21/12/18

Boas Festas!


Que o Natal é uma quadra
parece-me a mim bem dito,
que sextilha do Natal
soa mal, fica esquisito.

(Talvez cestinha, isso sim,
ou talvez antes cabaz,
como aqueles que havia
nos meus tempos de rapaz...) 

É então essa a razão,
percebem vossemecês?,
de irem os versos aos quatro
e não aos cinco ou aos três... 

Mas já chega de conversa,
vamos ao essencial:
um Natal muito feliz
nesta quadra do Natal!



15/12/18

Salada de couve

Há quarenta anos (xiii!, já?) escrevi uma letra chamada «Iss’é qu’é p’ciso blues», que um amigo meu depois musicou, mas que nunca ninguém chegou a gravar. Era uma lengalenga muito comprida, em versos também muito compridos (redondilha dupla, quem já viu uma coisa assim?), que descrevia um dia da minha vida de jovem frique suburbano. Dizia assim uma das estrofes da coisa:
‘Tava com fome, fui comer, fiz ‘ma salada de couve,
a minha avó chamou-m’maluco, qu’eu ‘tava sempre a indear.
Eu chamei-lhe ignorante. «’Tá bem», disse ela, «mas ouve,
Vai mas é fazer a cama, qu’a tua mãe ‘tá a chegar.»
Indear era palavra da minha avó. Acho que era uma amálgama de idear com índio: «inventar coisas exóticas, disparatadas…» A salada de couve era uma das inovações que tinha trazido das minhas viagens. Ao contrário de outras extravagâncias minhas, a minha avó nunca a adotou. E eu também a fui esquecendo.

Lembro-me muito bem de um agradável reencontro com a salada de couve num bar americano, algures nas Caraíbas, onde comi uma das melhores sandes da minha vida: coleslaw, a tal salada de couve, com corned beef, muita e cortada em fatias muito fininhas, com mostarda e molho de rábano, num excelente pão de centeio torrado (uma variação da sandes Reuben). Mas foi em Moçambique que a salada de couve se tornou um elemento constante da nossa alimentação. Importada dos países vizinhos em tempos de escassez de alimentos, a salada de couve passou a fazer da dieta de muitos moçambicanos – e da nossa.

Que mais? O que de mais importante há para dizer sobre a salada de couve, di-lo Louis Jordan na canção que vos deixo aqui mais abaixo: «Coleslaw … is just cabbage raw». É isso mesmo: seja no Arkansas ou lá onde for, é só couve crua. Mas pode desenvolver-se um pouco o assunto:

Use-se repolho ou couve coração-de-boi. De preferência, esta última, para o meu gosto. Não é que não se possa usar outra couve, mas não é a mesma coisa. Corte-se a couve em tiras muito fininhas, quanto mais fininhas, melhor. Aconselho tirar as partes grossas do centro da couve. É claro, tem de se usar uma faca de cozinha grande (normal, enfim, mas sei que há quem tenha a mania de facas pequenas…) ou então uma faca de pão, também, funciona bem.


A coleslaw propriamente dita costuma ser uma mistura de couve e cenoura ralada com maionese, mas cá em casa é raro comer-se dessa salada de couve. Normalmente, temperamos a couve cortada com azeite, vinagre balsâmico e sal, e fica assim a cozer um bocadinho no tempero. Cuidado com o sal, que a couve encolhe muito e, se uma pessoa não conta com isso, pode a salada ficar salgada. Depois, antes de servir, junta-se o que se quiser. Muitas vezes, usamos nozes, cortadas grosseiramente, e passas de arandos. Também é bom polpa de toranja aos bocados, depois de muito bem limpinha daquelas peles grossas que a envolvem. Mas, como se costuma dizer, a imaginação é o único limite.

Agora, a rainha das saladas de couve é, para mim, a salada de couve com manga e caju. Não é uma salada barata, pelo menos aqui na Dinamarca, mas vale a pena. Usem manga verde. Quer dizer, verde-verde não, mas meio verde — ainda firme e sem sumo, pronto. Podem cortá-la às tirinhas fininhas ou em lâminas também muito fininhas (feitas, por exemplo, com o descascador de batatas). O caju, escusam de o cortar.

Se a couve trabalha muito no estômago? Há quem diga que sim, um bocadinho. Paciência.

Louis Jordan, “Coles Slaw”, 1949


22/11/18

Outono [Crónicas de Svendborg #30]

Aqui na Dinamarca – e seguramente noutros países – o conceito de estação do ano é um pouco diferente daquele que temos em Portugal – e também noutros países, claro está. Em Portugal, temos uma maneira científica, astronómica, de definir as estações: começam num equinócio e duram até ao solstício seguinte ou começam num solstício e duram até ao equinócio seguinte.

Aqui, não é assim: costuma dizer-se que, em princípio, a primavera começa no início de março, o verão no início de junho e assim sucessivamente. Há também marcas naturais, porém, que assinalam as estações. Diz-se que o aparecimento de Erantis e Galanthus anuncia a primavera, mas há quem diga que são os amentilhos das aveleiras que marcam de facto a sua chegada. O aparecimento das últimas folhas (em carvalhos, olmeiros e tílias) marca o começo do verão. E a queda das últimas folhas marca o início do inverno.

De Santos a Natal, é inverno natural, diz um provérbio português. Também na Dinamarca, acho eu. A foliação das árvores dá-se sempre mais ou menos na mesma altura do ano, porque, além da temperatura, depende em grande parte da quantidade de luz solar, que é sempre a mesma de ano para ano. A queda das folhas também se dá sempre mais ou menos na mesma altura, mas depende também do vento, que pode ou não haver. Este ano, o frio e o vento chegaram tarde e tivemos um outono longo, quase que a respeitar a calendarização tradicional: setembro-outubro-novembro. Vi gente cortar relva em meados de novembro, o que nunca tinha visto nos meus sete anos de Tåsinge. E as árvores tinham ainda, até essa altura, muitas folhas outonais. Só esta semana chegou o vento e a paisagem se invernizou.

Muita gente concorda: se o outono aqui é sempre muito bonito, este ano foi ainda mais bonito do que costuma ser. As fotografias são aqui da nossa aldeia, Troense.







01/11/18

Rua da Rosa

Na Rinchoa, onde cresci, as ruas têm nomes de plantas – árvores e flores: Avenida dos Choupos, Avenida das Acácias, Rua dos Cravos, Rua das Violetas...

A última rua onde morei em Lisboa foi a Rua da Rosa. Aqui onde moro agora, mesmo aqui ao lado, também há uma rua chamada Rosenvej, que, com boa vontade, se pode traduzir por Rua da Rosa. As Ruas da Rosa são como os chapéus dos palermas: há muitas.

Inspirei-me na Teresa O do blogue Diário de Bordo, que lá faz várias coleções, e resolvi fazer uma coleção de Ruas da Rosa. Já vários amigos contribuíram para a minha coleção e toda a gente pode contribuir, se conhecer ou encontrar uma Rua da Rosa e tiver à mão algo com que fotografar.

(Continua – espero eu...)




Lugares e autores, de cima para baixo e da esquerda para a direita: Rosenvej, Troense, Dinamarca, foto minha; Carrer de la Rosa, Barcelona, Espanha, foto minha; Rua da Rosa, Macau, daqui (obrigado, Joana Sant'Ana); Calle de la Rosa, Madrid, foto: Sofia MarSim; Rua da Rosa, Angra do Heroísmo, foto: Guiomar Belo Marques; Rua da Rosa, Caldas da Rainha, foto: José Silva; Rosensgade, Aarhus, Dinamarca, foto: B. Jorge Leitão; Rozengracht, Amesterdão, daqui (obrigado, Wieke Huizing Edinger)

A Sofia MarSim mandou-me outra foto de uma placa mais recente da Calle de la Rosa em Madrid, com um link para uma página que explica o nome: «La calle del Amparo, la travesía de la Comadre y la calle de la Rosa son 3 populares calles del barrio de Lavapiés en el centro de Madrid. Y las 3 le deben su nombre a una partera, comadrona o comadre: Amparo de Granada. // A principios del siglo XVII, en tiempos de Felipe IV, existía en Lavapiés una buena mujer que se ganaba la vida ayudando a otras a traer a sus hijos al mundo. Se trataba de una partera, comadrona o comadre, pues los 3 nombres reciben las mujeres de este oficio tan necesario y socorrido. Y más en aquellas épocas en que la medicina estaba a oscuras y se daba a luz en las casas.» (Ler mais aqui)

30/10/18

De diminutivos e doninhas

...
António Nobre, embora seja muito em inho,
é o grande Só que somos nós,
por isso gosto dele (ai de mim, coitadinho!)
...
Alexandre O’Neill, em «Autocrítica», in Feira Cabisbaixa, 1965

«Sós: assim somos todos nós». Soa bem, podia ser o título ou a primeira linha de um ensaio ou de um poema. Já «Sozinhos: assim somos todos nós» parece que não soa tão bem. Pode ser apenas uma questão de rima e ritmo, mas creio que é também – e sobretudo – uma questão de significado. e sozinho não são bem a mesma coisa, pois não? E é curioso, ninguém pensa em sozinho como sendo o diminutivo de , mas é isso que é – ou, pelo menos, que começou por ser.

