba e Alea, mas não conheço ninguém com esses nomes. Não consegui fazer mais nenhum nome de mulher mudando a primeira, segunda ou quarta letra de Alfa.
Zeta também é um nome, tanto nome próprio como apelido, e Capa e Gama são só apelidos, ao que sei.
Duas capas de revista com fotos de Robert Capa (1913–1954), repórter fotográfico conhecido sobretudo como fotógrafo de guerra, que morreu no exercício da sua profissão. |
O Grande Gama (à direita) em combate com Raheem Bakhsh Sultaniwala, um anterior campeão, que era, como se vê, muito maior que ele. |
☆
Agora, se, em vez do alfabeto grego, pensarmos antes no alfabeto fonético da OTAN, a Alfa que eu conheci também podia ter um namorado chamado Romeo, como quem poderia dar passeios de automóvel; ou ter amigos chamados Charlie ou Mike ou Oscar ou Victor, e amigas chamadas Juliett ou India ou Sierra – com a possibilidade de tanto India como Sierra serem cantoras de música country. Sierra é também apelido e Lima é só apelido.
India Ramey já foi advogada e agora é cantautora. Faz música de intervenção em forma de outlaw country.
A cantora Sierra Ferrell toca às vezes serra musical – quem sabe se por ter o nome próprio que tem...
Lima de Freitas: duas ilustrações de uma edição norte-americana de Nostromo, de Joseph Conrad, 1961 |
Conclusão:
Segui acasos fúteis, sem temerPerder-vos no que a sorte vos trouxer.
Não vem daí ao mundo nenhum bem,
mas também nenhum mal decerto vem...
Já aqui o disse aqui uma vez: Tenho a ideia de que, nas artes plásticas, a tão comum personificação feminina de ideais e conceitos abstratos tem sido um pretexto apenas para mostrar corpos femininos nus — e seios, principalmente seios. Creio que era mais fácil despir abstrações que duquesas, burguesas ou camponesas. É claro, o género gramatical de certas palavras nas línguas românicas justificar uma personificação feminina da República, da Justiça, da Liberdade, da Fortuna, etc. Mas por que razão é que a República, a Liberdade, a Justiça, a Fortuna e outras abstrações hão de aparecer de seios nus? Até nos cemitérios há estátuas de mulheres — anjos fêmeas e figuras alegóricas indeterminadas — de seios descobertos*…
Mas não só em figuras alegóricas, também noutros tipos de imagens. Por exemplo, no quadro abaixo, que razão haverá para estarem nuas as duas futuras mártires cristãs que serão lançadas às feras, a não ser, precisamente, isso mesmo — a vontade de as mostrar nuas?…
Tirando isso, gosto da obra. Gosto, sobretudo das indefinidas feras que, lá do fundo, cristianizam os nus, se se pode dizer assim...
_______________
* [Longa nota de rodapé, maior, afinal, que o próprio texto...]
O caso das personalizações nuas da Verdade é um pouco mais complicado: a expressão «verdade nua [e crua]» existe em várias línguas, mas não consigo encontrar uma explicação inequívoca da sua origem.
Há uma história conhecida que diz que, de uma vez que a Verdade se banhava num rio, passou por lá a Mentira, que lhe roubou a roupa que ela deixara na margem. A história ocorre com pelo menos duas conclusões. Nalguns textos, diz-se que a Mentira lá deixou as suas roupas, mas a Verdade preferiu ir nua que vestir a roupa de Mentira. Noutros, diz-se que a Mentira não deixou lá roupa nenhuma e que, daí em diante, aparece às pessoas vestida como se fosse a Verdade, ao passo que esta última não pode senão aparecer nua e que, por isso, muitas pessoas recusam olhar olhar para ela.
Esta história é muita vezes dada como sendo uma fábula da antiguidade, mas não consigo encontrar dela versões antigas. O que consigo encontrar, isso sim, é uma famosa citação de Demócrito, que diz que «na realidade, não sabemos nada, porque a verdade está no fundo de um poço». Segundo algumas traduções, seria antes «Da realidade, não sabemos nada...», ) e, em vez de poço, tratar-se-ia de um abismo».... Como não sei grego antigo, não posso tomar partido por nenhuma das traduções, mas o certo é que há toda uma tradição pictórica de representar a Verdade saindo nua de um poço — muitas vezes com uma espelho na mão, que é também uma forma clássica da sua representação. A mais conhecida destas obras é a pintura de Jean-Léon Gérôme «A Verdade saindo do poço armada do seu chicote para castigar a humanidade». Este quadro é de 1896, mas há vários anteriores, a partir de 1879, pelo menos.
Pode pensar-se que, mais uma vez, é a vontade de mostrar mulheres nuas que justifica este motivo pictórico. O facto de Demócrito ter posto a Verdade nas profundezas da terra não pode justificar, por si, a sua nudez: porque não haveria ela de estar num poço e vestida?
