Há muita gente que se indigna agora com a prática de revisão e atualização de textos, com a alteração de meia dúzia de palavras em meia dúzia de obras, porque os editores querem «modernizar» algumas obras ou adaptá-las ao que creem que o público-alvo considera aceitável. Tenho notado a falta, nesta discussão, de uma definição clara de que alterações a um texto são permissíveis, de quem tem o direito de as fazer, em que condições e para que fins. Talvez alguns achem que, na pequena digressão informal que se segue, se misturam coisas diferentes. Mas as questões primeiras são as mesmas em todos os casos: um produto artístico de autor identificado é alterado — é legítimo alterá-lo? Independentemente da resposta que tenhamos para cada uma destas questões, é sensato assentar que a questão é mais complexa do que nos querem fazer crer as exclamações simples de indignação.
Também tenho reparado que, ao exprimir a sua indignação com estas revisões, há quem alargue de forma surpreendente o conceito de censura. De facto, para que a alteração de algumas palavras num texto, a supressão de pedaços de texto ou a reescrita de um texto sejam de facto censura é preciso que o que é eliminado, de forma mais ou menos direta, ponha em causa quem tem o poder decisório sobre a sua publicação ou inclua informação que possa contribuir para pôr em causa esse poder — o que não é obviamente o caso dos casos que têm causado tanta indignação.
E por fim, surpreende-me que esta indignação surja agora, porque, ao contrário do que alguns parecem crer, trata-se de uma prática que já existia muito antes de Georgia Anne Muldrow compor e cantar «I stay woke!» em «Master teacher» de Eryka Badu em 2007. Provavelmente, sempre existiu, e ainda antes de haver livros impressos...
Mas isso eram outros tempos, dirão, e outras maneiras de conceber a autoria e o respeito de uma obra. Não vamos longe demais no tempo. E também não é preciso. Dou-vos só um exemplo famoso: Em 1808, Thomas Bowdler, primeiro em conjunto com a sua irmã Henrietta e depois sozinho, publicou uma versão «para a família» de várias peças de Shakespeare «em que nada é acrescentado ao original, mas se omitem palavras e expressões que não podem com propriedade ser lidas em voz alta numa família». Censura será, segundo alguns, mas a intenção de Bowdler não era com certeza fazer desaparecer as peças de Shakespeare, mas antes divulgá-las, duma forma aceitável para certas pessoas. E ganhar com isso algum dinheiro também?
E isto é muito importante, provavelmente o mais importante. A pretensa pressão das supostas elites woke interessa pouco às editoras, o que lhes interessa são os números de vendas, e, por isso, as criticadas alterações fazem-se em obras que se teme que, em versões mais antigas, deixem de se vender. Nalguns casos, é de muito dinheiro que se trata.
Tanto um autor como um editor têm sempre um leitor em mente, mas não é sempre o mesmo para os dois — nem para uma determinada obra, nem para as diferentes edições dessa obra. Quando se trata de edições sobre as quais o autor não tem controlo nenhum, porque já morreu, porque são em línguas e contextos distantes ou porque simplesmente as desconhece, são só o editor e/ou os detentores dos direitos do autor que decidem da edição. Decidem muitas vezes de formas que nos podem parecer muito estranhas e, insisto, não há nada de novo nisto.
Quando li pela primeira vez Sinuhe, o Egípcio, de Mika Waltari, numa edição inglesa, dei-me conta de que a edição portuguesa que eu conhecia (Bertrand, 1961, com tradução de Bruno da Ponte) era uma versão truncada — faltava um bocado do texto, simplesmente. Soube depois que era prática corrente, nessa época. As editoras encarregavam a editores de texto ou mesmo aos tradutores um determinado número de páginas, de maneira que havia que desbastar as obras para se manter dentro desse limite. Evidentemente, a palavra censura aplica-se aqui mal, já que não há nada específico que se queira cortar, mas o motivo do corte é sempre o mesmo: económico. E não é um desrespeito menor da obra original, pois não? Sobretudo, se não se mencionar claramente, como não se mencionava, que se tratava de uma versão «resumida» (que de facto também não era, pelo menos no sentido mais clássico da palavra).