Falemos um pouco de inhos: -inho é o mais comum dos vários sufixos ditos diminutivos que há em português. A designação diminutivo, como muitas expressões antigas de gramática, é um bocadinho enganadora. É certo que o -inho pode significar «pequeno», isto é, ser qualificativo e efetivamente diminutivo: «só um golinho para provar», «uma cadeirinha de brinquedo», «uma coisinha de nada», etc. Mas é capaz de não ser o uso mais comum. Muitas vezes, tem um uso – que não sei se se pode chamar modal, mas é um tipo de modal… – que marca uma apreciação: quase sempre, uma apreciação positiva («na caminha é que se está bem», «um vinhinho de primeira»), mas, às vezes, também pode assinalar depreciação («Eh pá, a carinha que ele tem!...» (os dicionários dão conta desse valor depreciativo, por exemplo, em mulherzinha, que constitui entrada própria).

Este uso afetivo do -inho português pode, nalgumas línguas, construir-se com um adjetivo. Em dinamarquês, por exemplo, «mit lille hus», literalmente «a minha pequena casa», pode corresponder exatamente a «a minha casinha» em frases em que não se descreve o seu tamanho, mas se dá antes conta de uma valoração afetiva da casa. Note-se, a propósito, que, ao contrário do que às vezes oiço dizer, a existência e o uso de diminutivos em português não tem nada de especial: os afixos «diminutivos» existem em muitas línguas (em todas as que conheço…), embora possa variar o que a tradição gramatical de cada língua considera «diminutivo». [Eis uma lista de afixos diminutivos em muitas línguas.]

 E depois, há os diminutivos que mais parecem aumentativos. De facto, não são aumentativos no sentido em que casarão ou canzarrão o são, mas marcam antes uma quantificação que, basicamente, significa «completamente»: «não fiz nadinha», «cheguei a casa encharcadinho», «é uma bestinha», «o depósito estava cheiínho», etc.

Às vezes, este uso parece instável sem uma ajudinha. «Está maluquinho» é possível, mas é mais natural «está mesmo maluquinho» ou «está maluquinho de todo», uma coisa assim. É com adjetivos e advérbios que isto se verifica e verifica-se na maior parte dos casos. Às vezes, a entoação e o contexto podem, com alguns destes adjetivinhos ou adverbiozinhos, determinar qual é a tal apreciação modal tão comum nos nomezinhos, se mais ou menos positiva. Por exemplo, «É mesmo parvinho» pode, com contextos e entoações distintas, variar entre o claro despeito («é um perfeita idiota») e uma valorização afetiva de uma tirada jocosa ou humorística.

Agora, é capaz de ser possível fazer uma descrição geral da forma, suficientemente abstrata para explicar os vários usos, mas, se há, não a conheço. E é com certeza muito, muito difícil. A questão é sempre a mesma: um falante nativo do português sabe quando e como usar um -inho, sem nenhuma consciência do que faz, também em frases que nunca ouviu e em situações novas. Para isso, usa, com certeza, ou uma única regra que tem na mente sem sonhar que a tem e que gera todos os usos; ou então, com a mesma inconsciência, uma série de regras para os diferentes usos para as quais a forma está disponível. Agora, saber quais… Estão a ver que a Linguística é, afinal, uma coisa complicada?

***

Uma curiosidade:

Não é só em sozinho que o diminutivo se lexicaliza, isto é, que passa a constituir outra forma que os falantes não reconhecem como simples diminutivo. Sombrinha é outro exemplo. E carrinha, e doninha… Também doninha não é palavra que um falante do português reconheça como diminutivo, mas é de facto essa a sua origem. Em La creación metafórica en el lenguaje (Montevideu: Universidad de la República, 1956), Eugenio Coseriu explica a história da palavra e dos termos para designar a Mustela nivalis noutras línguas próximas da nossa (traduzo eu):
[Uma] razão que determina substituições de signos e, por conseguinte, facilita a difusão (aceitação) das criações, metafóricas ou não, é o chamado «tabu linguístico», quer dizer, o fenómeno pelo qual se evitam certas palavras relacionadas com superstições e crenças, palavras essas que se substituem por empréstimos, eufemismos, circunlóquios, metáforas, antífrases, etc. (...)
Charles Le Brun: Fisionomias inspiradas pela doninha, cerca de 1670, pena.
Museu do Louvre, Paris (daqui
Um exemplo (…) famoso é o da doninha: o termo próprio latino que a designava, mustela (francês antigo mousteile, catalão mustela, provençal mustelo) desapareceu da maioria dos dialetos romances ou só se encontra esporadicamente em zonas muito limitadas (leonês mostolilla, biscainho mustela e musterle, galego mustela), tendo sido substituído por uma série de nomes metafóricos, diminutivos e carinhoso, que revelam o desejo dos falantes de granjear a simpatia do animalejo. A mustela é hoje, conforme os dialetos, a «bela» ou «bonita» (francês belette, piemontês lombardo bellola e benula, veneziano belita, corso bellula, siciliano beḍḍula e espanhol dialetal bilidilla, bonuca, monuca, bunietsa e munietsa) ou uma «senhora», «menina» ou «esposinha» (italiano donnola, português doninha, romeno nevǎstuicǎ, galego donociña donicela, asturiano donecilla); é uma «bela dama» (pirenaico danabere), ou «comadre» (castelhano comadreja, tolosano kumairelo, campidanês abruzo cummatrella e cummarella, romeno cumetrita), ou «nora» (português dialetal norinha); é «dama ou senhora das paredes» (galego dona das paredes, sardo dona de muru) ou «[a que tem cor de] pão e queijo» (aragonês navarro paniquesa, com variantes ou diminutivos noutras zonas de Espanha; anconitano panakašu e panaccacia). E, mais uma vez, o fenómeno é interidiomático, já que também se encontra noutras línguas europeias não românicas: também para os alemães a doninha é uma «jovem senhora» (Jüngferchen) ou um «formoso bichinho» (Schöntierlein), para os ingleses é uma fada (fairy); para os húngaros é uma «pequena dama» ou «esposinha» (menyét), e para os bascos «pão e queijo» (oguigaztai).

23/10/18

«E tu, tu que pensavas?»

Se não escrevo aqui sobre a atualidade política, não é de modo nenhum por desinteresse, mas sobretudo porque, não tendo um conhecimento aprofundado da maior parte das questões que me importam, não creio, sinceramente, ter nada interessante a acrescentar a muito do que leio nos meios de comunicação e nas redes sociais. Abro hoje uma exceção. Preocupa-me muito a evolução política dos últimos anos, com o surgimento, o avanço ou a consolidação de neofascismos em vários países – a perspetiva da eleição de Bolsonaro é aterradora para qualquer pessoa de bom senso – e quero insistir em algumas ideias que, por banais que possam ser, quero repetir, mesmo sem acreditar que tenham qualquer efeito...

Uma é que é preciso lembrarmo-nos constantemente de que a democracia é uma instituição naturalmente frágil. Por muito que tenhamos agora a ilusão de que a democracia é «o normal» – o que não seja democracia até nos parece aberrante, contra natura –, a democracia é, de facto, uma ideia de organização social materializada apenas em muitos poucos tempos e lugares, e está constantemente em perigo. Tem de se fazer alguma coisa para ela ser preservada. Quem vive numa democracia estável, e, nalguns casos, até já muito longa tende muitas vezes a pensar que nunca o seu país aceitará, ou voltará a aceitar, um fascismo.... Mas é pecar por excesso de otimismo. Em muitos países com tradições democráticas surgiram ditaduras em certos períodos históricos. Porque não voltariam a surgir outra vez? As ditaduras não foram banidas de vez, nem nunca serão.
E tu, tu que pensavas?
Que eram tudo águas passadas?
Que esta trágica e mísera história
não se repetiria mais?