Já em 1838, porém, podia ler-se, num conto em verso de Jean-Pierre Claris de Florian:
«A Verdade, toda nua, / Saiu do seu poço um dia. / Já despojada, p'lo tempo, / dos encantos que tivera.»
Pode então a origem da nudez ser literária e não pictórica...
[Continuação daqui]
Álvaro Barrios e a arte pop a brincar com a arte
O ponto de partida deste longo devaneio foi o ready-made. E foi a obra de Álvaro Barrios, um artista colombiano, que me chamou a atenção para a relação entre o ready-made e a arte pop — que agora já vi referida, mas em que antes nunca tinha atentado.
Álvaro de Barrios pode ser visto como um discípulo de Lichtenstein, pelo menos nas obras em que se apropria de quadros de banda desenhada[4] — e é sobretudo disso que aqui se trata. Mas o uso que Barrios faz da BD é muito diferente daquele que Lichtenstein normalmente faz.
A primeira diferença entre as obras dos dois artistas é a escolha de referências. Se Lichtenstein prefere as séries de romance e de guerra dos anos 50 e 60 (ilustradas por desenhadores famosos como Joe Kubert e John Romita Sr., ou por outros menos conhecidos[5]), Barrios prefere os grandes heróis dos anos 30 e 40, como Dick Tracy, de Chester Gould, Fantasma e Mandrake, de Lee Falk, Red Ryder, de Fred Harman, Super-Homem, de Joe Shuster, Terry and the Pirates, de Milton Caniff, Tintin, de Hergé, etc.
Barrios pode não ter a técnica de um grande desenhador ou pintor, mas consegue fazer funcionar as suas ideias — e aqui temos mais um caso em que a ideia é tão importante como a sua execução, se não mais. E, ao contrário de Lichtenstein que unifica com um traço incaracterístico os traços dos ilustradores que «cita» (não se pode ver num quadro de Lichtenstein se se baseia em Kubert ou Romita…), Barrios insiste, na maioria das suas obras em que há apropriação de outros artistas, em preservar o traço de cada um dos ilustradores apropriados e, nos seus quadros, vê-se bem que a imagem foi tirada de (ou se baseia em) Shuster, Falk, Harman ou Caniff, por exemplo.
Outra diferença é, precisamente, o uso do texto. Nas obras de Barrios, o texto é uma parte tão importante da obra como a imagem. Mas os textos das pinturas baseadas em BD não são textos de quadros de BD. E isto é diferente do que Lichtenstein fazia. Na grande maioria dos casos, Lichtenstein conserva exatamente o texto do quadro de BD «apropriado», ou introduz modificações mínimas, como, por exemplo, acrescentar apenas o nome Brad[6]. Essa «fidelidade» à obra «apropriada» pode ser entendido como um modo de criar ironia — uma crítica implícita ao universo do romance popular ou da aventura de massas... Mas revela também, como referi na primeira parte deste texto, um processo de criação muito próximo do ready-made de Duchamp: agarrar num objeto preexistente e elevá-lo a obra de arte (quase) só pela sua vontade — e por uma ampliação feita com uma técnica artística muito limitada. Uma das raras exceções, na obra de Lichtenstein, à preservação do texto da BD original é uma pintura de 1964, Masterpiece, que aponta para o que Barrios viria a desenvolver de outra forma: a referência à pintura. A imagem é tirada de uma BD de Ted Galindo e um pouco mais modificada do que o habitual, também ao nível gráfico: a janela do automóvel é transformada numa tela de pintura vista de trás. É aliás, um dos quadros de Lichtenstein mais aceitáveis do ponto de vista gráfico, embora a omnipresente falta de dinamismo do traço ressalte em vários pormenores — especialmente quando comparado com o traço — banal, talvez, mas escorreito e profissional — de Ted Galindo. Quanto ao texto, é completamente modificado: no original, a rapariga diz: «But someday the bitterness will pass and maybe I'll be the girl to change your heart! But for now at least I can be near you!» («Mas algum dia a amargura há de passar e talvez eu venha a ser a rapariga que te faça sentir de outra maneira. Mas, por agora, pelo menos posso estar perto de ti»); no quadro de Lichtenstein, a rapariga diz antes «Why, Brad darling, this painting is a masterpiece! My, soon you’ll have all of New York clamoring for your work!» («Bem, querido Brad, esta pintura é uma obra-prima. Ena, em breve terás Nova Iorque inteira a aclamar o teu trabalho!») O demonstrativo this é ambíguo: refere a obra vista de costas no quadro ou o próprio quadro de Liechtenstein? Seja como for, haja ou não autorreferência da obra (um motivo tão em voga nas artes na segunda metade do séc. XX) é difícil não ver no quadro uma alusão (irónica?) à consagração que Lichtenstein começava a ter no mundo das artes plásticas. A haver alguma filiação em Lichtenstein (Barrios recusa-a), é no raro Lichtenstein do Masterpiece.Barros cria sempre os textos das suas obras. E estes textos são uma componente tão essencial dessas obras que se pode dizer que, por muito que a sua estética seja inequivocamente pop, Barrios é, de facto, um artista conceptual mais que um artista pop. Mas é um conceptualismo desopilante, de paródia. Barrios brinca com tudo: com a sua relação com os seus mestres, com as teorias da arte, com a própria arte moderna. E faz muitas vezes alusões mordazes e divertidas ao mundo das artes. Como diz Elías Doria, «As vítimas da sua sofisticada ironia parecem ter sido trazidas de volta da década de 1940 numa implacável máquina do tempo, mas os problemas que aborda estão ancorados no decadente presente legitimado pelas bienais, pelas casas de leilões, pelas poderosas galerias internacionais, pelas socialites de todos os tempos e um interminável etecetera».Por fim, a diferença mais significativa entre Lichtenstein e Barrios é que este muitas vezes não se limita a recriar pedaços de BD, transformando-os noutro «tipo de arte»[7]. Introduz elementos de estranhamento — referências intelectuais, todos eles — que são outro aspeto fundamental da produção do efeito de pastiche humorístico que referi acima.
