11/12/25

Língua de trapos

A minha avó usava a expressão língua de trapos para referir alguém que lhe custava a entender («ela/ele é uma/um língua de trapos, não se percebe nada do que ela/ele diz»), por algum defeito de pronúncia ou pela desorganização do discurso confuso, por ser um trapalhão, por se atrapalhar na elocução e lhe sair da boca uma trapalhada – para usar três palavras que vêm de trapo, precisamente.

Evidentemente, não era uma expressão exclusiva da minha avó, ouvi-a também a outras pessoas. E estou em crer que a expressão morreu na geração dos meus pais. Ou talvez na minha, não sei, mas não me lembro de a ter ouvido a pessoas mais novas. Procurando nos dicionários em linha, só encontro língua de trapos no Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa com o significado de «pessoa maldizente», aceção com que nunca a ouvi (não será uma confusão com a expressão dizer trapos e farrapos?). Com o significado que lhe conheço, não a encontro. Já a expressão que diretamente lhe equivale em castelhano, lengua de estropajo, está dicionarizada como nome de dois géneros, com o significado esperado (traduzo eu): «Pessoa balbuciante, ou que fala e pronuncia mal, de maneira que mal se entende o que diz».

Sabemos que a língua, como organismo vivo que é, tem de estar em constante mudança – para se conservar viva, precisamente; mas custa-nos, em cada geração, ver desaparecer expressões que acarinhamos, às vezes por nos virem de pessoas que nos mereciam carinho. Neste caso concreto, esta associação dos trapos à dificuldade de expressão vem de longe: acabo de a encontrar numa famosa novela picaresca espanhola de 1528, Retrato de la Lozana Andaluza, de Francisco Delicado. Traduzo eu a passagem em questão (texto original completo aqui):

LOZANA – [...] E que mais? Dir-me-ás CELESTIAL sem gaguejar.
DOMÉSTICA.-  CE LES TI NAL.
LOZANA.-  Ai, pobre de ti, que tanto gaguejas! Diz ALCATARA.
DOMÉSTICA.-  AL CA GO TA RA.
LOZANA.-  Ai, desgraçada! Não é assim! E que fanhosa és! Tens uma língua de trapos! 



10/12/25

Entre as memórias e o sonho: vozes

É capaz de ser da idade, não sei: nos momentos de calma que antecedem o sono ou o dormitar, mas também se ouço música ou se me imobilizo em contemplação de alguma coisa, parece que ouço vozes na minha cabeça. Quer dizer, talvez não seja esta a melhor maneira de o dizer. Não creio que se trate propriamente de alucinações auditivas; não são vozes claras, é tudo mais vago, como num sonho. Não sei ao certo como soam as alucinações auditivas às pessoas que delas sofrem — e que terrível sofrimento! —, mas já vi e ouvi descrições dessas alucinações e não me parece que seja o que me acontece. 
[Uma coisa curiosa é a associação que parece haver entre subvocalizações e alucinações auditivas: «pessoas com esquizofrenia que apresentam alucinações auditivas podem demonstrar o resultado de uma hiperativação dos músculos da laringe», ou, dito de outra maneira, «as alucinações auditivas podem ser projeções dos pensamentos verbais de pacientes esquizofrênicos, subvocalizadas devido a uma deficiente inibição do córtex». Subvocalizações, deixem-me explicar, são movimentos minúsculos, só detetáveis com máquinas, que o nosso aparelho fonador faz quando lemos; e, muito provavelmente, também quando pensamos em frases completas, se preparamos interiormente o que vamos dizer a alguém, ou revemos mentalmente uma conversa, ou corrigimos na mente o que deveríamos ter dito e não dissemos, coisas assim — quando temos, enfim, frases de uma língua na mente, porque, é de crer, a língua é intrinsecamente sonora, mesmo quando não chega a transformar-se realmente em som...]
Albert Maignan: As vozes do rebate, 1888. 
Amiens, Musée de Picardie, daqui.
As vozes que me surgem na mente não dizem nada concreto, e muito menos dizem mal de mim, como nas alucinações auditivas das psicoses. São vozes de pessoas que conheço bem, com expressões e entoações típicas dessas pessoas, mas dizem só coisas vagas, às vezes porque as conversas parecem ir já a meio («e eu cheguei lá, ‘tás a ver?, não encontrei mala nenhuma») ou por faltarem referências na conversa («às vezes, encontro-a, conversamos ali um bocadinho e pronto, não passa disso») Se se queixam, não sei de quem se queixam («bem, também te digo, pá, aquele tipo, quem não o conhecer que o compre…» ou «eh pá, mas então aquela gente não se enxerga?»). 
[Fazem-me lembrar as conversas que ouvia ao jantar quando trabalhei num lar para pessoas com demência. Conseguiam conversar animadamente sem ninguém saber de que estavam a falar: uma pessoa podia começar, por exemplo, com um «de maneira que é assim» a propósito não se sabia de quê, ao que outra pessoa lhe respondia, «ah, pois é, mas isso já se sabe», e uma terceira pessoa comentava «é que não tenha dúvidas, amiga», para depois uma quarta pessoa concordar também, com algum dos anteriores ou todos eles, «olhe, nisso, dou-lhe toda a razão» e assim sucessivamente, e era uma conversa educada e sem conflitos.]
As vozes das minhas fantasias fazem-me lembrar outra voz que me surgia em criança quando tinha febre, também meio sonhada como elas, meio espetral. Naquele doce intermúndio de febre infantil pairava sobre mim a voz da minha mãe. Não era a voz real da minha mãe filtrada pela febre, mas sim uma voz da minha mãe inventada por essa febre. Não me lembro do que essa voz sonhada me dizia, mas recordo bem o seu efeito calmante, como a voz do hipnotizador que se ouve ao longe quando nos deixamos levar pelo sono que ela nos pede (já tentei deixar-me hipnotizar e, cético que sou, que se esperava?, não me aconteceu nada que não fosse quase adormecer...).
É capaz de ser da idade, tudo isto: perder-me assim, às vezes, entre as memórias e o sonho, como numa cantiga que há, numa parte de mim que até há pouco desconhecia. Custa-me não saber dizer isto melhor. Dito assim, quem me ler é capaz de não perceber muito bem do 