Brunori Sas, "L'uomo nero", 2017, ao vivo em 2018

Outra é que às vezes é importante pensar democracia definindo-a pela negativa – uma ausência de ditadura. Se pensarmos na democracia como possibilidade de igual participação de todos na definição de regras e políticas que governam uma sociedade, o que mais importa assegurar constantemente não é que todos participem dessa maneira, mas que ninguém seja excluído dessa participação e que ninguém se dê a si próprio ou a um grupo de pessoas mais prerrogativas que a outros – ou seja, que a possibilidade de participar nunca seja retirada, seja ela usada ou não. É de sublinhar que, dando prioridade à recusa da ditadura, podemos e devemos conservar, como bússola, moral, a ideia do tipo de democracia, de governo, de Estado, que queremos (como muito bem no-lo lembra Eliana Brum
Como resistir em tempos brutos. Um manual para enfrentar as próximas três semanas e transformar luto em verbo», El País, 9.10.2018):
Em momentos de tanta gravidade, como já viveram outros países ao longo da história, tudo o que se pode fazer é ser contra. Contra o autoritarismo. Contra a opressão. Contra a ameaça da ditadura. Contra o extermínio das minorias. Contra o sequestro da liberdade. Mas, mesmo fazendo campanha e votando contra, é preciso jamais perder de vista do que somos a favor.
«Insegurança» e «imigração» são palavras-chave da ascensão dos fascismos. Creio que nisso podemos assentar, como também podemos assentar em que as dimensões reais destes fenómenos variam muito de país para país e em muitos lugares não são problemas reais, mas apenas fantasmas de que a propaganda neofascista se serve – e há sempre muita gente, de várias classes sociais e tradições políticas, a responder bem à retórica do «perigo» que correm o «povo» e a «nação». Ora, os culpados de um problema, real ou inexistente, são sempre os outros. Se o estrangeiro não for suficientemente visível, acusam-se os opositores de estarem ao serviço de potências, de ideologias e de maneiras de viver «estrangeiras», de serem traidores dos «valores essenciais» da pátria – cola-se a etiqueta de uma alteridade criminosa a todos os opositores. Que acabam às vezes por a assumir para se demarcar da conceção de nação e nacionalismo que lhes querem impor. O sufoco que se sente na garganta quando se lê uma frase como a que escreveu uma amiga minha húngara quando se soube o resultado das últimas eleições legislativas no seu país!...
A Hungria é húngara, diz Orbán. Mas minha já não é.
Não se pode abdicar da discussão. Sei bem que é difícil, senão impossível, tentar argumentar com quem não está disposto a aceitar nem argumentos nem factos. Uma pessoa desiste, muitas vezes, antes de começar, só de imaginar a dimensão e a inutilidade da discussão. Por mim falo – ou contra mim, se preferirem. Mas história recente dos avanços de todo o tipo de populismo, sobretudo dos nacionalismos xenófobos, mostra que eles se dão muito bem com a ausência de confronto direto. Não debater com os seus defensores, «para não lhes dar mais visibilidade mediática» ou «para não descer ao seu nível» acaba por resultar em que a mentira e a irracionalidade raivosa se espalhem sem que ninguém as contrarie. Agora, mais difícil que dar permanentemente resposta à desinformação e à incoerência populistas e xenófobas é fazê-lo num tom sereno e o mais cordato possível (como ter uma atitude calma perante a fúria de todas as intolerâncias?), mas é essa a única maneira de se poder ganhar alguma coisa com a discussão. Responder a insulto contra insulto pode ser inevitável em certas ocasiões, mas tem normalmente o efeito perverso de tornar mais empedernido na sua raiva quem acha que o mal do mundo são estrangeiros, homossexuais, feministas, intelectuais e, em geral, quem defenda uma sociedade aberta e tolerante – democrática.

E também não se pode abdicar do direito a criticar governos ou candidatos fascistas ou fascizantes, ou qualquer tipo de totalitarismo, para, como alguns querem, não interferir nas questões internas de um determinado país. A ideia de que cada país tem o governo que quer, ou porque o elegeu ou porque não o depõe, coisa que poderia sempre fazer, é de um simplismo irrazoável que todos os ditadores agradecem – e deixa fundamentalmente de lado, no caso dos ditadores eleitos, o facto de que, ao contrário do que acontece quando não há ditadura, os eleitores não poderem mudar de opinião nas eleições seguintes ou castigarem os eleitos, se estes se desviarem do que defenderam nas suas campanhas. Mas a moral – e, dentro dela, a política – não tem fronteiras territoriais.

19/10/18

Sobre a ilha de Langeland [Crónicas de Svendborg #29), comprimentos, larguras e alturas


Esta imagem e a última:  Wikimedia Commons
Ninguém pergunta a ninguém por que razão a ilha de Langeland se chama assim, porque a resposta parece demasiado óbvia: det lange land significa «a terra comprida» e Langeland chama-se assim porque é comprida.

É certo, mas este «comprida» tem mais que se lhe diga. Langeland tem 52 km de comprimento e 11 km de largura na parte menos estreita. Se tivesse o mesmo comprimento, mas 36 km de largura, muito provavelmente não se chamava Langeland. Langeland significa então «com um comprimento muito maior que a largura». Até se podia chamar Smalleland, «terra estreita».

É sempre assim? Por definição, é assim com o comprimento e a largura, mas a altura tem um valor absoluto, para que não há que ter em conta as outras dimensões. Uma pessoa é alta quando tem dois metros, independentemente de ser gorda ou magra, como é alta uma montanha de 4000 metros, tenha que forma tiver. Curiosamente, a palavra comprido conserva as mesmas propriedades quando se usa para significar «alto» (o que não é muito frequente, mas pode acontecer). O Manel Comprido, um homem que eu conheci em miúdo, provavelmente não se chamaria assim, se fosse gordo. Era mais provável que lhe chamassem antes Manel Grandalhão ou Manel Gigante, ou qualquer coisa desse tipo.

A razão para isto é, creio eu, que a altura está associada à verticalidade, que é uma categoria não relativa, ao passo que comprimento e largura são categorias puramente relacionais: o comprimento só é comprimento, porque é a dimensão maior de uma superfície, faça ela ou não parte de um objeto.

Em português europeu, pode acontecer usar-se a relação entre a altura e a largura para fazer distinções que não se fazem noutras variantes da língua, ou noutras línguas — estou a pensar em tacho e panela, e maçã e pero, os primeiros mais largos que altos e os segundos mais altos que largos.

Tirando isso, Langeland é uma ilha bem bonita. A zona de Bagenkop, no sul da ilha, é boa para observar pássaros – e cavalos bravos. Se se interessarem mais por física que por animais, podem visitar Rudkøbing, a capital da ilha, que é a cidade natal de Hans Christian Ørsted, e podem ver onde é que ele nasceu e meditar sobre a importância das suas descobertas, enquanto contemplam a sua estátua lá muito perto. Mas, independentemente do interesse que se tenha em Ørsted, Rudkøbing é uma cidade muito bonita, que vale mesmo a pena visitar. Outra localidade muito, muito bonita, a cerca de 12 quilómetros de Rudkøbing, é Tranekær.

Deem-me uma apitadela quando cá vierem, boa viagem e boas férias.


































Alfinetes de ama

Vocês sabem que eu nem sou nada purista, mas... alfinete de dama? Alfinete de ama, isso sim, como, aliás, épingle à nourrice em francês ou spilla da balia em italiano.  E sim, eu sei que alguns dicionários já registam alfinete de dama e fazem muito bem, se há de facto muita gente a dizer assim. Mas não gosto, não há nada a fazer...

Duas marcas de automóveis tiveram a mesma ideia de usar o alfinete de ama na sua publicidade. Ora, não me parece que seja o objeto propriamente dito que suscita a ideia de segurança, mas sim o seu nome em várias línguas (safety pin, sikkerhedsnål, Sicherheitsnadeln, etc), de maneira que, em quem, como eu, pensa em fraldas e punks quando vê a imagem do alfinete, o anúncio não tem exatamente o efeito pretendido...

É certo que não tenho direitos sobre as imagens, mas achei que as podia aqui utilizar, por se tratar de um texto de caráter obviamente didático – sobre ícones que afinal o não são –  e, além do mais, de publicidade gratuita (pelo menos, para a marca da direita, a outra não é imediatamente reconhecível...).

18/10/18

Agulhas e alfinetes e a Lei do Segundo Pesado

O linguista francês Claude Hagège enuncia, no seu livro L’homme de paroles (Paris: Fayard, 1985) uma lei a que chama a Lei do Segundo Pesado, segundo a qual, numa sequência de um par de termos da mesma natureza e com a mesma função, como mais ou menos ou tal pai, tal filho, etc., aparece «em segunda posição o termo mais pesado, isto é, aquele que tem um maior número de sílabas, ou as consoantes ou vogais mais longas ou mais posteriores, ou as consoantes com um espectro acústico que apresente as mais fortes concentrações nas frequências baixas», independentemente do que pareça ser a sequência natural das noções em questão[1].