É uma recriação-recreação, se se pode dizer assim, em que Duchamp e os seus ready-mades têm muitas vezes um papel de destaque. Não há dúvida de constituem fontes fundamentais da obra de Barrios. Sobretudo a sua «Fonte»: essa é mais importante das fontes…
_______________
[4] Lichtenstein foi o pintor pop que mais se «apropriou» de bandas desenhadas, mas não foi o único.
Andy Wharol fez pelo menos dois quadros que são também apropriações de quadros de BD: Superman Puff, de 1961, e Dick Tracy, de 1963 — este último com alguma desconstrução da imagem original, que desconheço. Pode ver-se aqui a imagem original do Super-Homem de 1961, mas não há, infelizmente, referência ao artista (Curt Swan?). David Barsalou refere (ver link anterior) que este Super-Homem de Warhol é mais de seis meses anterior ao primeiro trabalho de Lichtenstein usando a mesma «técnica», se se pode dizer assim, pelo que «Andy Warhol sempre pensou que Roy Lichtenstein viu as suas pinturas no Bonwit Teller..., roubando as suas ideias e conceitos originais». Uma pessoa pode, pois, apropriar-se da ideia de apropriação…
Outros artistas mais ou menos pop têm obras baseadas em BD. Sharon Moody é um bom exemplo, embora o trabalho dela se possa considerar talvez mais hiper-realismo neobarroco…
[5] Como Tony Abruzzo, Ross Andru, Hy Eisman, Myron Fass, Ted Galindo, Jerry Grandenetti, Irv Novick, Arthur Peddy, Jay Scott (Jim) Pike e Mike Sekowsky, entre outros.
[6] Curiosamente, o nome Brad parece também ser uma apropriação do nome de uma personagem de um dos autores de que Lichtenstein mais se apropria, Tony Galindo.[7] É agora fácil saber de que BDs específicas Lichtenstein se apropriou para os seus quadros, devido ao trabalho de pesquisa de David Barsalou, entre outros; mas não consigo saber de que histórias concretas é que Barrios tirou os desenhos em que as suas obras se baseiam, nem sequer se são tirados de histórias concretas ou são antes colagens de várias fontes. Parece-me improvável que sejam criações suas usando apenas personagens conhecidas, porque o traço dos autores de que se apropria está demasiado presente nas obras. Parece-me evidente, por exemplo, que a série de quadros baseados em Terry e os Piratas, nos anos 2010, é construída com cópias exatas de quadros das BDs, apenas com uma cor de fundo e um texto diferentes (podem ver aqui alguns deles).
Roy Lichtenstein não glosou (um eufemismo?...) só imagens de bandas desenhadas. Um caso curioso é o da série Bull Head Series, de 1973, que remete, à primeira vista, para duas séries anteriores, as composições Vaca, de Theo van Doesburg (1917) e O Touro, de Picasso (1947).
Quatro vacas da série de Theo van Doesburg. |
É de notar, porém, que Lichtenstein nega o trabalho de progressiva abstrativização que me parece óbvio na sua série ao negar que haja figurativismo inicial. Diz ele:
«A série finge ser didática; estou a dar-vos lições de abstração. Mas, para mim, nenhum [boi] é mais abstrato que outro. O primeiro é abstrato; são todos abstratos».
Esta afirmação levanta-me imediatamente algumas questões:
A obra valeria sem a explicação ou é esta explicação que justifica a obra, que a cria? Se a afirmação de Lichtenstein fizesse parte da obra, se estivesse escrita na própria obra, poder-se-ia falar aqui de conceptualismo no sentido proposto por Sol LeWitt?
E que sentido tem uma afirmação destas? É algo que se diz apenas pela vontade de dizer algo bombástico? Uma pequena provocação? Na realidade, as primeiras imagens da série de Lichtenstein são figurativas e as outras abstratas — a não ser que se dê um significado novo, e por isso incompreensível, aos termos figurativo e abstrato... A experiência é fácil de fazer: pergunte-se a várias pessoas o que representam essas imagens e todos saberão responder, ao contrário do que acontece com as últimas figuras da série.
