31/07/25

Foisted fast food: uma coincidência


Da primeira vez que fui à Geórgia, tentei aprender o alfabeto georgiano (já aqui falei uma vez disso) e consegui mais ou menos. Pelo menos, foi o que eu pensei. Quando lá voltei cerca de ano e meio mais tarde, já tinha esquecido uma grande parte do que tinha aprendido da primeira vez... Aprender um alfabeto novo é difícil. 

Os georgianos têm, em geral, mais contacto com o nosso alfabeto que nós temos com o deles (por exemplo, as matrículas dos carros deles são com o nosso alfabeto). Além disso, muitos deles aprenderam o alfabeto cirílico russo, que é, apesar de tudo, relativamente parecido com o nosso. Mas isso não quer dizer que todos os georgianos conheçam bem o alfabeto latino. O que se vê escrito em inglês nesta montra em Kutaisi resulta provavelmente de uma interpretação errada de uma letra do nosso alfabeto: alguém pensou que a perna do a fosse um i. Isto seria já curioso se foist não quisesse dizer nada. Mas quis o acaso que, do engano, surgisse uma palavra inglesa: to foist something on someone significa «impingir/impôr alguma coisa a alguém, obrigar/convencer/aliciar alguém a/para consumir ou aceitar alguma coisa». A ideia de fast food não anda muito longe, pois não? Curiosamente, aliás, a frase que o dicionário Cambridge dá como exemplo de utilização do termo foist é She charged that junk food is being foisted on children by TV commercials, «Ela denunciou que as crianças estão a ser aliciadas ao consumo da chamada comida de plástico, através de anúncios na televisão.»




26/07/25

O que hoje mal dito está, amanhã regra será

Hoje de manhã, topei por acaso com um provérbio que não conhecia,

Aurora ruiva, ou vento ou chuva, também com a variante Manhã ruiva ou vento ou chuva.

E pensei assim: é claro que há provérbios com rima toante, como, por exemplo, outro provérbio que eu conheço, que diz o mesmo que este:

Céu vermelho de madrugada, marinheiro põe-te em guarda. 

Mas também pode ser que o provérbio seja uma tradução do castelhano, em que teria rima perfeita (B e V pronunciam-se da mesma forma em castelhano): 

Manãna rubia, viento o lluvia.

Ou então, hipótese mais improvável, o provérbio é tão antigo que, quando ele surgiu, ruiva e chuva ainda tinham a mesma forma no romance do que é hoje Portugal — porque muito provavelmente a tiveram…

E uma busca na internet revelou que existe de facto um provérbio espanhol que coincide com a minha hipótese, apenas com uma palavra diferente da minha tradução: 

Alba rubia, viento o lluvia. 

Fiquei muito satisfeito com a minha perspicácia, é claro, mas continuei sem resposta: o provérbio português tanto pode ser uma importação do castelhano como podem ter ambos uma origem romance comum…

Metáteses em português e castelhano

Os pensamentos são como as cerejas e isto levou-me à questão das metáteses em português e castelhano. Fiz há coisa de 25 anos uma lista bastante longa e, creio eu, bastante completa também, de diferenças sistemáticas entre o castelhano e o português[1]. Um dos tópicos dessas diferenças são as palavras que sofreram metáteses numa das línguas, mas não na outra.

Metátese, então. Peço desculpa pelo palavrão e eis a sua definição: chama-se assim à permuta de dois sons de uma palavra, como quando se diz *dentrífico em vez dentífrico[2]. Se a metátese for entre dois sons consecutivos, como em *dromir por dormir, chama-se uma interversão.

Este processo é tão frequente que existe em todas as línguas que conheço — e, ao que tenho visto, também nas línguas que não conheço. Agora, é interessante constatar que uma metátese que em determinada altura é considerada erro, como o são agora *dromir ou *dentrífico, pode mais tarde passar a ser a forma correta, como veremos adiante; e que, em duas línguas tão próximas como o português e o castelhano, não coincidem as metáteses tornadas norma, o que, nalguns (raros) casos, faz com que os falantes de uma das línguas achem divertida a palavra na outra língua. Por exemplo:

*Preguntar, em vez de perguntar, é erro em português[3]; mas em castelhano é ao contrário, preguntar é a forma considerada correta — e nem sei se alguém diz *perguntar em castelhano, nunca tal ouvi. Como a forma etimológica é percontāri,  foi em castelhano que vingou a troca de sons, o português segue o étimo sem permutações.


O mesmo em cocodrilo, que vem do grego krokodilos pelo latim crocodilu-: em português, não houve metátese, em espanhol, sim. E cocodrilo faz-nos sorrir.

Morcego é uma terceira palavra que em português evoluiu direitinha, se se pode dizer assim, ao passo que em castelhano sofreu trocas de sons internas. O desgraçado do morcego não tem nome próprio em várias línguas, é só um rato careca em francês (chauve-souris), um rato esvoaçante em dinamarquês (flagermus), um rato cego em português e galego (mur(is) caecu(s) deu morcego), e um rato ceguinho em castelhano: mur(is) caecŭlu(s) deu murciégalo, que já foi a palavra normal e está hoje caída em desuso, tendo sido substituída pela forma com metátese, murciélago. Ganhou o erro de antigamente, que por isso deixou de ser erro…

Quem achar estranho que uma pronúncia errada se tenha tornando forma correta, não deve ficar a rir-se do castelhano, já que o português tem muito mais formas destas que aquela língua. Eis, por ordem alfabética, uma lista que não se pretende de forma alguma exaustiva, de palavras portuguesas que incluem metátese na sua evolução, comparando com o castelhano quando possível:

Aipo, do latim apiu-, «devia» ser *ápio, como é em castelhano (apio);

A palavra caranguejo vem do castelhano cangrejo, que por sua vez vem do latim cancricŭlu-[4], e, ao entrar no português, sofreu uma metátese (dizem alguns que por influência de carango, mas não sei…) que a deixou como a conhecemos...

Disfarçar, que vem do castelhano antigo desfrazar, seria, sem a interversão, *disfraçar, igual ao castelhano atual disfrazar, mas nós trocámos os sons à palavra.

Freguês vem de filĭus eclesiae, «filho da igreja» e, se não tivesse vingado a forma «mal pronunciada, seria *fegrês (ainda se vê feegrês em galego-português), depois de uma longa evolução que, em castelhano, não sofreu metátese: diz-se feligrés.

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Gaivão, esq. e gavião, dir. Wikimedia Commons, daqui e daqui.
Caso curioso é o de gaivota, que devia ser *gaviota, como é em castelhano, porque vem do latim gavia-, mas nós trocamos-lhe os sons, como trocámos também ao gaivão, aliás, mas não ao gavião. Evidentemente, a metátese permitiu-nos, neste caso, distinguir dois animais muitos diferentes a partir de um mesmo termo romance... 

O geolho antigo, derivado diretamente do latim genuculu-, transformou-se, por metátese, em joelho e a forma deformada[5] pegou. O castelhano hinojo, que corresponde diretamente a geolho (por estranho que isso possa parecer a quem não conheça a história do castelhano), evoluiu sem trocas do lugar dos sons dentro da palavra.

Também jogral devia, pela lógica etimológica, ser *joglar como em castelhano, já que vem do francês antigo jouglere, mas em português veio a metátese trocar-lhe os sons.

Por fim, não fossem as interversões, raiva e ruivo também seriam *rávia e *rúvio, como são em castelhano, porque é isso que decorre naturalmente dos étimos latinos rabia- e rubeu-. Mas não, trocámos-lhe a ordem dos sons.

E depois, há casos de metáteses comuns aos dois idiomas, como a palavra palavra[5] (palabra em castelhano), que vem de parabola- e seria pois, sem a troca de sons, *parabla ou *paraula ou algo assim, com um /r/ na sílaba central e um /l/ na última sílaba. O português (não o castelhano) tem outra palavra da mesma família, palrar (do latim parolare) também com /r/ e /l/ trocados relativamente ao étimo.

Quanto a formas de origem discutida, temos noiva, que é novia em castelhano, e carapaça, que é caparazón em castelhano — mas não me atrevo nestes casos a dizer onde houve metátese…

Conclusão: não acredito muito que *auga*metereologia*protanto tenham grandes possibilidades de algum dia vir a ser as formais normais em português, mas é bom lembrar-se que não são solecismos maiores do que já o foram disfarce ou joelho.