Uma organização natural e universal de certas sequências sonoras da linguagem humana pode explicar, por exemplo, que, em português, francês, e dinamarquês se diga, respetivamente, mais ou menos, plus ou moins ou mere eller mindre e em neerlandês e urdu se diga min of meer e بیش کم و (/kɘm o béš/), «menos ou mais»; que em português, francês e dinamarquês se diga mais cedo ou mais tarde, tôt ou tard e før eller senere, mas em castelhano se diga tarde o temprano.

Na realidade, as coisas não são assim tão simples. Aliás, o próprio Hagège constata várias exceções e explica que a sua lei é de facto uma tendência e não uma verdadeira lei (embora prefira chamar-lhe lei por razões de ordem prática: «porque uma formulação estrita facilita a invalidação se se encontrar um maior número de não aplicações»). Eu preferiria, por a considerar insuficientemente provada, chamar-lhe apenas uma (boa) hipótese. Se é verdade que se aplica bem a regra a soap and water e a água e sabão e a girls and boys e a rapazes e raparigas, já as coisas são menos claras se falamos, por exemplo, de higiene e saneamento: embora esta ordem tenha mais ocorrências em Google, saneamento e higiene ocorre muito – e sanitation and hygiene parece claramente ser a ordem preferida em inglês. Além de que há muitos casos em que a lógica não fonética parece sobrepor-se sempre à tendência do segundo mais pesado: dizemos sempre o princípio e o fim, por exemplo, por muito que o princípio seja foneticamente muito mais pesado que o fim, porque o princípio vem mesmo antes do fim (pelo menos fora de universos muito psicadélicos e em certos delírio para mim infelizmente incompreensíveis diz-que-quânticos-ou-lá-o-que-é…); e dizemos cinco ou seis minutos, cinco ou dez minutos, e nunca ao contrário[2], porque é essa a ordem de grandeza dos números… 

De facto, parece haver muitas condicionantes não fonéticas que podem agir sobre os pares de termos. Duas regras gerais para a ordem das palavras numa frase que podem também agir sobre os pares são que a sequência das palavras deve corresponder 1) à sequência dos eventos no mundo, como em «o princípio e o fim» ou «vim, vi e venci» (fala-se então de iconicidade), e 2) à proximidade, no tempo ou no espaço, de quem diz a frase, ou seja, à proximidade de «eu», como em «cá e lá», «isto e aquilo» e «hoje e amanhã», por exemplo (fala-se neste caso de indexicalidade). William Cooper e John Ross listam – para o inglês apenas, mas alguns princípios têm um alcance seguramente mais vasto – 22 condicionantes da ordem dos pares de palavras, embora algumas delas tenham pouca relevância. Eles próprios propõem uma condicionante fonológica de contraste curto/longo, que é semelhante à lei de Hagège e que pode explicar as exceções que notam na sua proposta de 22 condicionantes: não havendo outras condicionantes a atuar, past and present e dead or alive, por exemplo, deviam ser, segundo as suas propostas, present and past e alive or dead) [4][5]. Evidentemente, é difícil saber o que há de universal na lista de Cooper & Ross e o que é culturalmente determinado. 

***

Em 2010, Phillipe Mérigot fez, para a sua tese de doutoramento, um estudo em que analisa os efeitos da transgressão Lei do Segundo Pesado na publicidade e comunicação, testando experimentalmente «os efeitos da transgressão da Lei do Segundo Pesado na memorização e reconhecimento de anúncios e a atitude para com o anúncio em dois estudos de laboratório» e ainda examinando «os efeitos sobre o impacto de uma campanha de envio de e-mail real, manipulando a linha de assunto de um e-mail comercial enviado a 88.000 consumidores.»

Provar-se a hipótese de Hagège pode ter implicações curiosas, e não só nos domínios da propaganda e da comunicação para um fim determinado. Pode pensar-se o que significaria a constatação de um mecanismo mental inato dessa natureza para a perceção do literário – a perceção da força e da beleza da palavra como arte. Falei aqui na Travessa de uma pessoa a quem ouvi dizer que, «se Camões tivesse escrito «aquela leda e triste madrugada», em vez de «aquela triste e leda madrugada», teríamos não só uma banalidade semântica como uma banalidade fonética»; e comentava que «a ideia de quem disse isso é (…) que há uma ordem natural nos elementos do discurso, [rompendo o poeta] essa ordem natural para reorganizar o mundo numa voz única, sua apenas». Segundo a hipótese do Segundo Pesado, o segundo elemento da coordenação leda e triste é mais pesado e, por isso, esta sequência é mais natural; além disso, é também mais natural, segundo a proposta de Cooper e Ross, que o elemento positivo venha antes do elemento negativo. Triste e leda seria «desviante», para o dizer de uma forma simplificada, mas será o desviante mais atraente? 

O estudo que refiro procura, precisamente, dar resposta a este tipo de interrogações – se bem que não analise o discurso literário, mas sim as mensagens publicitárias, em sentido lato. Ora, alguns estudos da comunicação publicitária constatam que quanto mais tempo se demorar na leitura de uma mensagem, mais bem memorizada ela é, como pode parecer óbvio aliás. Assim, seria de prever que uma ordem menos natural faça aumentar o tempo dedicado à leitura e, ao mesmo tempo, a atenção que se presta à frase, o que resultaria em melhor memorização/reconhecimento da mensagem. Os resultados dos testes parecem indicar que a inversão simples da ordem que, segundo a hipótese do segundo pesado, seria a mais «natural» não tem efeitos por aí além na receção da mensagem – a não ser que essa inversão se faça em expressões fixas, isto é, expressões que não foram criadas pela pessoa que escreve o texto, mas existem já na sua cultura como forma cristalizada – como tal pai, tal filho, para voltar a um exemplo já referido, ou a preto e branco ou à grande e à francesa, etc.. Diz o resumo do trabalho: 
Os resultados mostram que a transgressão da [Lei do Segundo Pesado] afeta a memorização e o reconhecimento apenas no caso de expressões fixas. No que respeita à [atitude para com o anúncio], o nosso estudo mostra que a transgressão da [Lei do Segundo Pesado] resulta numa tensão que deve ser resolvida no final da mensagem. Além disso, quando uma mensagem contém várias frases transgredindo a [Lei do Segundo Pesado] é sentida como menos irritante, menos aborrecida e mais fiável.
Note-se que esta última frase se deve ler como «em comparação com mensagens em que só há uma transgressão dessa ordem». Ou seja, não parece haver neste estudo nada que confirme o efeito positivo do «desvio» na perceção – nem que o infirme. Mas também é um estudo só, com 93 pessoas. A conclusão é a habitual: são precisos mais estudos sobre o assunto – se alguém achar que é coisa que valha a pena estudar… 

agulhas e alfinetes

Em inglês, quando se fala de agulhas e alfinetes, diz-se às vezes pins and needles, de acordo com a Lei do Segundo Pesado, e outras vezes needles and pins. É esta última forma «irregular» que dá o título a uma famosa canção de Jack Nitzsche e Sonny Bono gravada originalmente por Jackie DeShannon em 1963. Se calhar, a inversão torna a expressão mais apelativa. Já pins and needles é o nome corrente da doença parestesia. É difícil saber qual é, atualmente, a influência do título da canção e do nome da doença na escolha da ordem das duas palavras, quando usadas para referir apenas… agulhas e alfinetes. 


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[1] Já referi, aliás, esta lei num texto da Travessa, especulando que, se a lei não se aplicasse apenas a pares de nomes mas também a conjuntos de três, se podia também explicar porque se diz stone, paper, scissors em inglês (como em português), mas sten, saks, papir («pedra, tesoura, papel») em dinamarquês. 
[2] Nunca? Não sei, alguém me disse uma vez que, na Venezuela, ouvia frequentemente as pessoas trocarem a ordem «normal» em sequências e números, como em diez o cinco minutos
[3] Ver aqui um resumo da discussão e uma análise das restrições propostas que valida estatisticamente 12 delas. 
[4] Um outro exemplo, seria ladies and gentlemen, mas parece-me que a questão se complica aqui um pouco. A quinta condicionante da proposta de Cooper e Ross é que o masculino vem antes do feminino (husband and wife, brother and sister). Se é certo que o poder dos homens nas sociedades patriarcais pode bem explicar esta ordem, também é certo que esse mesmo domínio masculino se reflete às vezes em cavalheirismo: «as senhoras primeiro!» Creio que essa atitude patriarcal e o facto de ela se aplicar mais facilmente a «senhoras» que a mulheres (esposas) ou irmãs pode explicar a diferença entre ladies and gentlemen e husband and wife.
[5] Também se costuma propor, pelo menos para o inglês, uma ordem relativamente fixa da adjetivação múltipla, no caso de não se querer destacar nenhum dos adjetivos: 1 opinião, 2 tamanho, 3 características físicas, 4 forma, 5 idade, 6 cor, 7 origem, 8 material, 9 tipo e 10 qualidade (ver aqui) Trata-se evidentemente, de uma questão completamente diferente. Se a trago a esta nota de rodapé, porém, é só porque me parece interessante constatar que não conheço, neste caso, propostas de uma motivação fonética da sequência natural dos adjetivos, uma coisa que talvez se pudesse esperar… 

16/10/18

Sopa de feijão

«Sopa, sopa, sopa, sopa de feijão», canta-se muitas vezes cá em casa, com a música dos patinhos que sabem bem nadar, «Faz bem à barrigui-inha e aquece o coração». De feijão, já aqui falei, mas de sopa de feijão nunca, e é tema interessante. Vamos então à sopa de feijão. A uma receita de sopa de feijão, seja.