As primeiras imagens da série são figurativas, mas não são figurativamente interessantes, se se pode dizer assem. A primeira ainda é aceitável, embora revele a tal falta de dinamismo e de domínio da linha e das sombras próprios dos bons artistas plásticos. A segunda, porém, é claramente um trabalho de um desenhador inexperiente. As primeiras imagens das séries de Doesburg e Picasso podem não ser grandes obras, mas valem por si, sem a necessidade de explicação do que se pretende com a série. As de Lichtenstein, bom, não me parece. Acho que estão mais do lado dos sonetos de Degas que das suas bailarinas.Mas não desgosto das duas últimas obras da série, as completamente abstratas. Do que vi de Lichtenstein, são de facto das obras de que mais gosto... (Também não desgosto do seu Tríptico das Vacas (ver aqui), cujo primeiro quadro, figurativo, um pouco com uma estética de anúncio de produtos lácteos, é muito melhor que as pinturas figurativas da Bull Head Series.)
[Continua aqui]
_________________
[3] As imagens da série de Picasso nunca deixam de ser figurativas, são apenas cada vez mais simples. Como diz o litógrafo Fernand Mourlot, que foi assistente de Picasso neste projeto, «para chegar ao touro de um só traço, teve de passar por todos os touros precedente. E quando vemos o seu touro número 11, não conseguimos imaginar o trabalho que esse touro lhe exigiu».
Gravuras nº 1, nº 6 e nº 11 (última) da série de Picasso. Podem apreciar aqui a série completa. |
Qual é o material da arte?
Refere Paul Valéry nas suas Œuvres, um episódio que lhe tinha contado Edgar Degas (todas as traduções neste texto são minhas):
«Um dia […] em que estava a jantar em casa de Berthe Morisot com Mallarmé, [Degas] queixou-se das grandes dificuldades que tinha com a composição poética:
– Que trabalho este! – exclamou ele – passei o dia todo com um malvado dum soneto, sem conseguir fazer progresso nenhum... E, no entanto, não são as ideias que me faltam... Tenho muitas... Tenho demasiadas...
E Mallarmé respondeu, com a sua afável profundidade:
– Mas, Degas, não é com ideias que se fazem versos... É com palavras.»
Mallarmé tem bastante razão. E o que diz dos versos pode dizer-se de qualquer forma de expressão artística. Se Degas era melhor pintor do que poeta era porque dominava melhor as cores, as linhas, as formas do que os sons, acentuações e ritmos das palavras, etc. Não devemos ser demasiado radicais, porém, na recusa da importância das ideias nas artes. Depende muito de que arte falemos e, obviamente, do que queiramos dizer com «ideias», que é termo algo escorregadio. Uma sequência de sons, uma meia frase ainda sem significado nenhum é uma ideia? Ou uma combinação de cores, ou uma forma vaga? «Olha, isto é giro, o que se podia fazer daqui?» é uma ideia?
As ideias também podem, nalguns casos, ter uma importância fundamental. Há formas de arte em que só a ideia existe, o objeto-obra-de-arte — o quadro, o poema, a escultura — são sem interesse nenhum. Dizia Sol LeWitt, um dos pioneiros do chamado conceptualismo:
«Na arte conceptual, a ideia ou conceito é o aspeto mais importante da obra. Quando um artista utiliza uma forma de arte conceptual, isso quer dizer que toda a planificação e todas as decisões são feitas de antemão, e a execução é uma mera formalidade. A ideia torna-se uma máquina que cria a arte.»
Os antípodas de Mallarmé.
Objetos artísticos pré-fabricados — ou quase
Não é bem de arte conceptual que vos quero falar, até porque é coisa que não conheço. Queria antes falar um pouco de arte pop, de alguma arte pop. Mas não é nenhum ensaio o que se segue, nada de seriamente ponderado, é mais deixar correr o teclado sem grande escrutínio nem organização e dar conta de afiliação, de preferências — um texto de blogue, é o que é. E parto, no meu devaneio, de um tipo de objetos artísticos que são considerados ao mesmo tempo precursores — senão mesmo fundadores — da arte conceptual e da arte pop: o ready-made.
Antes de mais, o que é um ready-made? Para alguns, ready-made não é nem um tipo de objeto artístico, nem um método de criação de artística em geral. Dizem que ready-mades só há os de Marcel Duchamp. Os outros serão «objetos encontrados» ou outra coisa qualquer, mas deve deixar-se a Duchamp o monopólio da coisa ready-made. E que coisa é essa?
Quer se aceite que Duchamp tenha ou não o monopólio do conceito, é relativamente consensual ser ele o seu inventor. E ou inventou uma coisa que não sabe ao certo o que seja — ou então, inventou-a propositadamente como algo impossível de definir. Diz ele em 1963:
«Um ready-made é uma obra sem artista para a fazer».