O meu pecado pessoal é o metoprolol. É um termo que uso na minha vida profissional e engano-me sempre a pronunciá-lo: a reboque de metrópole, acho eu, digo *metropolol. Os sons /l/ e /r/ parecem ser muitos suscetíveis de troca, e mais ainda se alguma parte da palavra nos remete para outra palavra com a sequência de sons trocada. Às vezes, é curioso é a abundância de uma determinada sequência de sons que provoca a metátese: acho que ninguém diz trigue por tigre a não ser na proximidade de outros tri-: três tristes trigues, não é verdade?

Reptile003dCrocodilo tornou-se cocodrilo em castelhano, mas não *corcodilo nem *cocordilo. Porquê? Deve haver algo nesta sequência concreta de sons, neste contexto fonético específico e/ou na estrutura fonética do castelhano em geral, que a torne de alguma forma preferível, ou «mais natural», ao ouvido dos falantes. Mas o quê?

Não tenho a certeza de ter ouvido alguma metátese de crocodilo em português. Talvez *corcodilo, que me parece a mais «natural» na nossa língua...



P. S.: Já agora, de bónus: metáteses em francês e inglês

O francês também tem algumas palavras cuja forma atual resulta de metáteses. Eis algumas delas:

Brebis, «ovelha», já foi berbis, o que é natural, dado que vem do latim berbex; mas depois o /r/ e o /e/ trocaram de lugar.

A forma atual espadrille, «alpercata de sola de corda», é uma metátese de espardille, que vem do occitano espardilhos, de espart, «esparto», porque se trata, precisamente, de sapatos com sola de esparto.

Farouche, «bravo, arisco», vem do latim forasticus, que deu primeiro fourache. Este termo sofreu depois uma surpreendente metátese: o /a/ e /u/, em sílabas diferentes, trocaram de lugar.

Fromage, «queijo», devia ser – e já foi – formage, porque vem de formaticu- (o queijo é feito em formas).

Gourmet, «gastrónomo, apreciador de boa comida», vem de gromet, termo antigo para designar o criado responsável pelo vinho, e a interversão de /r/ e da vogal contígua deve ter sido influenciada pela palavra gourmand, guloso, que também tem a ver com comes e bebes, mas não tem relação etimológica nenhuma com gromet.

Moelle, «tutano», vem duma metátese de meolle, que vem, por sua vez, do latim medulla- (parente muito chegada, portanto, do português miolo, que tem a mesma origem).

Moustique, «mosquito», vem do espanhol mosquito, mas com troca de lugar dos sons /k/ e /t/.

Tirando isso, são apontadas como metáteses correntes *aréoport por aéroport*astériks por astérisque (e que seria da escola franco-belga de banda desenhada sem esta interversão?); *génicologue por gynécologue, talvez com influência de génital e afins; *infractus por infarctus, talvez por influência de fracture; e *rénumeré por rémunéré, provavelmente por influência de numéro — entre muitas outras…


Em inglês, há também umas quantas palavras atuais que resultam de trocas de sons passados, que, de erro, passaram a norma. Por exemplo:

Bird vem do antigo bridd, de origem desconhecida, que significava um passarinho jovem.

Nostril, «narina, vem do inglês antigo nosþyrl ou nosðirl, composto de nos(u), «nariz», e þyrel «buraco», mas o /r/ e o /i/ trocaram depois de lugar.

Third, «terceiro», também tinha o /r/ e o /i/ em posições invertidas, que são as etimológicas e correspondem às das outras línguas próximas: dizia-se thrid e a transformação em third atesta-se desde o fim do séc. X. As duas formas coexistem até ao séc. XVI, mas a forma trocada acaba por vencer. Verifica-se o mesmo fenómeno em thirty, «trinta»: atesta-se, desde o fim do séc XIV, a transformação do thriti original em thirti.

Wasp, «vespa», era wæps em inglês antigo, mas depois os sons /p/ e /s/ trocaram de lugar, talvez por influência do latim vespa.

E fico por aqui, que já vai longo o post scriptum...

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[1] É um trabalho útil para quem aprenda uma das línguas, mas o formato de blogue presta-se mal à sua publicação, de maneira que nunca aqui o pus. Se alguém quiser esta lista, pode contactar-me e enviar-lha-ei por e-mail.   

[2] Assinalo com um asterisco grande e vermelho as formas produzidas por falantes nativos, mas consideradas incorretas pela norma culta. Os asteriscos negros e pequenos indicam formas que nunca vi nem ouvi.

[3] *Preguntar é considerado erro na escrita e no português falado no Brasil. Em Portugal, a diferença entre perguntar e *preguntar não se ouve em português moderno falado a velocidade normal, porque o /e/ desparece, venha antes ou depois do /r/.

[4] Se viesse diretamente do latim, a forma portuguesa seria em princípio *cancrelho ou *cangrelho.

[5] É mesmo para ser assim: «forma deformada», «palavra palavra», não é deslize, é estilo brincalhão, se bem que, como vocês com toda a razão pensam, de gosto bastante duvidoso...

19/07/25

Aqueles que por obras valerosas

 

Já uma vez aqui falei do assunto. Disse que criadores e obras são coisas diferentes e que, se as obras ficam, as pessoas reais que as criaram são tão facilmente esquecidas como quem nunca fez nenhuma obra memorável. 

Faltou-me sublinhar que, para que recordem as obras que cá deixamos, tanto faz que essas obras sejam boas ou más. Algumas das obras mais recordadas são as mais terríveis — e ainda bem que assim é, que o mal nunca se deve esquecer, para melhor contra ele nos precavermos.

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O resto, que merece também ser sublinhado, digo-o em redondilha maior:

Todos sabem que, ao morrer,
só como recordação
poderão sobreviver.
Mas que o recordem ou não,
quando já cá não andar,
p’lo bem que fez, ou o mal,
a um vivo pode importar,
— para um morto, é tudo igual.

Percy Spencer nasceu a 19 de julho de 1894, faz hoje 131 anos e inventou o forno de micro-ondas em 1945. A patente, uma das 150 registadas por Spencer, foi feita em nome da empresa onde trabalhava, de maneira que nunca ganhou com ela nada além do seu salário. Uma obra de valor, sem dúvida, usada por muita gente no seu dia a dia, mas quem se lembra de Percy Spencer? Imagem: O primeiro forno de micro-ondas produzido comercialmente, lançado em 1947.
Foto de
 Acroterion, Creative Commons, daqui.

18/07/25

Dizer localizações: atrás e à frente, a levante e a poente

Dois pequenos apontamentos sem relação entre si, a não ser que tratam ambos de palavras que dizem a localização no espaço. 

I

Em defesa da ideia de que a língua condiciona ou modela o pensamento, tenho visto várias vezes referido o exemplo das línguas de várias comunidades australianas em que se usam referências absolutas (pontos cardeais)[1] para descrever a localização, em vez de referências relativas como atrás, à frente, à esquerda e à direita, por exemplo; e sublinhar que as pessoas que usam estas línguas têm, em geral, uma maior capacidade de orientação que, por exemplo, os europeus, que usam sistemas relativos de descrição da localização. Mas…

Parece que, afinal, nas comunidades australianas, a localização espacial é muito mais complexa do que a descrevem os estudos em que se baseiam estas ideias, incluindo também sistemas de referência baseados na paisagem (a montante, a jusante) e também sistemas relativos de referência[2].

Não é isso, contudo, o que mais me importa: não há nada noutras línguas que impeça os seus falantes de usar sistemas absolutos de localização. Por exemplo, «A Maria está em sentada a oeste da Rita» é uma frase possível e bem construída em português. Portanto, a questão não é linguística, é cultural. Qualquer falante de qualquer língua, se for habituado desde pequeno a referir toda a localização ao percurso aparente do sol e se viver num ambiente físico que permita essa localização, também será capaz de o fazer, claro está. E parece-me natural que quem aprendeu a orientar-se a partir de pontos de referência absolutos tenha, em princípio, maior capacidade de orientação em geral. Não vejo bem como isto justifica que a língua determine o pensamento…

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[1] Assentemos que, sem uma bússola, a orientação natural pelos pontos cardeais se faz pelo percurso aparente do sol, pelo que não é de facto absoluta, variando com a latitude e a época do ano, mas é, sem dúvida, muito mais absoluta que a pura relatividade de atrás, à frente, à direita e à esquerda.