Aprendi esta receita, vejam lá vocês, num livro da escola — da Alliance Française — teria pouco mais de 20 anos. É claro, sopa de feijão branco nunca tem muito que se lhe diga, mas esta é ligeiramente diferente da que se costuma fazer em Portugal, porque é com o feijão inteiro. Quer dizer, o feijão pode desfazer-se um bocadinho com a cozedura, isso depende, mas é uma sopa sem fazer puré.

Põe-se a cozer feijão branco com um bocado de bacon ou outro bocado de carne de porco que vos convenha e agrade, e vai-se escumando – escumar é muito importante para o sabor! Quando o feijão já está quase cozido, aí pelos 45/60 minutos de cozedura, deita-se-lhe os legumes cortados aos pedaços – pequenos cubos de meio centímetro de aresta, uma coisa assim. Batata e cenoura, ponho sempre, mas, de resto, uma pessoa põe o que tem em casa, não é?, não há receita muito fixa. Pode pôr-se talo de aipo, alho francês, uma raiz qualquer (bolbo de aipo, nabo, cherovia…) e alguma couve branca (repolho, coração-de-boi, lombarda…).

No fim, quando está tudo cozido, ligo a sopa: numa frigideira, derreto um bocado de manteiga com farinha, e deito a mistura na sopa. Quando ferve, está a farinha cozida e pode servir-se – com um bocadinho de bacon em cada prato. Esta mistura de farinha e manteiga dá à sopa um sabor cremoso. É um processo comum em muitos lados para engrossar sopas sem fazer puré, mas a minha avó não conhecia e por isso é que tive de aprender no tal livro da escola...

Uma alternativa com resultados semelhantes é estufar os legumes num tacho, salpicá-los depois com um bocadinho de farinha, dar-lhe umas voltas para a farinha se incorporar no estufado, juntar-lhe o feijão previamente cozido e água da cozedura, e deixar ficar ali um bocado a apurar.

Agora, eu gosto de bastante pimenta na sopa de feijão, não sei o vosso lado.


Quanto a mister Coleman Hawkins, tinha a alcunha de Bean e tinha sopa própria.

 Coleman Hawkins and his Orchestra, “Bean soup”, 1945


15/10/18

Nascut al Born o a altre lloc (sobre Barcelona em particular e o turismo em geral)

São as vantagens de ter muito boa pronúncia: a senhora do café pensa que eu sou espanhol e pensa, por isso, que eu sei de onde ele é. E é meio verdade—sei reconhecer à légua o sotaque do Río de la Plata, embora não saiba distinguir uruguaios de argentinos. Mas espanhol não sou. Sou turista, como os outros todos que enchem as ruas de Barcelona. Faço parte dessa praga.

Não há mal nenhum em ser turista, deixemo-nos de conversas; e, por muito que alguns se empenhem em afirmar o contrário, não há diferença real entre turista e viajante – ambos os termos referem quem passa nalgum lugar, quem observa com olhos que veem o que o residente não vê, quem sente menos o peso da pressão social e abusa até, de vez em quando, da liberdade que isso lhe dá, para o bem e para o mal; quem recolhe imagens e sons e cheiros que arquiva em álbuns de recordações, o mais das vezes apenas no ficheiro tão perecível—pobres de nós!—do seu sistema nervoso.

Turista ou viajante não se pode explicar como «estrangeiro». Estrangeiro é o que tem outra nacionalidade, mas o estrangeiro pode fazer parte do local, não estar ali a viajar, a fazer turismo – pode pagar impostos e ter cartão de saúde. E há turistas que não são estrangeiros, há-os que vêm apenas de outra província, talvez até de uma cidade vizinha. Um turista pode saber o nome de muitos bolos na montra da pastelaria, mas talvez não espere que lhes perguntem se quer a empada aquecida, porque isso se calhar não se faz lá na terra dele. «Ah, mas deve ser [deve ser, ele não tem a certeza] porque a senhora do bar é argentina.»

[Não sei como serão as empadas em Salta—e também não sei porque é que a senhora havia de ser de Salta, mas havia cafés na Bolívia, onde comia empadas salteñas quentes e davam-nos uma colher de café para comer o molho: trinca-se uma ponta, come-se com a colherzinha o líquido que sai e depois é que se leva a empada à boca. Na Bolívia, fui residente estrangeiro e turista só nalguns lugares: em Rurrenabaque e em Guayaramerín, uma vez que lá fui de férias; ou no Chapare—tirei fotografias da Karen com macacos ao colo, como os turistas costumam tirar.]
A senhora do bar deve antes ser uruguaia. É a tal coisa, não sei distinguir o sotaque argentino do sotaque uruguaio. Mas vende rosca de chicharrones, vejo agora, e isso é um petisco uruguaio, não é? Aqui, enquanto saboreio a empanada, sou ao mesmo tempo turista e estrangeiro. Um dos muitos que há em Barcelona. E na minha Lisboa Natal. O mais engraçado é que eu agora sou, a bem dizer, tão turista em Lisboa como em Barcelona. OK, concedo-vos que exagero um bocadinho, pronto, mas não tanto como possam pensar. É que a Lisboa em que eu não era turista é doutro tempo; e o tempo—deixem-me insistir nisto, que é uma verdade importante—é uma dimensão tão real e tão sólida como as três outras que estruturam o nosso espaço.

Em Svendborg, sou estrangeiro, mas nunca viajante turista. «O centro? O centro é aqui mesmo», explico ao turistas norte-americanos. «A parte antiga…», insistem eles. «Também é aqui. Esta parte da cidade está cheia de edifícios antigos. Cheguem aqui. Veem ali aquela casa? É a mais antiga da cidade, de meados do séc. XVI.» Conheço em Svendborg uma janela decorada com umas miniaturas de plástico que representam uma sessão de strip-tease. Tenho residência na comuna e voto para as autárquicas. Estrangeiro sou, claro, com um sotaque que me denuncia tão imediatamente como a minha fisionomia. Aqui, o sotaque não me denuncia, nem a pinta sulista. É claro que não sou catalão, porque não falo a língua, mas bem que podia ser imigrante de outra parte de Espanha.

Não digam mal de turistas nem de viajantes nem de estrangeiros residentes. É impossível, pensem bem, que haja algum mal em ter-se nascido noutro lugar. «Quer moedas? Tenho o bolso cheio, a ver se me livro delas. Quanto é que lhe devo?»

Um turista austríaco diz-me que gostava de conhecer Lisboa, que ouviu dizer muito bem. «Lisboa é uma bonita cidade, sim, senhor, como há milhares por esse mundo fora. Agora está na moda, tem quase tantos turistas como Barcelona… E de que nos podemos queixar… nós, que também somos turistas?» «Pois, é verdade, mas há turistas e turistas… Há turistas de vários tipos.» A diferença entre turistas bons e maus é como a diferença entre turistas e viajantes—inventada pelos que se querem dar a si mesmo boa consciência, quando não afirmar algum tipo de superioridade. Conheci uma vez em Bordéus, há mais de 40 anos, um vagabundo profissional, esse sim, viajante essencial, porque não tinha casa nem terra a que chamar sua. «Turista em dificuldades, é isso que eu sou. Turista em dificuldades.» Pode ser essa a diferença, o grau de dificuldade. Para quem viaja com dinheiro que chegue para matar a fome e dormir abrigado todas as noites, não há diferença entre viajantes e bons e maus turistas.

Alguns estrangeiros têm algo em comum com os turistas em dificuldades: os estrangeiros em dificuldades. Saem de casa—do prédio onde estamos a morar, no Born—com trouxas muito grandes de peças de artesanato, que abrem nos sítios onde os turistas se concentram e que num ápice voltam a entrouxar quando aparece a polícia.