No fundo, a definição coincide com a que André Breton propusera e que era a única que eu conhecia antes de começar a escrever este texto:
«Objeto comum promovido à dignidade de objeto de arte pela simples escolha do artista».
Breton disse outra vez a mesma coisa de outra maneira, referindo aqui não o objeto em si, mas sim o processo da sua criação:
«Ação de desviar [o objeto] dos seus fins, dando-lhe um novo nome e assinando-o, o que implica a requalificação pela escolha».
Provavelmente, o mais famoso ready-made: Fonte, de Marcel Duchamp (1917) Cópia do objeto original na Scottish National Gallery of Modern Art, Edimburgo. Foto de Kim Traynor. Wikimedia Commons, daqui. |
Não são ready-mades em sentido estrito, porém, que se encontram na arte pop, mas antes semi-ready-mades, se se pode dizer assim: em vez de ser apenas um objeto já existente requalificado como arte, a obra artística é antes uma reprodução simples desse objeto. Para referir os casos mais icónicos, não uma lata, mas uma imagem de uma lata, não uma revista de banda desenhada, mas a apropriação de imagens de banda desenhada, etc.
Evidentemente, a apropriação de obras existentes (fotos, design, filmes, banda desenhada) levanta questões éticas[1] — e, em última análise, legais —, mas isso não parece importar muito os artistas pop. Para Roy Lichenstein, a questão ética da apropriação não se põe. O seu trabalho é, segundo ele, outra obra, não uma apropriação. Além disso, as bandas desenhadas que usou como base para as suas pinturas eram, para ele, trabalhos de segunda categoria: «A banda desenhada não tem nenhuma relação com nada a que eu chame arte», afirmou ele.
Artes maiores e menores: o lugar do desenho
Em cima: As I Opened Fire, de Roy Lichtenstein, 1963; em baixo, tira do nº 90 de American Men of War, de Jerry Grandenetti, 1962. Podem ver aqui a rotação das imagens descrita por R.C. Baker na sua crítica à apropriação de Lichtenstein (trabalho de Roger Schaeder no seu site Rogers Seriemagasin). |
Gibbons discorda:
«Isto, a mim, parece-me plano e abstrato, a tal ponto que se torna confuso para a vista, ao passo que o original tem uma qualidade tridimensional, tem uma espontaneidade, uma vivacidade e uma maneira de captar o olhar de quem o vê que falta neste quadro. Por exemplo, a explosão aqui parece-me apenas um conjunto de formas planas, enquanto que, no original, porque não há traços e tudo depende da cor, a explosão me parece ter muito mais as características de uma explosão.»
R.C. Baker, do Village Voice, tem uma opinião semelhante sobre como as apropriações de Lichtenstein perdem em qualidade relativamente às suas «fontes»:
«As linhas flácidas, as cores baças e os designs deselegantes do artista são invariavelmente menos dinâmicos do que o realismo quotidiano dos profissionais da banda desenhada. Enquanto um expressionista da BD como Jerry Grandenetti habilidosamente inclina os canos das armas para apanhar só o canto de um painel, Lichtenstein eleva-os a uma diagonal mecânica na sua apropriação de 1963, As I Opened Fire, um erro de layout que reduz pintura a cartaz.»
Concordo com Gibbons e Parker. Também acho que as apropriações de Lichtenstein ficam sempre a perder em relação ao original em termos de equilíbrio das formas e mesmo de cor, mas, para mim, isso é o menos: a qualidade do traço é o maior problema. Deselegância e amadorismo podem ser aqui palavras-chave. Lichtenstein é um desenhador muito fraco. Podem ver lado a lado os quadros originais das bandas desenhadas e as apropriações de Lichtenstein aqui ou aqui e julgar por vocês mesmas/os. Algumas obras — tanto esboços como produtos finais — revelam um traço tão amador que parecem decalques feitos com papel vegetal por alguém sem experiência de artes plásticas. É difícil compreender como podem ser de um pintor famoso.
Cinco exemplos do amadorismo do desenho de Lichtenstein. Da esquerda para a direita: Conversation, 1962; Girl, 1964; Tension, 1964; Reckon not, Sir!, 1964; e We rose up slowly, 1964. Os quadros de BD originais de onde foram tiradas estas obras são de desenhadores competentes: por ordem, Ted Galindo, Joe Simon, Tony Abruzzo, Joe Kubert (um mestre!) e John Romita. Podem ver os originais clicando no título de cada obra. Não são propriamente obras-primas, mas são, pelo menos, profissionais — mais do que se pode dizer das linhas e dos sombreados de Lichtenstein... |
Roy Lichtenstein, Brushstroke, 1965. Nada como a representação estilizada de uma pincelada para se ver a qualidade — ou a falta de qualidade — do traço de um artista. |
Albert Dorne, que era um verdadeiro artista e não um «mero» desenhador, respondeu muito a bem a Warhol:
«Desculpe lá, Andy, mas, porra, desenhar não tem nada de mero».
