Já aqui falei uma vez de coelhos e do nome Hispania. Uma das propostas etimológicas para Hispania é que os fenícios, ao encontrarem aí um bicho novo, os coelhos, lhe deram o nome do bicho mais parecido que conheciam, os
damões, e chamaram então à Ibéria i-shapan, «ilha de damões». Ora, independentemente de ser ou não esta a verdadeira origem de Hispania, o processo que ela implica é comum e compreensível: inventar um nome novo para um animal ou uma planta que se descobre é mais trabalhoso que reciclar um nome já existente.
Por exemplo: o
milho (
Zea mays), que é um cereal americano, recebeu em português o nome de um outro tipo de cereais da família Poaceae, hoje conhecidos como
milho miúdo ou
painço, originários de várias partes do mundo e que os portugueses conheciam há muito. Em francês, mantém-se no Canadá a designação de
blé d’Inde, «trigo da Índia» (entendendo-se aqui Índia como Américas, «as Índias Ocidentais»).
Também é curioso pensar que o facto de se usar um nome de um animal ou planta que se conhece para outro animal ou planta «semelhante» que se descobre pode afetar a designação original, se o novo animal ou planta se tornar mais popular que o original. O milho antigo passou a designar-se como miúdo ou painço, quando se divulgou o novo milho, que lhe usurpou o nome
[1]. O mesmo se passou com o peru, animal também americano, a que os espanhóis deram o nome do pavão,
pavo, por com este se parecer, e que passou a ser ele o
pavo propriamente dito, tendo-se acrescentado ao desgraçado do
pavo original o termo
real para o distinguir do usurpador do seu nome.
Outro bom exemplo deste fenómeno é o feijão. O chamado
feijão comum, esse com que se fazem feijoadas, dobradas e sopas de feijão, é o
Phaseolus vulgaris, uma espécie de um género que inclui também a feijoca,
Phaseolus lunatus. Todos os tipos de feijão – branco, encarnado, catarino, preto, manteiga, etc. – são variedades diferentes da mesma espécie e os diversos tipos de
feijão verde são também o mesmo legume: as suas vagens antes de se desenvolverem as sementes
[2]. O feijão comum é originário da América Central e do Sul, pelo que só começou a ser consumido na Europa no séc. XVI.
Já aqui vos falei de feijão e disse que alguns dos nomes que se lhe dão hoje se usavam antes de os europeus o conhecerem, mas para designar outras leguminosas. De facto, ao passar em revista os nomes do feijão na nossa língua e nalgumas línguas mais próximas da nossa, chegamos à conclusão que, dos muitos nomes que o feijão tem, apenas poucos são importados das línguas dos povos que originalmente o cultivavam. Senão vejamos:
Feijão, em português (e
feijoca, claro),
fagiolo, em italiano,
flageolet e
fayot, em francês, e
frijol,
fríjol,
frejol e
fréjol[3], em castelhano, vêm todos do latim
faseŏlus ou
phaseŏlus, que dá o nome botânico ao género, como já referido, e que vem, por sua vez, do grego
φάσηλος (phásēlos), que designa o feijão-frade (
Vigna ungiculata, um legume sem relação com o
Phaseolus). Também o termo
alubia, outro nome do feijão em Espanha, vem de uma palavra persa, لوبیا (lubeyā)
[4], que designa o feijão-frade.
Faba, termo galego e asturiano, vem obviamente do termo latino
faba, que designa a fava
[5] (
Vicia faba, outro legume sem relação com o
Phaseolus).
Habichuela[6] é, claro, um diminutivo de fava, tenha ele sido formado já da
haba castelhana, ou venha de formas anteriores, como uma hipotética
fabichuela moçárabe ou uma
fabicella latina.
O inglês
bean e os seus parentes germânicos, como o neerlandês
boon, alemão
Bohne e o dinamarquês
bønne, estão também etimologicamente relacionados com o latim
faba, «fava», o grego
phakos, «lentilha», e o albanês
bathë, «fava», e
vários outros termos indo-europeus que designam leguminosas euroasiáticas.
Quanto ao termo
judía, que se usa em Espanha, vem provavelmente do etnónimo
judío, mas como e porquê não se sabe… Também ninguém parece saber a origem de
caraota, o nome venezuelano do feijão, nem ter a certeza sobre a origem do francês
haricot. Quer dizer, conhece-se a história de
haricot no sentido de «guisado»
[7], e pensa-se que se deu o nome da preparação culinária ao feijão, por este ser assim preparado, mas há outras propostas
[8].