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Benito Albi Bachini, ilustração para um edição
de Pinóquio de 1944. Wikimedia Commons, daqui.
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Já agora, a já muito antiga prática de resumir obras (sem autorização dos autores, ademais) é aceitável ou deve ser vista também como uma grave adulteração da obra? Só já muito adulto é que descobri que a cegonha do início do conto do patinho feio de H. C. Andersen «falava egípcio, porque tinha sido essa a língua que a sua mãe lhe tinha ensinado». Também descobri, por essa mesma altura, que se discute se os contos de H. C. Andersen são de facto para crianças, uma coisa que passa com certeza despercebida a quem, como eu em criança, nunca tenha lido senão versões para crianças, precisamente, que não seguem de muito perto — às vezes nem de longe — o texto original.
E não é só H. C. Andersen. Nunca li as versões mais antigas de outras narrativas infantis clássicas, como Peter Pan de J. M. Barrie ou Pinocchio de Carlo Collodi (em que Pinóquio é enforcado no fim), mas sei que há — e já há muito tempo — quem considere, nas suas versões originais, estas histórias são impróprios para crianças. E houve então de as mudar, de as limpar de crueldade várias. A ideia é a mesma de hoje, note-se: ajustá-los ao que se considera aceitável para o/pelo público alvo. Seja por razões ideológicas ou por razões económicas, abundam versões adaptadas dessas narrativas, sem nenhuma indicação de serem versões trabalhadas e reduzidas. Não me lembro de ter ouvido alguém protestar contra esse «desrespeito»… Sei também que as tão discutidas alterações às obras de Enid Blyton para as adaptar ao «espírito dos tempos» começaram já nos anos sessenta e setenta. O que há de novo no fenómeno é, pelos vistos, a indignação.
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Mudemos agora de objeto artístico. É parte mais original deste texto, porque, quando se discutem as alterações de textos literários, nunca vi discutirem-se canções — e não é, seguramente, porque os textos das canções não se vão alterando de edição para edição. Aliás, se compararmos as alterações que vão sendo feitas aos textos de canções com as que se fazem a contos ou romances, são com certeza muito mais. É, aliás, a alteração desses textos que resulta nas dezenas de versões que há de canções «populares» ou «tradicionais», que é como quem diz, de autor original tão desconhecido como os alteradores do seu texto. Talvez se tome isso como um efeito lateral da transmissão oral e, portanto, aceitável. Não sei. Mas sei que há também canções propositadamente alteradas para as livrar de conteúdo considerado indesejável — ou para reagir a esse conteúdo. E aqui, curiosamente, parece ser mesmo só isso e não a procura de lucro. Não conheço nenhum caso em que essas alterações resultem da iniciativa das editoras discográficas para continuar a vender canções que doutra forma as pessoas já não quereriam ouvir. Talvez os haja, não sei, simplesmente não os conheço. Aliás, na realidade, não conheço muitos casos de canções atualizadas para esse fim. Mas as que eu conheço são mesmo casos avant la lettre do que alguns hoje chamariam wokismo — e ainda bem que o são.
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Afro-americanos carregando um barco em Vicksburg, Mississippi.
Detroit Publishing Co., sem direitos de autor. Fotógrafo desconhecido, 1906, daqui.
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Um caso conhecido é o de “Ol’ Man River”, uma das canções da peça de teatro musical Show Boat (1927), com música de Jerome Kern e letra de Oscar Hammerstein II, baseada num romance de Edna Ferber. Uma interpretação famosa da canção, se não mesmo a mais famosa, é a de Paul Robeson, na adaptação cinematográfica do musical realizada por James Whale em 1936. Na versão do filme, a letra original de Oscar Hammerstein II de 1927 já tinha sido modificada (não sei se por Robeson): Em vez de «Niggers all work on de Mississippi / Niggers all work while de white folks play» da versão original, Paul Robeson canta «DARKIES all work on the Mississippi / DARKIES all work while the white folks play». Em versões posteriores da canção, porém, Robeson usa uma pronúncia mais standard e faz as seguintes alterações na letra: «Dere’s an ol’ man called de Mississippi, / Dat’s de ol’ man that I’d like to be...», passa a «There’s an ol’ man called the Mississippi, / That’s the ol’ man I DON’T LIKE to be...»; «Tote that barge! / Lift that bale! / Git a little drunk, / An’ you land in jail...» passa a «Tote that barge and lift that bale!/ YOU SHOW A LITTLE GRIT / And you lands in jail…», e, alteração mais famosa, a expressão de resignação em «Ah gits weary / An’ sick of tryin’; / Ah’m tired of livin’ / An skeered of dyin’, / But Ol’ Man River, / He jes’ keeps rollin’ along!» passa a apelo à ação: «BUT I KEEPS LAFFIN’/ INSTEAD OF CRYIN’ / I MUST KEEP FIGHTIN’ / UNTIL I’M DYIN’, / And Ol’ Man River, / He’ll just keep rollin’ along!». É aceitável, isto, ou é censura woke ao texto de Hammerstein? Tem um negro direito a modificar a imagem dos negros que o autor transmite na letra?