Edgar Degas: Duas bailarinas na barra, cerca de 1872 Museu Boijmans Van Beuningena, Roterdão |
Provavelmente, o que nos faz tomar partido por Irv Novick ou por Roy Lichenstein, por Dave Gibbons ou por Alastair Sooke, por Andy Wharol ou por Albert Dorne é apenas gostar ou não de desenho, estar ou não interessado em desenho, valorizar ou não o desenho, e, em última análise, (re)conhecer o desenho como forma de expressão artística ou não. E desenho e ilustração são paixões minhas.
[Continua aqui]
____________________
[1] David Apatoff trata a questão da dupla moral da apropriação num texto do seu blogue Illustration Art (em inglês). Diz ele que artistas que se apropriam das obras alheias não deixam que ninguém se aproprie das suas obras apropriadas e que a apropriação «será sempre menos crime se forem artistas plásticos de renome a roubar a artista "comerciais" ou de formas de arte menos consagradas (como sejam ilustradores, designers industriais e artistas de banda desenhada)»
[2] Dave Gibbons é autor de uma obra em que satiriza violentamente a apropriação de Lichtenstein do trabalho de Irv Novick em WHAAM! Ver este texto deste blogue.
✵
A nossa idade é sem fim– deixa só de ser, um dia,a idade que se tem,p’ra ser a que se teria…✵
Na sua canção “Here Stands A Woman”, de 2024, Gillian Welch refere um motivo recorrente da canção popular americana, a ”Danville girl”. Não se pode dizer exatamente que seja uma canção específica que ela refere, já que o motivo da ”Danville girl” aparece numa série de canções ditas tradicionais, com diferentes títulos, como ”Ramblin' Reckless Hobo”, “Wild and Reckless Hobo”, “Around a Western Water Tank” e outras (ver aqui ou aqui listas dessa linhagem de canções).
A personagem da canção de Gillian Welch não é a mesma que a da canção tradicional. Tem em comum com ela vir de famílias abastadas e ter sido uma rapariga elegante, mas não tem, como na outra canção, uma relação breve com um vagabundo, que a deixa para continuar a sua vida errante. Na canção de Welch é a rapariga de Danville que deixa Danville, deixa de usar os lacinhos e os caracóis das raparigas de Danville e empenha até, num momento de necessidade, as joias que a família lhe tinha dado. A canção descreve o fim de uma relação amorosa, mas a voz feminina da canção, a rapariga de Danville, está convencida de que o amor acabou porque já não existe a rapariga por quem o seu homem se tinha apaixonado – ela mudou...
You told me that you loved me
And that would never change
Now I'm looking in the mirror
And I know that I'm to blame
'Cause it's all gone, babe, like the song says
Fallen from her curls
Here stands a woman
Where there once was a girl
Come a long way from Danville
Where they wear that Danville curl
The mother and the father
Who kept me in their care
They're both gone like the ribbons
That I used to wear
But it's alright, Ma, things got tight, Pa
So I went and pawned the pearls (…)
You told me that you loved me
And that would never change
But I'm looking in the mirror I know I'm not the same
Escolho a versão de Dock Boggs (1927) da canção referida por Gillian Welch, porque é a primeira gravação de uma variante deste grupo de canções em que o motivo da Danville Girl é central; e também a primeira que, por isso, se chama mesmo “Danville Girl”. Tem também os elementos de vagabundagem e da interminável viagem de comboio que são comuns a todas as variantes, mas a história amorosa é mais do que um elemento entre vários, como noutras versões.
I went down to Danville
Got struck on a Danville girl
You bet your life she's out of sight
She wears those Danville curls
She wears her hair on the back of her head
Like all high-toned people do
The very first train that leaves this town
Gonna bid that girl adieu
I don't see why I love that girl
For she never cared for me
But still my mind is on that girl
Wherever she may be
A ideia de que o «verdadeiro» significado de uma palavra está diretamente relacionado com o seu significado «primeiro» e, por isso mesmo, «primordial» — ou, dito de outra maneira, que se pode usar o significado «etimológico» de uma palavra para escrutinar melhor a noção que ela exprime — é uma ideia com bastante fortuna, mas é uma ideia muito duvidosa... Dos vários significados por que passa a história de uma forma linguística, não há nenhuma que seja mais essencial que outro. E depois, com rigor, o significado «etimológico» de uma palavra de uma língua atual não existe, só existe o significado que teve — noutra língua! — outra palavra que está na origem da palavra atual. Mas a conversa é capaz de estar vaga demais. Vejamos casos concretos.