[Dumba nengue, diz-se em ronga: «confia no pé», que é o que tem de fazer o vendedor furtivo que a polícia persegue; ou chunga moio, como se diz em ndau, «coragem no coração».]
«Não se rouba nada a não ser cigarros para a noite», repetia sempre o Apache aos seus companheiros de turismo em dificuldades. Arranjar que fumar também pode ser difícil para alguns estrangeiros, creio eu. Os três indonésios por que passo interromperam o trabalho para fumar. Sei que são indonésios porque fumam kreteks, aqueles cigarros de tabaco e cravinho que há na Indonésia. Não lhes deve ser fácil encontrá-los em Barcelona. Ou então sim, em Barcelona encontra-se de tudo. Dois deles têm carrinhos de mão e um tem um triciclo de caixa de madeira, em que se vê escrito apenas um URL dos Países Baixos, qualquercoisa.nl... Se calhar, fazem entregas ou transportes para alguma companhia neerlandesa… Isto sou eu a inventar, sei lá o que fazem. Antigamente, as pessoas que faziam transportes e entregas para uma empresa chamavam-se paquetes, não sei se a designação ainda se utiliza. De 1861 a 1949, o que é hoje a Indonésia chamava-se Índias Orientais Neerlandesas.

[Em Moçambique, chama-se tchova-xitaduma aos carrinhos de mão de aluguer para transporte seja lá do que for, de mobílias a materiais de construção. É ronga e significa «empurra que há de pegar»—os moçambicanos gostam muito de fazer pouco das suas próprias dificuldades, para usar a expressão com que o Apache descrevia o tipo de turismo que fazia.]
Os nomes das coisas vão mudando e nem sempre é fácil manter-se atualizado. Outras vezes, os nomes mantêm-se e mudam as coisas que eles designam. O nome Lisboa já não refere exatamente a mesma cidade que conheci em rapaz novo; e Barcelona também mudou muito desde que a vi pela primeira vez, em outubro de 1976 – há 42 anos, quem diria? O tempo é uma dimensão duríssima, tão dura como as pedras das catedrais. Em 1976, havia incomparavelmente menos turistas que agora.
Os turistas de agora—sobretudo se forem desses turistas que se chamam a si próprios viajantes—queixam-se do excesso de turistas e são nisso iguais a muitos residentes, que se queixam também do excesso de turistas. Muitos residentes espanhóis queixam-se também do excesso de residentes estrangeiros e há até residentes estrangeiros que também se queixam do excesso dos estrangeiros que lhes são estrangeiros. Muitos residentes estrangeiros trabalham em bares, restaurantes e lojas para turistas, que parecem ser metade do comércio da cidade. Estranho comércio de decorativas inutilidades. Dito assim, parece depreciativo, mas não tem de o ser: ser inútil e decorativo é uma caraterística da maior parte das obras de arte, não fica mal a nenhuma artesania para turistas ser também inútil e decorativa.

Uma grande oficina de serralharia o ar livre na Sagrada Família – ou o que dela se consegue ver através 
da vedação de metal. As obras continuam, hão de continuar. 
Por que coisas úteis é conhecida Barcelona? Nem o aço de Toledo, os relógios de La Chaux-de-Fonds nem o sal de Aveiro, históricas preciosidades? Haverá ainda quem fume cigarros balsámicos do Dr. Andreu, com que eu tentava combater a asma da minha infância?  Alguém ainda compra Pastillas Juanola, comercializadas, ademais, em castelhano? Barcelona vende Gaudí e Picasso em forma de visitas guiadas, postais e bibelôs.

Estava magnífica, Barcelona, num início de outubro ainda estival. Quando voltar, fico no Poble Sèc ou em Sants, onde não há tantos turistas. Pode ser que da próxima vez me decida finalmente a ir visitar por dentro o Temple Expiatori de la Sagrada Família, todos me garantem que vale mesmo a pena.


22/09/18

Ora... Batatas!

A batata, que todos os europeus hoje consideram tão sua, é coisa que se come há pouco tempo na Europa – e ainda há menos tempo em Portugal que noutros países europeus, onde é um alimento de base já há mais de 200 anos.

Uma coisa que é engraçada no planalto andino, de onde as batatas são nativas, é observar-se a variedade de batatas que por lá há e que na Europa não se conhecem (embora também haja na Europa batatas muito exóticas). Costuma ser assim, não é? – no centro genético de um ser vivo, a variação é maior que nos sítios para onde ele depois se deslocou ou foi levado.

As três fotos da esquerda são de variedades andinas, mas a foto da direita é de uma variedade francesa, a Vitelotte. Todas as fotos deste artigo: Wikimedia Commons. 


Dois tipos de pisa-batatas, um utensílio
que, não sei porquê, falta em muitas 
cozinhas portuguesas,
A maior parte dos dinamarqueses comem muita batata, sobretudo cozida. Cá em casa, come-se menos que na maior parte dos outros lares, mas come-se, claro, apesar de tudo: cozida às vezes; outras vezes, salteada; às vezes em puré; muito raramente, no forno. Batatas fritas, se as fizer uma vez ao ano, é muito. Ah, estava-me a esquecer, gostamos de rösti, e faço às vezes.

De batatas cozidas e de batatas salteadas, não digo nada, porque não há nada a dizer. Relativamente ao puré, dou-vos dois pequenos conselhos: que não façam puré nem com máquinas nem com passe-vite, porque o acho melhor só esmagado com um pisa-batatas – ou simplesmente com uma chávena ou um garfo; e que não tenham medo de juntar à batata outro legume que tenham à mão; conseguem-se misturas saborosas com abóboras, curgetes, bróculos, cenouras, sei lá, muitas coisas. É uma coisa que neerlandeses e belgas fazem muito, mas eles também misturam com a batata couves e endívias, o que cá, em casa, não costumamos fazer.

Interlúdio musical: 
Ian Dury and the Blockheads, "Mash it up Harry", 1998,
uma cantiga sobre gente e batatas (?)



Batatas assadas no forno são fixes, com murros ou sem eles. Por aqui, como noutros países da Europa central e do norte, compram-se batatas muito grandes para assar no forno. Uma batata por pessoa já dá, se não se for muito glutão. Depois de assadas com casca, abre-se-lhes uma fenda longitudinal, que se enche de manteiga. Não é nada mau.

As batatas Hasselback têm o nome do restaurante de Estocolmo,
onde, em 1953, foram inventadas por by Leif Elisson
Outro tipo completamente diferente de batatas assadas são as batatas Hasselback, que eu também faço muito raramente. Se virem uma depressão oval numa tábua de cortar e se interrogarem para que serve, eis aqui a resposta: para fatiar uma batata (ou outra coisa...) sem a cortar de lado a lado. Não é que não se possa fazer sem ter uma tábua dessas, mas dá mais trabalho.

Os franceses e os belgas disputam, como se sabe, a invenção da batata frita (eis um resumo da discussão, em francês). Na falta de certezas, assentemos que nasceu algures entre Paris e Bruxelas, pronto, e não devemos andar longe da verdade. O que é importante saber sobre as batatas fritas é que têm de ser fritas em óleo limpo e sem muito sabor, e que têm sempre de ser fritas em duas vezes. É só isso.

Rösti é uma receita suíça, como quase se adivinha quando se ouve o nome (quando acaba em i, ou é suíço, como rösti ou müesli, ou quase suíço, como spätzli, não é?). São batatas raladas e depois salteadas, às vezes com bacon ou salsa, às vezes sem nada, que parecem quase um pastelão de ovos, porque o amido da batata aglutina as raspas.

Há várias maneiras de fazer rösti, é só escolherem a que mais vos agrada – ou convém. Uma maneira comum é cozer as batatas e deixá-las no frigorífico de um dia para o outro antes de as ralar (ver aqui), mas também há quem rale as batatas cruas. Eu, muitas vezes, nem uma coisa nem outra: entalo-as sem as cozer completamente e depois é que as ralo e salteio. Claro, em não estando completamente cozidas, têm de se saltear mais tempo com lume mais brando – não há nada pior que batatas mal cozidas… Agora, ultimamente, tenho feito mais uma variante menos clássica, que fica também muito boa: Ralo as batatas cruas na lâmina de ralar mais fina do robô de cozinha (com certeza que também se pode fazer à mão com um ralador muito fininho, mas nunca fiz), depois junto-lhe alho muito picadinho (aí uns três dentes por quilo de batatas), sal, mexo tudo muito bem, escorro a água que as batatas deitam e salteio depois. Os suíços haveriam de considerar um crime esta falta de ortodoxia, mas a verdade é que fica bom e, em cozinha, conta sempre mais o sabor que a tradição.