Só mais um exemplo. É difícil saber se foi mesmo Billy Roberts que compôs a famosa canção “Hey Joe” , mas foi ele que a registou como sendo da sua autoria em 1962. Para todos os efeitos práticos, é ele o autor. O site Second Hand Songs regista 440 versões gravadas da canção. A mais famosa é muito provavelmente a de Jimi Hendrix (1966). A letra da canção pode facilmente ser lida como extraordinariamente misógina, já que o acontecimento central do diálogo que a constitui, o assassinato de uma mulher por infidelidade ao protagonista, não é explicitamente condenado, nem nada na canção dá uma imagem claramente negativa do assassino, como se a infidelidade justificasse de facto o crime.
Quando a canção foi feita, não se reparava nestas coisas. Mas fui tentar descobrir como é que, com o passar do tempo, os muitos artistas que fizeram versões da canção lidaram com esta óbvia possibilidade de leitura. A primeira versão de “Hey Joe” por uma mulher é de Cher, logo em 1967 — e ela não muda nada à letra original. Em 2019, Carolyn Gaines faz uma versão inversa em termos de género (Joe é uma mulher), mas a letra mantém-se inalterada.
Mathilde Santing já tinha feito, em 1994, uma versão de voz feminina da canção, chamada “Hey Joan”. Santing, porém, altera consideravelmente a letra: se Joan leva com ela uma arma é porque já não aguenta a violência quotidiana do seu homem. O crime tem agora uma justificação: a legítima defesa (Yes I did, I shot him, he's been takin' it out on me long enough now / I put a hole in his heart so I can breathe and live to see another day). Ao contrário do Joe da canção original, Joan não vai fugir para o México nem para lado nenhum: ela vai ficar, porque agora é finalmente livre, porque se livrou enfim do seu pesadelo. Apologia da resistência armada à violência de género? A mim, parece-me mais um relato dramático do desespero das vítimas de violência. Pode-se fazer isto a uma canção, mudar-lhe a letra desta maneira?
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[Dois apartes sobre “Hey Joe”: Patti Smith tem também uma versão de “Hey Joe” (1974), que foi, aliás, o seu primeiro single. Smith transforma de tal a canção, colando-a à história de Patty Hearst, do seu rapto pelo Exército Simbiótico de Libertação e da adesão de Hearst ao grupo que a raptara, que não faz sentido analisá-la neste contexto de reescrita do original. Da mesma forma, não faz sentido falar aqui de outras adaptações que se afastam totalmente da temática original, como “Hey Brother”, de Billy Preston ou “Flower Punk”, de Frank Zappa.
Finalmente, uma ideia engraçada que me veio à cabeça: se a música de “Hey Joe” foi de facto copiada por Billy Roberts da canção “Baby Don't Go to Town”, de Niela Miller, sua namorada da altura (e ela diz que foi), não se pode então estabelecer uma relação direta entre as duas canções, ou melhor, entre o feminicida Joe da canção de Billy e a personagem feminina da canção de Niela, que diz que vai sair, para ir a um bar onde se vai fartar de beber cerveja, uísque e gin, que vai ficar a olhar para os rapazes que por ali param e vai conversar com eles toda a noite e lhes vai dizer que o homem dela a trata mal?]