[2]Ver Bill Palmer, Dorothea Hoffmann, Joe Blythe, Alice Gaby, Bill Pascoe, Maïa Ponsonnet, “Frames of spatial reference in five Australian languages”, 2023

II

Observa-se, nalgumas variantes do português, a construção à minha trás (à tua/sua…., etc.): «O Tio Josseldo vem a correr à minha trás». Considera-se normalmente que é uma expressão construída por analogia com à minha frente, mas mal formada, porque trás não é um nome e frente é, não havendo, portanto, um paralelo entre as duas frases[1].

De facto, os dicionários apresentam trás apenas como preposição[2] (ver aqui ou aqui, por exemplo). Aliás, as pessoas da minha idade que, como eu, ainda se lembram da lista de preposições que aprenderam a recitar de cor na escola primária, encontram trás no fim da lista. A palavra tem origem numa preposição latina, trans, e é sensato pensar que não mudou de categoria nos últimos dois milénios. Mas trás porta-se sempre como uma preposição[3]?

A mim, surpreende-me que trás, numa frase como «Um palíndromo é uma frase se lê tanto de trás para a frente como da frente para trás» seja uma preposição. Três preposições seguidas? Uma preposição em final de frase? É possível? Verificam-se outros casos? Não creio. Da mesma forma, quando se diz, por exemplo, «O edifício tem uma escada de socorro na parte de trás», como explicar uma frase terminada com duas preposições — que só encontram paralelo em construções com preposição mais nome? Que se considere de trás uma locução prepositiva não resolve o problema, porque as locuções prepositivas são constituídas por elementos morfologicamente identificáveis: cima é sempre um nome, mesmo quando entra na locução por cima de, etc.[4] 

Não seria antes de considerar que trás pode ser uma preposição e um nome? Pode objetar-se a esta proposta que o hipotético nome trás não parece ter verdadeira existência autónoma, ao contrário do nome que mais diretamente parece corresponder-lhe, frente. «A frente da casa estava voltada a norte», mas não *«A trás da casa estava virada a norte», que não existe. No entanto, nomes como cima ou baixo também não têm, em português moderno, existência autónoma com o significado de «parte superior» ou «parte inferior», que é aquele com que são usados em locuções prepositivas: não se diz que o «O sopé da serra tinha uma vegetação luxuriante, que contrastava com a nudez da *cima», nem que «A aldeia ficava no *baixo da colina»…

Mas, enfim, isto é a gente a falar, como se costuma dizer…

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[1] Note-se que em galego, a nossa língua irmã, são relativamente comuns e aceites, também em registos formais, construções com tras seguido de possessivo: «Mais eu non vou tras túa coma un tigre de monte nin un león» (de uma tradução de Horácio por Aquilino Iglesia Alvariño). Não é claro, porém, que haja nominalização, até porque se verificam também construções como xunta miña para dizer «junto a mim». Não me atrevo a discutir este fenómeno numa língua que não conheço. Em português, também se verificam algumas anomalias deste tipo, como «Tiveste saudades minhas?» por «Tiveste saudades de mim», diferente de «Dá-lhe saudades minhas», que não corresponde a *«Dá-lhe saudades de mim», uma frase impossível. De notar também que trás tem, em galego como em castelhano, o significado de «após, depois de», que não tem em português.

[2] Há também outro trás, onomatopaico, que imita ruído de de queda ou pancada, e que os dicionários classificam como interjeição (?), mas esse é outra palavra...

[3] É mais fácil fazer listas de preposições que definir inequivocamente o que é uma preposição, a partir de propriedades observáveis. A definição clássica de palavra invariável que estabelece uma relação entre dois termos de uma oração é demasiado vaga, mesmo que se acrescente (Cunha e Cintra) que esta relação é tal que a primeira palavra (antecedente) é explicada ou completada pela segunda (consequente), o que não se aplica em muitos casos. À lista clássica (a, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, perante, por, sem, sob, sobre e trás), Cunha e Cintra acrescentam afora, conforme, consoante, durante, exceto, fora, mediante, menos, não obstante, salvo, segundo, tirante e visto, a que chamam preposições acidentais. A designação resulta, creio, de se conhecerem usos não preposicionais destes termos, mas todas as preposições são, na origem, derivadas de formas não preposicionais, na maioria formais verbais — como no caso das preposições acidentais consoante, durante, mediante, não obstante, salvo, tirante e visto. A esta lista há que acrescentar pelo menos dado (e talvez pese, que é um caso complicado.., pelo menos introduzindo um infinitivo, já que  dado – tal como visto, aliás – ainda aparece muitas vezes flexionado no seu sentido causal e função prepositiva. É também interessante notar que, nas preposições tradicionais, ante, perante e  trás são diferentes das outras, já que, ao contrário delas, não podem reger uma frase infinitiva. É de notar também que algumas das preposições acidentais têm as mesmas propriedades que as preposições tradicionais e outras não. Conforme e consoante, por exemplo, regem uma forma verbal finita sem ter de se lhes acrescentar que.

[3] Uma lista de locuções prepositivas, provavelmente incompleta: abaixo de; acerca de; acima de; a despeito de; adiante de; à direita de; à esquerda de; a fim de; além de; antes de; ao lado de; ao redor de; a par de; apesar de; a respeito de; atrás de; através de; de acordo com; debaixo de; de cima de; defronte de; dentro de; depois de; detrás de; diante de; em baixo de; em frente a; em frente de; em lugar de; em vez de; graças a; junto a; junto de; para baixo de; para cima de; para com; perto de; por baixo de; por causa de; por cima de; por detrás de; por diante de; por entre; para trás de; por trás de. Se deixarmos de lado as convenções ortográficas (note-se, por exemplo, que apesar de, em castelhano, se escreve a pesar de, que é o que de facto é), os elementos a negrito são nomes.


16/07/25

Direita e esquerda

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Ainda não uso aparelhos auditivos, mas lido diariamente com pessoas que os usam. E nunca deixo de achar estranho o código de cores que para eles escolheram: vermelho do lado direito e azul do lado esquerdo. 

Evidentemente, uma convenção é só uma convenção e não há, em princípio, cores que sejam melhores que outras para marcar a direita e a esquerda. Mas então, por que razão acho eu estranha a convenção dos aparelhos auditivos? 

Uma razão poderia ser a conotação política das cores: em princípio (os EUA são a única exceção que conheço), associa-se o azul à direita política e o vermelho à esquerda*. Mas não creio que seja por isso. Acho que o que me faz achar estranha a convenção dos aparelhos auditivos é outra convenção na área da saúde: a de representar, em esquemas simplificados, o sangue arterial a vermelho, do lado esquerdo do corpo, e o sangue venoso a azul, do lado direito do corpo.


Imagem: pág. 168 de Hatfield, Marcus, The physiology and hygiene of the house in which we live, Nova Iorque: Chautauqua Press, 1887, daqui, modificada por mim.


***

Esquerda e direita definem posições relativas, toda a gente sabe: se tenho alguém à minha frente, sei que tenho à minha direita o seu braço esquerdo e à minha esquerda o seu braço direito. E assim sucessivamente.
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Numa imagem, tomamos normalmente como referência quem a vê e não o que nela se vê («Da esquerda para a direita: Groucho, Chico, Harpo e Grummo»), mas compreendemos, naturalmente, que aquilo que se vê na imagem tem a sua direita e esquerda: Chico tem Groucho à sua direita e Harpo à sua esquerda. 

Quando se trata de letras, porém — e, muito provavelmente, de muitas outras coisas inanimadas em que não pensei —, compreendemos tão inflexivelmente o «da esquerda para a direita», que não aceitamos que elas próprias tenham a sua esquerda e direita, que um d minúsculo tenha o traço longo do seu lado esquerdo e o p minúsculo o traço longo do seu lado direito. 