Bom proveito!

09/09/18

Breve defesa de um ateísta

O epilóbio-eriçado (Epilobium hirsutum ) dispersando semente. Foto de Colin, 2012, Wikimedia Communs, daqui
A propósito de um texto de Hans Magnus Enzensberger publicado em El País em julho último (“Breve defensa de un agnóstico”, pouco mais de 1400 palavras), quero esclarecer aqui algumas ideias simples do ateísmo – ou, pelo menos da parte dele com que me identifico, porque não creio que haja alguma postura concertada dos ateístas. 



Hans Magnus Enzensberger assume-se como agnóstico. Não sente inclinação para a fé, mas não pode deixar de assumir a sua bagagem cultural cristã (traduzo eu todas as citações):
Que se saiba, ninguém, nem sequer um suíço ou um sueco, consegue livrar-se da bagagem histórica que traz consigo. Uma parte desse legado e dessa carga, arrastamo-la connosco através da religião. Uma fada bondosa privou-me do talento para a fé no monoteísmo. Os deuses são tantos que a escolha é dolorosa. Os gregos e os romanos acompanham-nos no céu e nos dias da semana, e as tradições egípcias e asiáticas, de Tutancámon a Buda, também não desapareceram por completo. (...)
Por isso, para mim o ateísmo não é uma opção, mas sim uma ideia fixa. Não quero pertencer a esse club. Em geral, custa-me decidir-me por una filiação. Faltam-me dotes para ser um colega de fiar. Naturalmente, haverá quem considere isto una carência. (…)
O agnosticismo tem numerosos prós e contras. Permite-nos mover-nos com maior liberdade e não temos de submeter-nos a toda o tipo de preceitos concebidos por qualquer instituição. Libertar-se da disciplina do partido ou da Igreja em questão pode ser um alívio, e mais ainda se se trata dos entraves de uma ideologia política. O inconveniente é que o agnóstico não chega a de pertencer a nada.  
Estou completamente de acordo com o primeiro parágrafo citado acima*. Ninguém com um mínimo de autoconhecimento e honestidade negaria o peso que a religião tem na sua cultura. Mas como é que a consciência desse legado histórico pode levar quem não abraça uma religião a preterir o ateísmo a favor do agnosticismo? O «por isso»  que sublinhei é, no mínimo, muito estranho. Como é que uma coisa causa – ou implica, se quiserem – a outra? A consciência da parte fundamental que ocupa o cristianismo na sua cultura não é modo algum razão para se ser agnóstico e não ateísta. Enzensberger não explica o «por isso». Pede ao leitor aquilo que muitas vezes se designa como «um salto de fé» ou um «salto de confiança». O leitor ateísta** e atento recusa-lhe esse salto. Aquele «por isso» cabe mal numa argumentação razoada.

É que o ateísmo é uma posição de razoabilidade e, ao contrário do que Enzensberger diz, não é um clube nem uma ideia fixa, nem se assemelha mais a uma igreja ou a um partido que o agnosticismo. Em rigor, um agnóstico não pertence menos a uma instituição que um teísta ou um ateísta – cada um pertence à sua e devia defendê-la com o mesmo empenho e a mesma lógica com que os teólogos medievais debatiam as espinhosas perguntas filosóficas que a si mesmo faziam. Não considero que «A minha fé diz-me que é assim» ou «Não quero pertencer a um clube» sejam fundamentos razoáveis para uma posição relativamente à existência de deuses – impossibilitam a discussão.

***
Talvez haja mesmo quem, como Enzensberger diz, defina a opção do agnóstico como carência. Não sei. Creio que alguns ateístas acusarão os agnósticos de terem escolhido uma posição mais cómoda, menos frontal e, por isso, menos conflituosa, que os ateístas. Pessoalmente, não acredito – até porque conheço agnósticos de grande coragem e frontalidade – que, no geral, haja seja lá o que for de falta de frontalidade no agnosticismo. É de uma divergência filosófica que se trata. O que me parece é antes que o agnosticismo trata a questão da existência de deuses de uma forma parcial, já que, a ter a mesma atitude relativamente a tudo o resto que não é imediatamente observável, há que declarar-se agnóstico em relação a muitas outras coisas não provadas mas altamente prováveis. Os ateístas aplicam a o mesmo princípio a todos os seres e fenómenos: ao que sabemos atualmente, X é provável ou improvável. É só isto. Aquilo que os ateístas defendem é um método de conhecimento feito de observáveis, para poder ser comunicável, isto é, tornado comum – e aquilo em que é mais sensato acreditar, à luz das constatações feitas usando esse método.

Os ateístas, pelo menos os que conheço, não põem em causa a impossibilidade de «saber se existem ou não [deuses], nem que forma têm»***. Os ateístas insistem até amiúde num princípio epistemológico de base, segundo o qual não se pode provar uma não existência a partir de observáveis, pelo que também é impossível afirmar que não existem o Pai Natal, unicórnios azuis e um número infinito de seres e fenómenos. O que os ateístas dizem é tão-só que é altamente improvável, à luz dos conhecimentos atuais, que exista algum ser com as características atribuídas aos seus deuses pelos crentes das diversas religiões; e que a ideia de um criador absoluto de todas as coisas dificulta muito mais a compreensão do universo do que a facilita.

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* Ou quase: a referência aos suíços e aos suecos parece-me incompreensível a não ser, talvez, num quadro de ideias feitas sobre estes povos que eu partilho com Enzensberger.

** Prefiro a palavra ateísta ao termo mais clássico ateu, por várias razões: a) é um termo comum de dois, ou seja, o masculino e o feminino têm a mesma forma, o que é sempre bom – além de que ateia se presta a jogos de palavras de mau gosto; b) o elemento -ista marca a inscrição num -ismo (ateísmo), um sistema de ideias ou crenças, o que não acontece de forma tão clara e direta com o termo ateu; e c) tem um antónimo imediato com a mesma formação, teísta, o que não acontece com ateu, que é uma daquelas palavras construídas com um prefixo de negação de uma palavra inexistente na mesma língua (um dia, hei de falar aqui disto, que é um tema engraçado).

*** Protágoras citado por Enzensberger: «Quanto aos deuses, não tenho meios de saber se existem o não, nem que forma têm. Impedem-mo a obscuridade da questão e a brevidade da vida humana».

28/08/18

Verosimilhança a duas dimensões

Quando se olha para o desenho acima, além de se notar logo que não foi feito pelo melhor ilustrador do mundo (este desenho o desenho abaixo são meus e foram feitos propositadamente para este texto de blogue), há algo que nos parece errado: tronco e pernas parecem-nos desproporcionados, a perna esquerda dos calções é-nos incompreensível, e a perna e o pé esquerdos parecem estar num aposição completamente impossível. No desenho abaixo, esses «erros» foram «corrigidos» e tudo nos parece mais normal.
Henri Cartier-Bresson (1908-2004) Rue Mouffetard, 1954.
P
onho uma versão pequena da foto, para fins didáticos, digamos
assim, porque a fotografia não é do domínio público, mas podem
vê-la com maior definição por exemplo neste site de leilões.
No entanto, o primeiro desenho está correto e o segundo é que tem erros. Os desenhos foram tirados da fotografia de Henri Cartier-Bresson que podem ver aqui à esquerda e as «correções» do segundo desenho foram inventadas por mim . Provavelmente, não há nenhum ângulo de que o rapaz se possa ver como eu o desenhei na segunda foto e as sombras que inventei são impossíveis. Mas não chocam o olho.

É curioso. Quando se fixa a duas dimensões um pedaço de realidade, há representações imediatas (no sentido original de «sem mediação») da perspetiva com que lidamos mal, ao passo que aceitamos sem problema perspetivas que não correspondem a nada no mundo real. Os ilustradores sabem isto – banem conscientemente certas perspetivas reais e usam outras que parecem bem, mas são irreais.

Notem que não se pode inferir daqui nenhuma desadequação geral dos sentidos à realidade, mas apenas uma esporádica desadequação dos sentidos à representação bidimensional. Mesmo que seja em fotografia. A fotografia de Henri Cartier-Bresson de que aqui falo é estranha. É claro, o realismo inerente à fotografia faz-nos aceitar como real a perspetiva que nos apresenta, ao contrário do que acontece com o desenho nela baseado – mas não deixa de ser estranha... Se estivéssemos onde ela foi tirada e víssemos a cena precisamente daquele ângulo mas a três dimensões, já nada nos pareceria estranho, não é verdade?