Uma amiga insistia, há uns meses, na necessidade de referir a noção de ideologia ao significado etimológico de ideia, que ela ligava a Platão. Ora a palavra ideologia é uma palavra relativamente recente, que não foi formada a partir da ἰδέα (idea) grega, mas do significado que a descendente francesa dessa palavra, o termo idée, tinha no séc. XVIII, que era já muito semelhante, se não igual, o que tem hoje. Muito diferente desse significado atual de idée (ou de ideia, em português, que lhe corresponde diretamente) é, porém, o significado das formas anteriores da palavra em grego, em latim e em francês antigo (até ao séc. XVI): a ideia platónica de «arquétipo» decorre naturalmente do significado de «forma, padrão, aspeto exterior», que essas formas tinham — o que aliás não surpreende, se pensarmos que a palavra deriva de εἴδω (eídō, “vejo”), que, por sua vez, deriva do protoindo-europeu *weyd-, «ver ou saber» (pelo vistos a relação entre cognição e visão é antiga, estão a ver?). De facto, a palavra ideia está etimologicamente relacionada com o nosso verbo ver, com ídolo e com o raro termo viso, que mantém o significado do seu étimo latino visum: «o ato de olhar; visão; aparição; aspeto; prenúncio». Visum está também na origem do italiano viso e do francês visage, que significam «rosto» e do inglês wise, «sábio» e formas semelhantes em várias outras línguas germânicas, e também do inglês wizard «feiticeiro». Em querendo, há muita coisa que se pode relacionar etimologicamente, não é verdade? Agora, se o significado de idée no francês do séc. XVIII não era diferente do que tem em francês atual, já o mesmo não se pode dizer de idéologie, que foi uma palavra cunhada em 1796 por Destutt de Tracy para designar uma ciência que teria por objeto o estudo das ideias, «a análise do pensamento, simplesmente», e que ele propõe que venha substituir a metafísica. Não só a idea grega original não é tido em conta na cunhagem do termo idéologie, como este termo não tem, na origem, relação direta com o seu significado atual. A noção moderna de ideologia (ou as noções modernas de ideologia, porque há algumas nuances no uso do termo em diferentes contextos*) só aparece no século XIX e é só no séc. XX que ganha ampla difusão.
Dou-vos só mais uns exemplos, que encontrei por acaso nos últimos tempos, do que muitas vezes se faz. Neste vídeo, por exemplo, põe-se a etimologia a corroborar uma certa perspetiva da didática: Afirma-se que «a etimologia[…] sempre nos ajuda a descobrir nas palavras sentidos mais ou menos ocultos que nos possibilitam entender melhor a própria realidade», mas há algum viés na descrição etimológica. Dos cinco termos referidos no vídeo, comento três, para não tornar o texto demasiado longo.
Dizer que laboratório vem de labor, «que é trabalho, tarefa» e «mais especificamente um trabalho ligado à tarefas agrícolas» e que «o laboratório tem muito a ver (…) com o esforço dos alunos em fazerem descobertas como se estivessem cultivando a terra do conhecimento» é uma forma mais poética que rigorosa de dizer as coisas. É certo que a palavra laboratório está relacionada com labor, já que foi criada a partir de uma forma do verbo laborare. Mas laborare é bem mais em latim, que trabalhar a terra: é trabalhar, esforçar-se, labutar; sofrer, ser oprimido, ser afligido por, estar perturbado com; elaborar, desenvolver, formar, fazer, preparar. A palavra francesa laboratoire, porém, de que deriva a nossa, surge no séc. XVII e alguns dos seus significados registados nesse século e no século seguinte são o de «parte da farmácia onde se preparam os remédios», «oficina de trabalhos manuais (de um pintor de esmalte)», « parte de um forno de revérbero onde se põe a matéria sobre a qual age o combustível» e «gabinete de um homem de letras».
Dizer que estagiário vem de stagium, que «significa o lugar onde a pessoa está, mas é um lugar de passagem» e que, portanto, «o estagiário (…) está num lugar que é apenas (…) provisório para algo», que ele «está ali aprendendo, vendo, observando, mas em vista de um progresso», além de não acrescentar muito à ideia que todos têm do termo estágio, também foge um pouco ao rigor etimológico. De facto, a palavra latina stagium, que significava «moradia» (normalmente, uma moradia associada a uma função laboral/social) vem do francês, ao contrário do que costume: é uma latinização medieval (!) do francês antigo estage (deverbal do francês antigo ester, «estar de pé, encontrar-se», que mais tarde também veio a significar «estado, posição, situação» e deu o atual étage). Os primeiros significados de stage em francês são já muito próximos do seu significado atual em português.
E dizer que «a palavra professor, professora vem de profiter, que tem a ver com a apresentação de uma pessoa estar diante de alguém», já que «pro- é estar à frente de alguém» e que, -fiter, por seu turno «vem de fateri, um outro verbo latino que significa "apresentar, falar, expor"», pelo que «o professor então é aquele que se expõe diante dos alunos», é também torcer a etimologia para a obrigar a dizer algo. Na realidade, professor/a vem do latim professōr, que é «aquele/a que se declara perito numa arte ou ciência». O nome deriva do verbo profiteri, que significa «defender, declarar publicamente, reconhcer(-se); professar; declarar-se, confessar». É certo que a origem última é per- «para a frente», e fateri, «reconhecer, confessar» (da família de fari, «falar», da raiz preindo-europeia*bha- «falar, dizer»); mas isto mostra que, conforme dá jeito a quem usa desta forma a etimologia, se pode ir mais ou menos longe na história das formas — com diferenças de muitos milhares de anos — para as pôr a dizer o que se quer. De facto, quando se dá uma palavra grega ou latina como étimo da palavra atual, há também que pensar que estas palavras também tinham étimos em línguas anteriores e que, se «primeiro é mais verdadeiro», porque não se vai antes ao protoindo-europeu?