Qualquer objeto orientado da minha esquerda para a minha direita terá a sua imagem no espelho orientada também da minha esquerda para a minha direita. Quando vemos uma imagem de uma palavra num espelho, ela continua a estar da nossa esquerda para a nossa direita – mas nós pensamos que está «ao contrário»: o d tem agora o seu traço longo do seu e nosso lado esquerdo. Mas isso é só porque virámos a palavra ao contrário para a refletir no espelho. Quando vemos uma palavra «ao contrário» no espelho, ela está também ao contrário, relativamente a nós, do que está quando a lemos: tem a «cara» virada para o espelho, como nós, em vez de ter a «cara» voltada para nós. Se a palavra estiver escrita numa superfície transparente, de maneira que possa ser refletida no espelho sem estar «virada para ele», a imagem que vemos no espelho é igual à que vemos diante de nós, não é «ao contrário». 

Imagem: «Quatro Irmãos Marx». Autor desconhecido, publicado no The New Orleans Times-Democrat, 11.5.1913, daqui.

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* Sobre direita e esquerda na política, escrevi fez por estes dias 17 anos um pequeno artigo de cerca de 4.350 palavras.

12/07/25

Um livro sem autor à vista [Crónicas de Svendborg #52]

 

Todos os anos temos aqui na aldeia uma grande feira da ladra: a maior parte dos habitantes de Troense faz bancas à porta de casa ou no quintal e tenta desfazer-se, às vezes por preços simbólicos, dos demasiados haveres que tem. E conversamos com os vizinhos com que raramente ou nunca temos ocasião de conversar nos outros dias todos do ano, e acabamos por comprar mais alguma coisa que não nos serve para nada e que, quem sabe?, poremos à venda passados uns anos na feira da ladra anual…

Este ano, só comprei um livro, por uma coroa (uns 13 cêntimos de euro). Chama-se Christiansø 1953. E comprei-o porque lhe notei um pormenor curioso: não tem em lugar nenhum a indicação do autor. Ou antes sim, tem uma dedicatória numa das guardas e, pelo que explico adiante, é muitíssimo provável seja do próprio autor. E ficamos a saber que se chama Christian, que é quase o mesmo que não sabermos nada. Pensei que talvez a identidade do escritor se pudesse descobrir à leitura da obra. Mas não. Apesar de incluir dois textos autobiográficos, as muitas referências a pessoas e lugares não dão pistas suficientes para pesquisar — e muito menos para deduzir — quem o escreveu.

Numa pesquisa na Internet, encontrei um livro semelhante com o título Christiansø 1952, apresentado como «jornal privado». Isto confirma o que depreendera já à leitura do livro: alguém editou anualmente (durante quantos anos?) um pequeno livro de crónicas e memórias, presume-se que para oferecer a amigos e conhecidos. Está escrito com letra de máquina e uma análise dos caracteres mostra que é mesmo um texto escrito à máquina que foi fotografado e impresso. O papel é de boa qualidade, com uma capa de cartão. Quem escrevia como o autor escrevia e mandava imprimir um livrinho assim só para distribuir aos amigos fazia, com certeza, parte da elite cultural e económica da ilha, mas também isso não me ajuda a encontrar a sua identidade.

Quando começou a trabalhar no Alto Molócuè (Alta Zambézia, Moçambique) em 1996, a minha mulher montou um circuito privado de informação: escrevia uma carta com as suas impressões e reflexões sobre a sua nova vida em África destinada a um grupo de amigos e familiares, enviava-a a uma amiga na Dinamarca (quando ia a Queliamane ou a Nampula, porque o Alto Molócuè não tinha serviço de correio) e esta amiga fotocopiava a carta e mandava-a a todas as pessoas de uma lista que a minha mulher tinha feito antes de partir. Quando eu fui ter com ela seis meses mais tarde, comecei a fazer o mesmo: ia escrevendo umas crónicas sobre a vida em Moçambique, intercaladas com algumas atualidades políticas e mais alguma coisa que ia aprendendo sobre a história e a cultura do país, mandava-as para Portugal, onde eram reenviadas por várias pessoas para várias outras pessoas. Chamavam-se as minhas cartas Crónicas do Alto Molócuè. Quando fomos viver para a Bolívia, passaram a Crónicas de Camargo, já por correio eletrónico, e transformaram-se depois em Crónicas de Chimoio quando voltámos a Moçambique em 2006. (As Crónicas de Svendborg nunca chegaram a ser nenhuma forma de carta coletiva, são só uma etiqueta deste blogue.) 

Estas circulares privadas, se se pode dizer assim, não eram invenção da minha mulher. Embora não conhecesse em Portugal ninguém que fizesse o mesmo, pelo menos entre dinamarqueses assessores de desenvolvimento em África, o sistema de cartas coletivas começava a ser comum. Talvez também noutros círculos, não sei. E depois, com o surgimento do e-mail, simplificou-se e alargou-se muito. Agora há já muitos anos que recebemos, sobretudo pelo fim do ano, muitos e-mails coletivos de muitas pessoas, a contar os acontecimentos mais importantes do ano que passou.

O livro que Christian X mandou fazer em Christiansø é uma versão precoce e mais sofisticada, por ter forma de livro, de tudo isto.  E isso é estranho.

Uma coisa muito curiosa: o livro inclui também uma diatribe contra o turismo (já em 1953!) e, no fim dessa diatribe, informa que inclui um recorte de um artigo de jornal mais ou menos sobre esse tema, escrito pelo médico da ilha, Tage Voss (ao que sei a única pessoa de Christiansø que se notabilizou como escritor e polemista). E tem mesmo: no livro que comprei há um recorte do jornal Politiken de 22.3.1953, com a crónica de Voss. Não uma reprodução, mas um recorte da página do jornal. Quer dizer: não faço ideia de qual a tiragem do «jornal privado», mas o autor teve de comprar muitos exemplares do jornal Politiken desse dia, para recortar e pôr dentro de cada livro que ofereceu.

Não tem interesse nenhum dar-vos mais pormenores. Os poucos que dei são, aliás, pormenores a mais — que vos pode interessar um livro que nunca lerão, ainda mais sem autor à vista? Enfim... 

Não sei se se passa o mesmo convosco, mas tudo o que é estranho, por desimportante que seja, faz-me sempre sonhar.

10/07/25

Histórias de ópera, borracha e Amazonas, umas mais fantásticas que outras

 

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As histórias deste texto passam-se nos locais marcados a vermelho.
Aviso: o texto tem spoilers: há resumos (a roxo) de um filme, uma novela, uma BD e uma ópera.

Em 1881, o deputado provincial Antônio José Fernandes Júnior apresentou à Assembleia Provincial da Amazónia (atualmente Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas) um projeto da sua autoria: a construção do Teatro Amazonas em Manaus, um dos grandes portos fluviais do rio que o teatro celebrava e uma das cidades que floresceu durante o chamado ciclo da borracha. O projeto foi imediatamente aprovado e não tardou a ser licitado. Só em 1884, porém, se iniciou a construção do teatro. A obra foi a princípio lenta, acelerou um pouco na entrada na década de 90, chegou a estar interrompida e só a 31 de dezembro de 1896 se inaugurou finalmente o teatro: lustres de Murano, mármore de Carrara, uma cúpula de cerâmica esmaltada e telha vidrada alsaciana. «Paris dos Trópicos», o furor ostentatório dos barões da borracha. Um trio interessante: ópera, borracha e o rio Amazonas.

***

Fitzcarraldo, de Werner Herzog, é um filme sobre ópera, borracha e Amazonas. Começa, aliás, com uma atuação de Caruso em Manaus, onde Caruso nunca atuou, mas isso não interessa.

Em 1982, quando saiu, eu vivia em Genebra. Conhecia alguns exilados políticos sul-americanos que apelavam ao boicote do filme. Segundo eles, era inaceitável a maneira como Herzog tinha tratado as centenas de indígenas que contratara para o filme. Não sei se estas críticas eram bem fundadas, nem se o filme chegou a ser propriamente boicotado, mas lembro-me de ter havido muita polémica relativamente a ele. Se a memória me não falha, a revista francesa Actuel publicou, na altura, uma reportagem sobre a história da filmagem de Fitzcarraldo, em que se fazia uma equivalência entre a obsessão doentia da personagem central do filme de transportar um barco através da floresta amazónica e a obsessão doentia de Werner Herzog de fazer o filme, custasse o que custasse. Equiparar a história da feitura do filme à história que ele conta é hoje comum, ao que vejo por aí escrito na Internet. Olivier Bitoun diz, por exemplo, num excelente texto sobre o filme:

«O filme e a história da sua filmagem são uma e a mesma coisa: o sonho de Fitzcarraldo e o de Herzog estão completamente interligados, e ambos lutarão para levar a bom termo um empreendimento considerado delirante e insensato. O filme Fitzcarraldo não teria sido o mesmo se as filmagens não tivessem sido como foram. Herzog e a sua equipa tiveram de viver eles próprios a aventura de Fitzcarraldo para a contar; o sonho teve de se confrontar com a realidade para se materializar.»