25/08/18

Coco, matapa, mucapata e galinha à zambeziana

A verdade é esta: comer (morfar, dar ao serrote, mandar para a blusa ou como queiram dizer, enfim…) é a atividade mais importante da vida das pessoas, voilà! É certo que, a partir de uma certa idade, o sexo compete com a comezaina, mas nunca lhe tira o primeiro lugar…

Agora, se o comer em si não tem muito que se lhe diga (é só não se esquecer de fechar a boca quando se mastiga, que senão parece mal...), já o fazer a paparoca é assunto vasto e que interessa muita gente, não é verdade? E parece impossível que, sendo das coisas que faço todos os dias, e com gosto!, fale aqui tão pouco de culinária. Está mal. A ver se começo a dar mais receitas, dicas ou conselhos de cozinha, ou, pelo menos, a falar de come e bebes. Hoje, deixo-vos três receitas moçambicanas. Se não as conhecerem, experimentem, que são naices; se já conhecem, vejam lá se as minhas receitas coincidem com o que conhecem. Mas antes, como as três receitas que vos proponho levam todas coco, deixem-me falar um pouco do coco, que é uma fruta interessante.

Coco 
O coqueiro é uma palmeira, que é uma coisa que parece uma árvore, mas não é. Mas como é de comida e de não botânica que se trata, fica essa conversa para outra altura, sim? A fruta do coqueiro é o coco, que é o que aqui nos interessa.

Sobre o nome do fruto, uma curiosidade: Parece que o nome do fruto, semelhante em várias línguas, vem do nome de uma antiga entidade fantástica portuguesa, que era usada para assustar crianças – ou seja, o equivalente do moderno papão ou homem do saco. É esta a origem proposta, por exemplo, pela Real Academia Espanhola. Descobri na Wikipédia que João de Barros «conta» esta origem na terceira das suas Décadas da Ásia (1563):
Um fantasmagórico coco (Wikimedia Commons)
Tem mais este pomo tão proveitoso outra casca de mui duro páo , per cima da qual ficam os finaes daquelles nervos , e fios da outra , á maneira do entre-casco da sovereira ou (por melhor dizer ) á maneira de huma noz descuberta da casca verde. Esta casca per onde aquelle pomo recebe o nutrimento vegetavel , que he pelo pé , tem huma maneira aguda , que quer semelhar o nariz posto entre dous olhos redondos , per onde elle lança os grellos , quando quer nascer : por razão da qual figura , sem ser figura , os nossos lhe chamáram coco , nome imposto pelas mulheres a qualquer cousa , com que querem fazer medo ás crianças , o qual nome assi lhe ficou , que ninguem lhe sabe outro, fendo o seu proprio , como lhe os Malabares chamam, Tenga, e os Canarijs, Narle.
É claro, pode agora discutir-se de onde vem o nome da aventesma, como o faz Joan Coromines, por exemplo, mas, como é de comida e não de etimologia que se trata, fica também isso para outra vez. E sobre cocos e coqueiros acrescento que:
   • a parte dura (o caroço) do fruto está envolta numas fibras chamadas cairo, que têm várias utilidades;
   • em Moçambique chama-se cafurro à casca dura do coco, que é usada como lenha;
   • a polpa seca do coco chama-se copra e é dela que se faz o óleo de coco;
   • a folha do coqueiro e outras palmeiras, trançada ou não, usa-se como cobertura de casas – é conhecida em Moçambique com o nome de macute, macúti ou macubar; e
   • da seiva do coqueiro faz-se uma bebida (alcoólica) chamada sura em Moçambique, que, para o meu gosto, é fixe quando está pouco fermentada e menos fixe quando fermenta muito.
E por agora chega – mas quem queira saber mais pode ver aqui mais usos dos cocos e dos coqueiros.

Leite de coco 
Passamos agora à parte mais propriamente culinária. Quando o coco é jovem, chama-se lanho. Só mais tarde ganha o nome de coco mesmo coco. Para se saber se um coco ainda é lanho ou já é coco, abana-se. Se não chocalhar, é porque está completamente cheio de água – é lanho e a água é boa para beber, mas a polpa não presta para fazer leite de coco. Se a quantidade de água já tiver diminuído lá dentro e, por isso, chocalhar, já é coco – a água não é tão boa, mas a polpa pode usar-se para cozinhar. O leite de coco é simples de fazer, mas dá algum trabalho:
Em Moçambique, usa-se um ralo, que é mais prático que um ralador, mas, 
claro, poucos serão os leitores deste texto que tenham uma coisa dessas…
Abre-se um coco, tira-se a polpa branca e rala-se com um ralador. Põe-se a polpa ralada dentro de água acabada de ferver e coa-se com um passador. Pode repetir-se a operação e pode espremer-se bem a polpa do coco no passador com uma colher.

É só isto. Agora, não estejam à espera que o leite de coco cheire logo muito: ele só começa a cheirar mesmo depois de cozinhado. Não havendo cocos à mão, pode comprar-se leite de coco já feito, em lata – não é a mesma coisa, claro está, mas também fica bem.


Matapa
Bom, há matapa com vários ingredientes e várias grafias, mas não quero aqui discutir se a verdadeira matapa é a de folhas de mandioca e só é matapa se levar amendoim e camarão seco. Se não quiserem chamar matapa ao prato de que aqui dou a receita, pois muito bem (saberá bem com qualquer nome, como a rosa do outro…), mas é esse o nome que lhe dá a minha amiga moçambicana com que o aprendi a fazer. Leva cebola, alho, óleo ou azeite, tomate, folhas de abóbora (jovens, tenrinhas, que não sejam ainda muito fibrosas), coco e sal.

Primeiro, faz se um refogado normal, com cebola e alho. À parte entalam-se as folhas de abóbora. Depois, picam-se as folhas e juntam-se ao refogado. Junta-se em seguida o tomate, pelado e picado. Enquanto a hortaliça apura, prepara-se o leite de coco, que depois se junta ao resto. Deixa-se cozer tudo muito tempo e pronto, é grande petisco!

«E não se pode substituir as folhas de abóbora por outra coisa qualquer, porque folhas de abóbora tenrinhas não se arranjam em lado nenhum?» Podem usar espinafres ou acelgas. De preferência acelgas, porque o espinafre tem muito sabor… a espinafre. Também fica bom.

Mucapata
Feijão-soloco com casca (Wikimedia commons) e
um saco de feijão-soloco já descascado.
A designação Phaseolus aureus é incorreta.
Mucapata é um acompanhamento moçambicano muito fixe e muito fácil de fazer: é só cozer arroz com leite de coco e com uma leguminosa chamada em Moçambique feijão-soloco (ou soroco ou holoco, com agá pronunciado), cujo nome técnico é Vigna radiata. Há quem ponha duas porções de arroz para uma de feijão-soloco, há quem faça metade-metade; há quem coza o arroz e o feijão-soloco em água e ponha o leite de coco no fim, há quem coza já com o leite de coco. Eu ponho metade-metade (mais ou menos) e cozo um bocado só com água e depois é que junto o leite de coco e deixo cozer até ficar tudo muito bem cozido. Decidam vocês o que vos agrada mais, depois de experimentar as várias possibilidades. Agora, cuidado, que o arroz e o feijão-soloco cozidos juntos têm tendência a pegar – deixem lá o Facebook para depois do jantar.

«Mas», perguntam agora vocês, «onde se arranja esse tal feijão taralhouco ou lá o que é?» Pois, não sei, mas devem conseguir encontrar numa dessas delikatessen exóticas que há. Aqui em Svenborg, arranjo com facilidade e já descascado – e ainda bem, porque descascar feijão-soloco é uma seca, e mucapata com a casca do feijão, nein danke!

Galinha à zambeziana 
Finalmente, a galinha à zambeziana à minha moda:
Arranja-se, se possível, uma galinha rija, galinha mesmo galinha. Coze-se a galinha em pouca água com leite de coco e uns bocados de cebola e pimento, mas só até estar meio cozida. Depois, pincela-se a galinha com azeite e alho e põe-se a assar na grelha. Vai-se pincelando sempre com o leite de coco (eu agarro na varinha e passo a cebola e o pimento dentro do leite de coco que usei para entalar a galinha, de maneira a que fique uma mistura relativamente espessa) até estar a pele bem tostada. Também se põe piripiri, onde se quiser: no líquido de cozer e pincelar; no frango juntamente com o azeite e alho; ou no prato depois de cozinhado... Quando se usa frango de aviário, como é geralmente muito mole, o mais avisado é não se cozer primeiro, paciência, e pincelar-se só com os temperos e com o leite de coco enquanto se assa.

Bom proveito! E perdoem-me a falta de fotografias dos pratos, mas não quis esperar até à próxima vez que os fizesse para publicar este texto. Enfim, deixo-vos pelo menos um bocadinho de música de fundo para a patuscada.