De maneira que são uma minoria os nomes do feijão nas línguas europeias que foram importados das línguas faladas pelos povos que o domesticaram e cultivavam:
poroto (Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Paraguai Perú, Uruguai), que vem do quéchua
purutu;
ejote, que se usa para o feijão verde (América Central e México) e que vem do nauatle
exōtl, «feijoca»; e
chaucha (Argentina, Paraguai, Uruguai), que parece vir de um termo quéchua que significa «verde, por amadurecer»
[9]. Pois, porque, como eu dizia, é mais fácil dar-se a uma coisa nova um nome de uma coisa que já se conhece…
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Notas
[1] Evidentemente, isto não se passa de repente, longe disso. Durante muito tempo, usaram-se expressões várias para distinguir o novo milho do milho antigo, até que o milho americano passou a ser simplesmente milho, sem mais. Lê-se na entrada Milhom (p. 134) do
Elucidario das palavras, termos, e frases, que em Portugal antiguamente se usárão, e que hoje regularmente se ignorão: obra indispensavel para entender sem erro os documentos mais raros, e preciosos, que entre nós se conservão, de Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo (Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1798)
Em hum Testam. De S. Simão da Junqueira de 1289 se diz: It : a Stevão Joannes de Pera fita, ou a seos heréés, hum quarteiro de milhom. Daqui se poderia inferir, que já então havia em Portugal milho Maíz, ou grosso, a que hoje chamão naquella terra Milhão. Mas a verdade he, que os Antigos punhão muitas vezes m sobre o o ultimo de algumas palavras sem necessidade alguma : v. g. juriom por jurio, &c. E da mesma sorte se disse ali Milhom por Milho, pelo qual se entendeo sempre o milho branco, ou miudo , até que no Sec. XVII. hum certo Paulo de Braga o trouxe á sua terra, vindo da India. Ao principio, dizem, se prohibio o semeallo, e só alguns cultivárão poucos pés nas suas hortas, e jardins. Hoje hé o mais frequente pão naquella Provincia, e lhe chamão Milho Zaburro, Milho grande, Milho graúdo, Milho Maíz, Milhão, ou Milho grosso, e Milho de Maçaroca.
Na entrada Maçaroca (p. 47 do Suplemento ao Eluciário), lê-se o seguinte:
Milho de maçaroca, milho grósso. V. Milhom. No tempo d'El Rei D. João II., e no descubrimento de Guiné, dizem alguns descubrírão os Portuguezes o Milho grosso de maçaroca, donde o trouxerão a Portugal; e que se principiou a cultivar nos campos de Coimbra.
Joaquim de Viterbo não sabia, pois, da origem americana do milho.
[2] Apesar de ser a mesma planta, o feijão verde tem, por vezes, designações diferentes do feijão maduro. Às vezes, acrescenta-se apenas
verde ao nome do feijão, como se faz em
feijão verde,
haricots verts,
judías verdes ou
porotos verdes; às vezes, designam-se como o que de facto são,
vagens (norte de Portugal),
vainitas (Peru); mas às vezes têm a sua palavra própria, como
ejote,
habichuela ou
chaucha.
[3] Frijol e as suas variantes usam-se principalmente no México, na América Central e no Peru. A estranha forma com -r- e terminada em -ol resultaria da contaminação do termo diretamente derivado do
faseolus latino pelo moçárabe
brísol ou
gríjol, «ervilha». O termo francês
flageolet tem origem na palavra italiana e
fayot chega ao francês pelo provençal
faiol ou
fayol.
[4] A palavra chega ao castelhano pelo árabe andaluz
اللُوبِيَا (allúbya), variação do árabe
لُوبِيَاء (lūbiyā).
[5] A palavra latina vem do proto-itálico *
fafā, do protoindo-europeu *
bʰabʰ-, que, além da palavra latina, dá muitas palavras germânicas e eslavas.
No francês canadiano ainda se usa, como em francês antigo, a palavra
fève para designar o feijão comum – palavra que, nas outras variantes do francês moderno, designa apenas a fava.
[6] O termo é usado em Castilla La Mancha, Múrcia, República Dominicana e Porto Rico para designar o feijão comum maduro e na Andaluzia, Canárias, Cuba, Colômbia, Panamá e Venezuela para designar o feijão verde.
[7] O nome
haricot é formado a partir de um verbo antigo,
harigoter, «desfazer, partir ou cortar aos bocados», que viria do frâncico *
hariōn e está relacionado com vários termos germânicos com a ideia de «desfazer, destruir, dar cabo de».
[8] Segundo o
dicionário do Centre Nationale de Ressources Textuelles et Lexicales (um excelente dicionário para quem trabalhe com francês) o mais provável é o nome do legume vir do termo que significa guisado. Considera-se improvável a hipótese da etimologia mexicana (
ayacotli) e recusa-se outra proposta, a de ter origem no topónimo Calicut.
[9] Sobre a etimologia de Chaucha,
diz Valentín Anders no seu site algo que parece razoável (e bastante curioso), para explicar os diversos significados da palavra na América latina (traduzo eu):
É provável que o sentido de chaucha na América do Sul se tenha indo alterando semanticamente à medida que se deslocava para norte, mais ou menos da seguinte forma:
No DRAE, diz-se que vem de um termo quéchua que significa «verde, não amadurecido» e daí que, na Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, signifique «feijão verde» (por amadurecer) e no Chile, «batatas pequenas que não valem a pena comer e são deixadas para semente» (também por amadurecer). Daí, passa ser «algo de pouco valor» no Chile e no Uruguai, «pouco dinheiro» no Chile e, na Argentina, «moedas pequenas, trocos». Mais um passo e já temos o significado do Equador, «um trabalho de pouca importância, um biscate», para completar o salário. E daí que, nas Antilhas, se tenha tornado sinónimo de sustento diário, a comida de cada dia (…).
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Ilustrações: em cima, uma maçaroca de milho. Bernardino de Sahagun, 1577 (Wikimedia Commons, d
aqui); em baixo:
Phaseolus vulgaris no Libri picturati de Carolus Clusius et al., ca. 1600 (Wikimedia Commons, d
aqui)