Eis um resumo muito resumido do enredo do filme:

Brian Sweeney Fitzgerald, conhecido como Fitzcarraldo, é um irlandês que vive em Iquitos, no Peru, na época da «febre da borracha» e sonha construir uma ópera na selva e aí apresentar o seu ídolo Caruso. Os seus negócios têm-lhe corrido mal e está falido. Tem de arranjar um negócio que lhe permita arranjar o dinheiro de que precisa para o teatro. Compra então, por tuta e meia, uma concessão considerada inexplorável, porque se encontra num lugar tão inacessível que é impossível de lá transportar a borracha. Fitzcarraldo tem então uma ideia: se conseguir transportar um barco de um rio navegável da rota da borracha até um afluente que passa na concessão, poderá escoar o produto e ganhar muito dinheiro. Só que, para isso, há que transportar o barco por terra, através de uma zona montanhosa da selva. Fitzcarraldo compra um barco barato a precisar de conserto, repara-o e lança-se na aventura.

O filme e as suas personagens são inspirados em acontecimentos e pessoas reais. Houve de facto um Carlos Fitzcarrald na época da borracha, que descobriu, muito mais a sul, um istmo de pouco mais de uma dezena de quilómetros, que permitia ligar, através de vários afluentes, o rio Ucayali e o rio Beni, ambos tributários do Amazonas, e reduzir muito o preço do transporte de borracha do ocidente peruano. E é certo que, quando descobriu esse caminho, Carlos Fitzcarrald organizou o transporte de um barco através do istmo — mas desmontado.

A filmagem de Fitzcarraldo foi demorada e muito difícil. Foi feita inteiramente na selva amazónica e em condições para que técnicos e atores não estavam preparados. Foram também contratados para as filmagens muitos indígenas peruanos. Para referir alguns dos incidentes e contratempos mais conhecidos: foram postos a circular vários boatos sobre Herzog e a sua equipa, segundo os quais eles queriam eliminar as comunidades locais e o primeiro local de filmagem foi abandonado e queimado no dia seguinte por indígenas locais; a infeção de uma ferida na coluna cervical quase deixou Herzog paraplégico; o diretor de fotografia, para salvar uma máquina, fez um rasgão entre dois dedos até ao pulso e teve de ser operado durante duas horas, em plena selva e sem anestesia, porque as anestesias tinham sido levadas pela equipa médica para tratar dois (ou três, segundo algumas fontes) indígenas trabalhadores do filme que tinham sido atingidos com flechas, num ataque de uma tribo rival; um dos lenhadores que trabalhavam no filme, mordido por uma serpente venenosa, teve de serrar o seu próprio pé com a serra elétrica, para impedir que o veneno se espalhasse… Houve mortes, acidentes, conflitos com atores e trabalhadores indígenas. Mas o filme tinha de continuar, o barco tinha de ser transportado até ao outro lado da montanha, Caruso tinha de cantar na mata amazónica.

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Muito longe de Manaus e de Iquitos, Belém do Pará é outro centro fundamental do ciclo da borracha. Circula agora há mais de um ano, nas redes sociais e na internet em geral, uma história perfeitamente ficcional, mas apresentada como verdadeira, sobre uma cantora de ópera: Camille Monfort, a vampira de Belém. Pesquisando um pouco esta lenda urbana, que é como agora se chama muitas vezes também às patranhas internéticas, conclui-se que Camille Monfort é, afinal, personagem de uma novela fantástica, Após a Chuva da Tarde, de um autor brasileiro, Bosco Chancen (ou Bosco Silva), que assume (ver primeiro comentário aqui) ter divulgado a história no Facebook para publicitar o livro, mas insiste em que o livro «é todo baseado em fatos históricos, pois toda lenda tem sempre um quê de verdade» e «aborda um período importante da Amazônia, 1896, período da venda da borracha, em que capitais como Belém enriquecia [sic], com milhares de estrangeiros vindos para cá, muitos traziam novas crenças europeias ligadas ao ocultismo inglês e francês da época».

A personagem-de-novela-tornada-personagem-histórica-na-Internet é uma cantora de ópera francesa de finais do séc. XIX, de voz e figura deslumbrantes, que vive em Belém e atua no Theatro da Paz — um predecessor, se se pode dizer assim, do Teatro Amazonas em Manaus. A sua extraordinária beleza e um comportamento também algo invulgar granjeiam-lhe paixões doentias dos homens da elite local e a fama de ser sobrenatural: diz-se que, no seu camarim, bebe o sangue de jovens que seduz com a sua voz maravilhosa; que tem o poder de invocar o espírito dos mortos, que saem dela na forma de ectoplasma; que dança seminua sob a chuva tropical e dá longos passeios noturnos ao longo do Rio Guajará em direção ao igarapé das almas, onde aparecem espíritos dos mortos. Camille Monfort morre com a epidemia de cólera de 1896, mas gera-se a lenda de que o seu túmulo no Cemitério da Soledade está de facto vazio e ela continua viva algures na Europa, jovem como sempre foi e será.

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A foto de uma cantora de ópera que nunca existiu,
por fotógrafo desconhecido. Que tem ela na mão? 
A Inteligência Artificial  com que Google nos persegue agora em todas as pesquisas refere Camille Monfort como pessoa histórica e há referências a ela em comentários de visitantes do Cemitério da Soledade ou do Theatro da Paz em Belém. Creio que já nem com estacas no coração, nem balas de prata, se pode acabar com esta vampira. «Personagem histórica» é hoje uma expressão com um significado ainda menos histórico do que às vezes tinha antigamente. E criações desconhecidas de criadores desconhecidos transformam-se em histórias muito mais conhecidas do que os seus criadores alguma vez virão a ser…Não é que fique, com tanta propaganda à figura, com vontade de ler a novela. Gosto muito de literatura fantástica, mas, seguramente por preconceito, não me parece que seja este o meu género de literatura fantástica... A divulgação da «lenda» levanta, no entanto, uma questão interessante: porque ganhou esta história, em tão pouco tempo (foi publicada há cerca de dois anos, mas era já viral o ano passado), as dimensões que tem atualmente?

Deve haver vários fatores a contribuir para o seu sucesso e um dos mais importantes é muito provavelmente a fotografia que a acompanha desde que começou a circular na Internet: uma foto sépia de uma bonita jovem que empunha algo que muitos identificam como um telemóvel e que outros dizem que não pode ser senão um bloco de notas. Não é, vê-se bem, uma foto de finais do séc. XIX, mas antes produto de IA ou foto tratada de outra forma para parecer antiga. E curiosamente, não foi produzida para a história de Bosco Chance, mas para um conto de ficção científica, A mulher do futuro, de outro escritor brasileiro, Philipe Kling David, que se pode ler no site do autor


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Ópera, borracha e Amazonas em banda desenhada: o oitavo capítulo das aventuras de Dieter Lumpen (um conjunto de contos gráficos do argumentista Jorge Zentner e do desenhador Rubén Pellejero) também gira em torno de uma fictícia cantora de ópera francesa, de nome Magda e apelido desconhecido, que teria atuado em 1907 no Teatro Amazonas em Manaus. 

Magda apaixona-se por um homem local, Paulino, e ele por ela, e decidem que ele irá com ela quando ela voltar a França. Em Paris, Paulino é vítima de um ataque racista, por ousar andar com uma branca, e perde todos os dentes. Magda oferece-lhe uma dentadura de ouro. Paulino vive em permanente insegurança e, apesar do seu amor por Magda, decide voltar à Amazónia. Magda, que nunca o esquece, conta a sua história de amor à sua neta, Magda ela também, e, no leito de morte, fá-la prometer que irá a Manaus e procurará Paulino. Magda assim faz e, com a ajuda de um velho aventureiro local chamado Mauro, vai até ao local isolado no meio da mata amazónica onde Paulino mora. Não quis voltar à vida social. Quarenta anos depois de ter deixado Paris, Paulino continua igual. Magda tem fotos dele que a sua avó lhe dera. A dentadura de ouro, símbolo de um grande amor, mantém-no jovem. E Paulino não pode deixar de ver nela, que se parece muito com a avó, a sua amada de há quarenta anos. Quando Magda parte, Paulino deita fora a dentadura de ouro — pode agora envelhecer em paz.