 

Vozes de alguma poesia

 

Um autor pode desejar contextos específicos para se entrar em contacto, ou simplesmente estar em contacto, com a sua poesia. Ninguém é obrigado a respeitá-los, claro está, e, na minha opinião, nada garante, aliás, que deles resulte uma versão de alguma forma mais essencial de uma determinada obra poética, porque não creio em tal essencialidade.

Uma questão interessante é a da voz da poesia. Se é certo que a poesia, em sentido lato, nasceu com voz — porque é, provavelmente, anterior à escrita —, também é certo que, ao cabo de tantos séculos de palavra escrita, ela deve ser já independente dessa voz. A chamada poesia gráfica ou poesia visual é uma expressão clara, se bem que não necessariamente a única, desta independência.

Saint-John%20Perse
Página de Vents, de Saint-John Perse.

«Após a revisão final, o texto é cuidadosamente paginado. 
A escolha deliberada do itálico, o uso do espaço em branco 
e os requisitos tipográficos fazem dele um objeto gráfico
imediatamente reconhecível. A qualidade visual do texto,
a aparência física do livro, mesmo para uma edição padrão,
é de tal importância para Saint-John Perse que ele
 assume sem hesitar o papel de paginador.”

Traduzo eu daqui. Foto daqui.     
Saint-John Perse, que foi prémio Nobel da Literatura em 1960, não gostava que os seus poemas fossem lidos em voz alta (traduzo eu daqui):
«Em princípio, sou contra qualquer recitação poética, que me parece, pelo menos em francês, limitar ou distorcer o alcance da escrita nas suas múltiplas vertentes, convergente e divergentes. [...] E, mais particularmente, no que me diz respeito, nunca consegui suportar a ideia de ler fosse o que fosse em voz alta, nem sequer para mim próprio, e ignoro completamente, como poeta, do som da minha própria voz. A poesia parece-me feita apenas para o ouvido interior.»
No extremo oposto de Saint-John Perse, Allen Ginsberg, por exemplo, dizia que não bastava que os seus poemas fossem bons nas páginas de um livro — tinham também «a dimensão sonora que Ezra Pound sublinhara». 

Não tenho, sobre isto, nenhuma posição definitiva. Parece-me que há poemas que ficam bem em voz alta e há outros que vivem bem do seu silêncio na página, mas não tenho para isso nenhuma justificação sólida… É só uma questão de gosto. E já que estamos em maré de gosto, o que muitas vezes me desagrada, devo confessar, é uma tradição que há de pompa e/ou dramática emotividade na declamação de poesia. 

***

É interessante ver como dizem os poetas os seus próprios poemas. Não que os digam melhor que os outros, ou que se deve seguir o seu estilo de declamação, mas talvez isso nos dê alguma pista sobre uma hipotética voz inicial dos poemas, se a há, quando a há.

Se Pound destacava a dimensão sonora da poesia, a sonoridade que gostava de dar aos seus poemas era sempre excessiva, teatral, e às vezes até algo alucinada, independentemente do tipo de poema que lia. De Ginsberg poder-se-ia esperar talvez uma declamação próxima do falar quotidiano, e às vezes aproxima-se de facto disso, mas não se afasta completamente de alguma teatralidade própria da tradição declamatória.

***

Uma declamação que sempre achei singular, eu que nada sei de declamação, é a de Alexandre O’Neill ao dizer os seus poemas. O’Neill dizia que, com a sua poesia, queria sobretudo desimportantizar ou aliviar: «aliviar os outros, e a mim primeiro, da importância que julgamos ter». Talvez a maneira de declamar a sua poesia reflita de alguma forma o seu projeto poético, desimportantizando a declamação, aliviando-a do peso e da imponência que ela muitas vezes gosta de conferir à poesia. 

Não sei. O que me parece certo é que, haja ou não desimportantização, a voz que dá aos poemas não se aproxima, como talvez se esperasse, do discurso oral quotidiano, mas martela antes algumas palavras, como que para sublinhar por que motivos — sons, ritmos, sentidos — as escolheu para o poema. Veja-se, por exemplo, como diz “Velhos de Lisboa”:

Mas o que eu pensava que era uma maneira única de dizer poesia é capaz, afinal, de não ser assim tão única: descobri recentemente que a declamação de Mário Cesariny, por exemplo, pode ser muito parecida com a de O’Neill. Eis como Cesariny diz o seu poema “Pastelaria”:

Algumas das muitas vozes, então, que os poemas podem ter...