Adão cavando a terra, vitral da Catedral de Cantuária. (Da página oficial da Catedral no Facebook) |
É certo que às vezes o desenrolar das relações etimológicas resulta num discurso engraçado e sedutor, como neste caso, em que se relaciona corretamente humano, humanidade e homem — e Adão — com húmus, humildade e humilhar — mas as conclusões morais retiradas dessas relações (que a etimologia convida o humano à humildade, a encontrar o seu lugar na terra sem a humilhar, com respeito e humildade) não derivam, obviamente, da etimologia em sentido estrito.
A conclusão de tudo isto são que, quando se insiste na maior pureza de um determinado significado etimológico de uma palavra ou na descoberta de sentidos escondidos na etimologia que definem melhor o que uma palavra quer dizer, o que se faz de facto é puxar a brasa à sua sardinha, quer dizer, pôr a etimologia a corroborar uma aceção de uma palavra para dar força a um argumento — para se chegar, enfim, onde se quer chegar. É possível, sem grande esforço, aliás, estabelecer relações entre palavras que, atualmente, não têm relação semântica entre si a partir uma manipuladora referência à sua etimologia. Para voltar a um exemplo dado atrás, se alguém quiser que há atualmente uma idolatria do vídeo, acho que deve apresente argumentos mais sólidos do que referir a sua relação etimológica… Aqui estou a brincar, é óbvio, mas há quem se entretenha a fazer relações deste tipo...
Para mim, é claro que, em caso de paragem cardíaca, não quero ser reanimado. É que estou convencido de que a morte é mesmo o pior que me pode acontecer na vida e não estou para passar duas vezes por tão desagradável experiência.
Dizia aqui no outro dia que «muitos conceitos abstratos são referidos com metáforas de coisas materiais». De facto, quando uma palavra é usada em várias aceções, umas mais abstratas que outras, a aceção mais concreta costuma ser a primeira: estrela usava-se para referir um corpo celeste antes de se usar para referir uma celebridade e a palavra foco usava-se para designar um ponto de luz (é uma forma divergente de fogo) antes de referir, entre outras coisas, «questão, assunto ou ponto para onde converge a atenção de alguém».
Parece fazer todo o sentido, não é verdade?, esta deslocação metafórica das coisas mais concretas para as menos concretas e é de facto assim que o significado evolui muitas vezes. Mas nem sempre. O contrário pode também acontecer e às vezes surpreende-nos.
Por exemplo, quando se diz «o fruto do meu trabalho», podemos pensar que é mais um caso do tipo de evolução semântica do concreto para o abstrato. Na realidade, porém, não se trata de uma metáfora do fruto da planta, mas antes ao contrário: o sentido mais antigo de fructus em latim é o de «utilização, disfrute» — «fruição», enfim, ou «usufruto»! A palavra é de facto um particípio do verbo que deu o nosso fruir e que tinha o mesmo significado. E é deste sentido mais abstrato de «fruição» que deriva a aceção mais concreta de «produto» (não forçosamente agrícola, mas também agrícola, e não limitado a fruta) ou de «rendimento proveniente do que se produz» e, enfim, o da componente ou órgão de uma planta.
Parasita é outra palavra em que a evolução do significado se faz ao contrário do que muitos esperariam: poderia pensar-se que o significado primeiro é o de «animal ou planta que se alimenta de um hóspede», mas este significado surgiu há pouco tempo e deriva diretamente do significado original: a palavra grega parasitos significava «alguém que come em casa de outrem», sobretudo «quem frequenta as casas dos ricos e obtém as suas graças através de bajulação».
Já agora, uma curiosidade que não tem nada a ver com o tema aqui tratado: o latim fructus teve uma fortuna tal que se usam os seus descendentes em praticamente todas as línguas europeias, sejam elas românicas, germânicas, célticas ou eslavas (podem ver aqui exemplos em mais de 50 línguas.]
Outra curiosidade é a distinção que se faz em português e noutras línguas ibéricas entre o masculino fruto e o feminino fruta. Fruta é um nome não contável*, ao contrário de fruto, e, embora os dicionários de português e castelhano digam que designa «os frutos comestíveis», a verdade é designa apenas frutos comestíveis sem casca rija e de sabor tendencialmente doce — nunca se chama fruta a nozes e avelãs, nem a tomates, pepinos, pimentos, azeitonas e muitos outros frutos não doces.
* Ao que vi, fructa, plural neutro de fructus, já existia em latim com esta aceção dita «coletiva».