Mauro vive num barco abandonando na selva. O barco chama-se, ao que consigo ler, «Guimarães» e é bem capaz de ter sido inspirado por um dos três barcos usados nas filmagens de Fitzcarraldo. Em baixo, à direita, a foto de outro deles, abandonado na mata (foto de Eugen Lehle, daqui).

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Em 1996, estreou-se a ópera Florencia en el Amazonas, do compositor Daniel Catán. A palavra cauchu não aparece uma única vez no libreto da ópera (de Marcela Fuentes-Beráin, que podem ler aqui – atenção, tem pequenas gralhas), mas nem por isso deixa de ser uma obra sobre ópera, borracha e Amazonas: a personagem principal é uma cantora de ópera a caminho do Teatro Amazonas, onde não se chega a saber se atua ou não. Eis um pequeno resumo da história da peça:

No início do séc. XX, Florencia Grimaldi, uma cantora de ópera, embarca na cidade colombiana de Leticia, na fronteira com o Peru e o Brasil, no vapor El Dorado que ruma a Manaus, onde irá cantar. Não é essa, porém, o mais importante motivo da sua viagem: Florencia está farta da vida de artista famosa na Europa e quer voltar às suas origens na Amazónia — e procurar Cristóbal, o famoso caçador de borboletas, o seu amor de juventude, de quem se separara para seguir a sua carreira de cantora de ópera. Porém, durante a viagem, cheia de perigos e fantásticas peripécias, é-lhe revelado que ninguém sabe de Cristóbal há muitos anos — está desaparecido na mata amazónica. Quando chegam a Manaus, não lhes é dada licença para desembarcar, por causa de um surto de cólera que assola a cidade. Na ária final, Florencia invoca Cristóbal, que teme nunca voltar a ver. E vê-se (em sonho?; na realidade?) transformada numa Musa Esmeralda, a borboleta «única no mundo» que Cristóbal sempre quis encontrar.

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Não consigo encontrar nenhuma borboleta chamada Musa Esmeralda. Encontro, porém, uma borboleta conhecida como borboleta-esmeralda, que se encontra desde o leste da Colômbia até à parte central do Brasil – e, portanto, no estado do Amazonas. A borboleta foi descrita pela primeira vez em 1912, pelo que podemos divertir-nos a imaginar que Cristóbal tinha ouvido falar dela e a procurava, mas que alguém a descobriu antes dele... (Foto de Didier Descouens, daqui


No vídeo abaixo, a ária final («Escúchame, Cristóbal»). Pode ver-se aqui a ópera completa pela Orquesta Sinfónica Mexiquense (mais informação aqui), com legendas com o libreto em castelhano.

Ailyn Pérez com a orquestra da Metropolitan Opera, dirigida por Yannick Nézet-Séguin (ensaio, temporada 2023–24).


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Breve nota sobre cólera: Este texto quase podia ser sobre ópera, borracha, Amazonas... e cólera. Em duas das quatro histórias aqui reunidas, a cólera é um elemento importante – como o foi de facto no Brasil, e em todo o mundo, na época da borracha. Na terceira pandemia (1846–1860), a doença entrou no Brasil por Belém, vinda de Portugal, em 1855. A quarta e quinta pandemias (1863–1875 e 1881–1896, respetivamente) também assolaram o Brasil. A sexta pandemia (1899–1923) não chegou à América, pelo que o surto da história de Florencia há de ser... local. 


Canções que referem outras canções 11: “And the Band Played Waltzing Mathilda” e “Waltzing Matilda”

 

Waltzing Matilda”, escrita por Marie Cowan e Banjo Paterson em finais do séc. XIX e gravada pela primeira vez em 1926 por John Collinson e Russell Callow, é uma das mais famosas canções australianas, muito provavelmente a mais famosa. O título pode sugerir, a quem não conheça a letra, que se trata de uma canção de amor, mas é de facto uma canção sobre o suicídio de um trabalhador rural itinerante — um maltês, como se dizia antigamente em Portugal — apanhado pela polícia depois de roubar uma ovelha para comer. To waltz, «valsar», significa aqui precisamente andar a pé de trabalho temporário em trabalho temporário e matilda é calão para a trouxa levada ao ombro. A expressão vem do alemão, onde (ainda hoje) se usa Walz para referir os anos de aprendizagem itinerante de trabalhadores manuais de vários grémios profissionais, facilmente reconhecíveis pelos seus trajes. 

Once a jolly swagman camped by a billabong
Under the shade of a coolabah tree
And he sang as he watched and waited 'til his billy boiled
"You'll come a-waltzing Matilda with me"
Down came a jumbuck to drink at the billabong
Up jumped the swagman and grabbed him with glee
And he sang as he stowed that jumbuck in his tucker bag
"You'll come a-waltzing Matilda with me"
Up rode the squatter, mounted on his thoroughbred
Up rode the troopers, one, two, three
With that jolly jumbuck you've got in your tucker bag
You'll come a-waltzing Matilda with me
Up jumped the swagman and sprang into the billabong
"You'll never take me alive, " said he
And his ghost may be heard as you pass by that billabong
You'll come a-waltzing Matilda with me

 

“And the Band Played Waltzing Mathilda” é uma canção de Eric Bogle, escrita em 1971, mas que ele só viria a gravar ao vivo em 1977 (depois de a canção já ter sido gravada por outros intérpretes) e em estúdio em 1980.

Eric Bogle nasceu na Escócia e emigrou para a Austrália aos 25 anos, pelo que conserva, pelo menos em parte, o seu sotaque escocês, mas é sem dúvida à Austrália que a primeira pessoa da canção se refere quando diz «o meu país». A canção fala da primeira guerra mundial e, mais concretamente, da campanha de Gallipoli, quando forças britânicas, francesas e russas atacaram a Turquia otomana, aliada dos alemães, para tentar controlar o estreito dos Dardanelos. Morreram nessa campanha cerca de 12.000 dos cerca de 65.000 soldados do exército conjunto da Austrália e Nova Zelândia que participaram na campanha, tendo ficado feridos cerca de 20.000. No total, morreram mais de 56.000 soldados aliados e um número semelhante de soldados otomanos, com mais cerca de 140.000 feridos aliados e 100.000 otomanos.  A canção de Bogle expõe a desgraça e a futilidade da guerra. A personagem principal, que antes percorrera a Austrália de «matilda» ao ombro, perdeu na guerra ambas as pernas e não pode voltar a «valsar». E ainda bem, pensa ele, que sou só um vagabundo, que não tenho ninguém na Austrália à minha espera... 

Now when I was a young man, I carried me pack
And I lived the free life of the rover
From the Murray's green basin to the dusty outback
Well, I waltzed my Matilda all over
Then in 1915, my country said “son,
It's time you stopped rambling, there's work to be done”
So they gave me a tin hat, and they gave me a gun
And they marched me away to the war
And the band played Waltzing Matilda
As the ship pulled away from the quay
And amidst all the cheers, the flag-waving and tears
We sailed off for Gallipoli
And how well I remember that terrible day
How our blood stained the sand and the water
And of how in that hell that they called Suvla Bay
We were butchered like lambs at the slaughter
Johnny Turk, he was waiting, he'd primed himself well
He showered us with bullets and he rained us with shell
And in five minutes flat, he'd blown us all to hell
Nearly blew us right back to Australia
But the band played Waltzing Matilda
When we stopped to bury our slain
We buried ours, and the Turks buried theirs
Then we started all over again
And those that were left, well we tried to survive
In that mad world of blood, death and fire
And for ten weary weeks, I kept myself alive
Though around me the corpses piled higher
Then a big Turkish shell knocked me arse over head
And when I woke up in me hospital bed
And saw what it had done, well I wished I was dead
Never knew there was worse things than dyin'
For I'll go no more waltzing Matilda
All around the green bush far and free
To hump tent and pegs, a man needs both legs
No more waltzing Matilda for me
So they gathered the crippled, the wounded, the maimed
And they shipped us back home to Australia
The legless, the armless, the blind, the insane
Those proud wounded heroes of Suvla
And as our ship pulled into Circular Quay
I looked at the place where me legs used to be
And thanked Christ there was nobody waiting for me
To grieve, to mourn, and to pity
But the band played Waltzing Matilda
As they carried us down the gangway
But nobody cheered, they just stood and stared
Then they turned all their faces away
And so now every April, I sit on me porch
And I watch the parades pass before me
And I see my old comrades, how proudly they march
Reviving old dreams of past glories
And the old men march slowly, old bones stiff and sore
They're tired old heroes from a forgotten war
And the young people ask, “what are they marching for?

And I ask myself the same question
But the band plays Waltzing Matilda
And the old men still answer the call
But as year follows year, more old men disappear
Someday no one will march there at all
Waltzing Matilda, Waltzing Matilda
Who'll come a-waltzing Matilda with me?
And their ghosts may be heard
As they march by that billabong
Who'll come a-waltzing Matilda with me?

Ponho aqui uma interpretação ao vivo de 2009:

 


PS: Conheço também uma canção de Tom Waits que refere a famosa canção australiana e incorpora também partes do refrão: “Tom Traubert's Blues (Four Sheets to the Wind in Copenhagen)”, de 1976.  É melhor deixarmos ao autor a explicação desta referência à canção australiana: «Quando se diz waltzing matilda, não é de estar com a namorada que se fala, mas da vida de vagabundo. Era a primeira vez que estava na Europa e sentia-me como um soldado longe de casa, bêbedo pelos cantos, teso, perdido».

 



09/07/25

Edifícios urbanos de habitação: os andares superiores salientes da Idade Média e Renascimento

 

À laia de introdução, quase repito o que aqui escrevi não há muito tempo: as construções antigas que conhecemos são quase sempre castelos, palácios, igrejas, conventos e outros edifícios de grande porte; e, mesmo quando se fala de «casas de habitação antigas» é muitas vezes de palacetes ou solares que se fala e não das casas do povo. Encontram-se às vezes, porém, casas medievais ou renascentistas, sobretudo nas vilas e cidades, que sobreviveram até aos nossos dias, se não completamente inalteradas, pelo menos reconhecíveis, digamos assim. Por muito que muitas delas não sejam, obviamente, das classes mais desfavorecidas e sim de mercadores ou artesãos com mais posses, são, ainda assim, os melhores exemplos de casas de habitação antigas não pertencentes às classes nobres ou eclesiásticas. 

Quando publiquei aqui o artigo sobre as torres fortaleza-armazém que se encontram em várias partes do mundo, comecei a procurar informação sobre casas de habitação antigas e achei curioso que várias das que encontrei, urbanas ou rurais, tivessem em comum terem o primeiro andar, e às vezes os superiores, salientes relativamente ao rés-do chão.

Perguntei a amigos que estudaram arquitetura o porquê dessa forma de construção e as respostas que me deram — conjeturas apenas, disseram-me, porque não conheciam a questão — é que podia ser para obter mais superfície habitável pagando menos impostos, já que estes deviam ser por metro de solo urbano ocupado; ou que talvez fazer recuar os rés-do-chão fosse uma maneira de os proteger das águas sujas lançadas dos andares de cima, numa altura em que não havia sistema de esgotos fechados e só uma sarjeta aberta no meio da rua. E encontrei estas mesmas respostas nalgumas discussões em fóruns online e rede sociais.

Mas não fiquei satisfeito e continuei a pesquisar. E encontrei, no artigo da Wikipédia em francês sobre encorbellement («falso arco», «arco em consolo», «cachorro» ou «mísula», em português), uma secção que extravasa do falso arco em sentido estrito e faz referência às construções típicas das urbes medievais em que os andares superiores são salientes relativamente aos que lhes ficam por baixo. Diz-se nessa secção que «nas cidades europeias, o uso de encorbellement é típico da arquitetura medieval em enxaimel (estruturas de madeira visíveis). Designa o piso superior de um edifício que sobressai sobre uma rua ou praça, de modo que o rés-do-chão tem uma área menor que o primeiro andar, que, por sua vez, tem uma área menor que o segundo, e assim sucessivamente.» Fiquei então a saber que este tipo de construção se designa em francês com o mesmo nome que o falso arco*. Mas não só: o artigo cita uma obra Jean-Marc Larbodière (Le Style des façades. Du Moyen Âge à nos jours, Paris: Massin, 2000), de que se consegue ler online o capítulo respeitante a esta  moda arquitetónica, em que se explicam, precisamente, as suas razões de ser  e o seu desparecimento. O livro é, em princípio, apenas sobre a cidade de Paris, mas creio que o que é dito das casas parisienses se pode também aplicar ao mesmo fenómeno noutras cidades europeias (generalização que o referido artigo da Wikipédia também faz…). Traduzo então a parte que diz respeito a este tipo de construção medieval do capítulo sobre a Idade Média e o século XVI**:

[A] habitação popular medieval ocupa frequentemente toda a largura dos lotes em forma de retângulos estreitos. Esta largura não ultrapassa geralmente a dimensão da divisão única que constitui cada um dos três ou quatro andares. Atrás da casa, virada para o interior do quarteirão, há uma longa horta, se possível com um poço.

O rés-do-chão, também em pedra, tem uma entrada central ladeada por uma ou duas lojas com bancas de pedra para artesãos e comerciantes. Mais acima, embora as paredes laterais sejam muitas vezes de pedra, a pedra desaparece completamente das paredes da empena, viradas para a rua e para o jardim: estas são feitas de placas de madeira sobre uma estrutura de enxaimel à vista, preenchida com pequenas pedras de entulho, ou seja, pedras toscamente cortadas, e massa.

Além disso, pelo menos no final da Idade Média, cada andar fica saliente relativamente ao andar inferior. De tal modo que, quando a rua é estreita, a parte superior do edifício pode ficar muito próxima da do edifício à sua frente do outro lado da rua e situar-se por cima da sarjeta lamacenta que corre no meio da rua.

Geralmente, mas nem sempre, é a empena a fachada principal, virada para a rua […] Isto constitui sem dúvida uma vantagem para os eventuais habitantes dos sótãos, que beneficiam assim de mais luz. Por outro lado, como as casas são construídas perto umas das outras, são as paredes laterais entre os edifícios, que recolhem as águas pluviais, com todos os riscos de humidade persistente e de conflitos entre vizinhos que isso pode gerar.

Muito mais do que o fogo, a água parece ter sido o principal inimigo das habitações parisienses medievais. Mais tarde, as casas mudam de orientação relativamente à rua e a fachada principal deixa de ser a empena: as águas do telhado estarão agora viradas para a rua e para os pátios interiores até à década de 1930. Antes disso, as empenas medievais eram triangulares, por vezes com um vigamento arredondado, e as coberturas dos edifícios eram de telhas ou de tabuinhas de madeira***. Preferiam-se telhas, porém, por serem mais resistentes.

Porquê andares superiores salientes?

Há muito tempo que estamos habituados a edifícios verticais e é difícil compreender a razão de ser destes andares salientes. As razões são essencialmente técnicas.

De facto, montar pilares da madeira duma altura de três ou quatro andares, havendo, a cada nível, juntas de entalhe onde encaixam as vigas horizontais da fachada e as vigas laterais, enfraquece consideravelmente o conjunto, uma vez que cada um desses pilares é assim transformado numa espécie de queijo suíço, onde se pode acumular humidade, apodrecendo lentamente a madeira e comprometendo a solidez do edifício. Com a construção em andares salientes, os pilares não têm mais de um andar de altura.

Há outra razão técnica importante. Os carpinteiros trabalham andar por andar, pelo que podem assim fazer as juntas de entalhe no chão, antes de içarem toda a estrutura de madeira para o seu lugar.

Por fim, compreende-se que os andares salientes protegem da chuva as madeiras não rebocadas, as juntas de entalhe e as próprias paredes. Estas são aliás, devido à sua construção, extremamente vulneráveis às intempéries se não tiveram nenhuma proteção eficaz contra elas.

Muitas vantagens, portanto. Mas também alguns inconvenientes, que levaram a que este tipo de construção fosse proibido em várias ocasiões […] A razão da proibição prende-se com o facto de contribuírem muito para transformar as ruas da Idade Média numa espécie de fossas escuras e malcheirosas, onde nunca entravam nem aragem nem sol, propícias à fermentação de toda a espécie de dejetos e à rápida propagação de epidemias. Se juntarmos a isto o risco de propagação de incêndios, é fácil compreender porque é que vários reis […] legislaram contra esta tão prática construção com andares salientes.

Parece que temos assim uma explicação mais sólida que as aventadas pelos meus amigos e que eu tinha também encontrado em fóruns na Internet. Que os moradores dos rés-do-chão ficassem mais protegidos dos dejetos lançados dos andares superiores parece ser mais um efeito lateral positivo do que um motivo para se construir dessa maneira. Quanto à hipótese dos impostos, tudo o que consegui encontrar online indica que os impostos sobre a propriedade fundiária só foram instituídos no séc. XVIII. 

Tenho visto na Internet muitas fotografias de casas do fim da Idade Média ou do Renascimento de toda a Europa e há muitas que, com maior ou menor desvio, cabem na descrição de Jean-Marc Larbodière. Evidentemente, os modelos de casa variavam de terra para terra, nalguns sítios com andares superiores mais proeminentes que outros, e talvez nalguns sítios as construções com andares superiores salientes tenham surgido ou desparecido mais tarde que em Paris. Não posso assegurar que as casas das imagens que se seguem (todas elas de licença de publicação Creative Commons) não tenham sido sujeitas a significativas alteração desde a sua construção. A maior parte delas são de praças ou ruas largas e não encontrei exemplares de casas muito antigas em ruas estreitas com esgotos a céu aberto que o texto refere. Há, pois, que fazer algum esforço de imaginação para as visualizar em ruelas suficientemente estreitas para que os andares superiores dos dois lados da rua quase se tocassem. A algumas delas, talvez as razões apresentadas para a maior área dos andares superiores não se apliquem bem, não sei. Creio que dão, ainda assim, uma ideia do que foi a construção de habitação nas cidades europeias e ilustram bem esta maneira, talvez surpreendente para nós hoje, de construir os andares superiores salientes.   

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Uma casa de enxaimel com os dois andares superiores salientes. A casa foi construída em 1543 e está situada em Castle Square, na cidade de  Lincoln, em Inglaterra. Foi sujeita a obras de restauro no séc. XX e é atualmente edifício classificado. (Foto de Brian, daqui)

Na região do Lincolnshire (e em muitas outras regiões do Reino Unido) podem encontrar-se várias casas mais ou da mesma época, com este tipo de construção, umas com a fachada principal na empena e outras no lado dos beirais (ver aqui, por exemplo). Neste caso, a casa parece ter duas entradas principais, mas não sei se será uma alteração mais recente. 




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A Kirchplatz na cidade de Hannoversch Münden, na Baixa Saxónia, na Alemanha. (Foto de Thomas Robbins, daqui.) Aqui já temos casas de mais andares, todos eles salientes relativamente aos inferiores, mas com fachadas principais diferentes: alguns com os lados dos beirais viradas para a rua e águas-furtadas, outros com a empena virada para a rua. 

Ao que consigo ver, as muitas casas de enxaimel de Hann. Münden datam de entre fins do séc. XV e fins do séc. XVI. Podem fazer uma visita guiada pelas casas de enxaimel aqui ou aqui, por exemplo.

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Casa com fachada de madeira na Jan Breidelstraat, em Gante, na Bélgica. (Foto de Marc Ryckaert, daqui.) Mais uma casa com a empena como fachada principal e os andares superiores salientes. O facto de as paredes laterais serem de tijolo não significa que a estrutura da casa não seja de madeira. A casa data do séc. XVI e é considerada monumento. Para mais fotos da Jan Breidelstraat, ver aqui, por exemplo. 

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Duas casas em enxaimel com andares superiores salientes, na Place 1830, em Quintin, França. (Foto de Llann Wé, daqui.) A casa da direita está classificada como monumento histórico de França. A outra, não sei.

De notar, em ambas as casas, uma estrutura de pedra (parede?, só coluna exterior?), que acompanha as saliências do primeiro e segundo andar.

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Uma casa medieval na Rue Daurade, em Cahors, França. (Foto de Krzysztof Golik, daqui.) O edifício é do séc. XIV (algumas fontes dizem até fins do séc. XIII) e é, portanto, o mais antigo que aqui mostro.

O segundo andar é pouco saliente em relação ao primeiro, que é, esse, bastante saliente em relação ao rés-do-chão. O edifício ilustra claramente o método de construção descrito por Larbodière no texto acima referido. Veem-se bem as duas «gaiolas» independentes sobrepostas assentando a inferior em pilares de pedra. Alguns elementos, como as janelas grandes, são seguramente mais modernos e é de notar que o enchimento original das paredes com pedras toscas e argamassa foi aqui e ali substituído por tijolo burro. É difícil perceber, nas dezenas de fotografias que há desta casa na Internet, como é o telhado, mas creio que é piramidal, de quatro águas pouco inclinadas. 




Post scriptum lisboeta: 

Queixava-me a uma amiga, aqui há uns tempos, da dificuldade que tenho em descobrir casas antigas nas cidades portuguesas. «No resto da Europa é fácil», dizia eu, «pelas estruturas de madeira: as casas mais antigas são de enxaimel à vista, saltam aos olhos dos transeuntes. Mas em Portugal, como as casas são todas rebocadas, é mais difícil.»

Isto é muito provavelmente uma simplificação grosseira, até porque vem de alguém que não percebe nada do assunto. É bem capaz de haver casas antigas por toda a Europa sem as estruturas de madeira visíveis, não sei. Aqui na Dinamarca, porém, é certo que as casas todas mais antigas são sempre de enxaimel. (Podem ver aqui algumas delas.) E na minha Lisboa natal?

As casas mais comummente referidas online como as mais antigas de Lisboa são uma da Rua dos Cegos, em Alfama, e várias outras da zona da Achada (Rua, Beco e Largo da Achada...) na Mouraria.

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À esquerda, o número 20-22 da Rua dos Cegos. Lê-se muitas vezes que é do séc. XVI, mas não consegui confirmar essa informação em fontes fiáveis. A foto é de Google maps. Ao centro, a Rua da Achada, e, à direita, o Beco de São Francisco ao Largo da Achada. Estas duas últimas fotos são de Machado e Souza e datam de entre 1898 e 1908 (Arquivo Municipal de Lisboa). No arquivo da CML, diz-se que a casa da Rua da Achada é do séc. XV, sublinhando as portas e janelas ogivais. (Mais sobre a achada no blogue Paixão por Lisboa.)

Não deixa de ser curioso que, nas casas mais antigas de Lisboa, os primeiros andares também sobressaiam em relação ao andar térreo – por muitos os pisos superiores, quando há mais que um, não sobressaiam relativamente ao primeiro andar. Terão estas casas também uma estrutura de madeira escondida ou serão todas de pedra? Talvez alguém que leia este este texto me saiba esclarecer.  


 

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* Não se faz referência a este tipo de edifícios nos artigos sobre falsos arcos noutras línguas, pelo que presumo que é só em francês que se usa uma mesma designação, encorbellement, para o arco falso e este tipo de construção. Não consegui encontrar, em português, a designação para esta construção com andares superiores salientes, pelo que descrevo aqui esta característica arquitetónica sem usar uma designação específica. Agradeço, é claro, qualquer esclarecimento sobre esta questão.

** Não conhecia algum do vocabulário técnico usado (tive de usar dicionários) e nem sempre é fácil encontrar o termo correspondente em português. Seja como for, este texto destina-se a pessoas como eu, sem conhecimentos técnicos de arquitetura, pelo que tentei traduzi-lo de ume forma compreensível para todos e não de uma forma tecnicamente correta, o que, de qualquer forma, não saberia fazer. Mas agradecem-se, naturalmente, todos os esclarecimentos sobre os termos técnicos corretos em português.

*** Estas tábuas, que são talhadas em vez de serem serradas, podem ter muitos nomes em francês (pelo menos, aisseaux, aissendres, aissis, bardeaux, essaules, essaunes e essentes), mas não consegui encontrar nenhum termo em português.