No fundo, uma rima é tanto mais rica quanto mais difícil for. Com rimas em ‑ão, -ar, -ado e terminações afins, qualquer pessoa é capaz de ser, com um bocadinho de treino, um eficaz repentista. Mas atenção!, não significa isto que se deva, como procedimento padrão, dar roda de foleirice e amadorismo a quaisquer versos de rimas corriqueiras e muitos menos julgar por eles a qualidade de um poema ou a capacidade de versejar do seu autor. Uma vez, já há muito tempo, houve alguém que criticou os versos de um rapaz meu amigo, afirmando que se devia “olhar com desconfiança quem faz rimar sol com anzol” e eu senti-me na obrigação de lhe responder que julgar a pretensa riqueza das rimas é critério inaceitável para avaliar a qualidade de um texto. É que seria, nesse caso, necessário olhar com desconfiança Camões e Bocage, que fizeram ambos rimar flores com amores, e Nobre, Pascoaes e Pessoa, que fizeram rimar dor com amor. Por exemplo... Aliás, continuava eu, sol com anzol não é, por si só, mais pobre do que sol com farol, como rimaram Junqueiro e Nobre, e tem uma digestão mais fácil do que pôr leite a rimar com azeite, como fez Cesário Verde...
Bom, é verdade que leite com azeite, por indigesto que possa parecer, não é uma rima assim tão básica, se tivermos em conta a percentagem de palavras terminadas em ‑eite (talvez já nos pareça mais básica se tivermos em conta a taxa de ocorrência das palavras no discurso em português europeu. não sei…); mas, claro, é pobre se considerarmos sistematicamente pobres as rimas de palavras da mesma classe gramatical.
Curiosamente, a quantidade de palavras com uma determinada terminação não parece ser o único factor a ter em conta para se avaliar a raridade de uma rima. Para dar um exemplo um bocado pateta, não acredito que alguém quisesse apostar comigo que eu não conseguia fazer uma rima em -isne, por muito que a única possibilidade seja, de facto, tisne com cisne, mas apostaram uma vez que eu não conseguia fazer uma rima em -ével e eu ganhei a aposta:
Descobri no outro dia, / Lá p'ròs lados de Pontével, / Que o vinho da minha tia / Deixa uma nódoa indelével.
Por muito que haja mais rimas em -ével do que em -isne (bastava o vinho ser Ével, para passarmos de quadra a quintilha com três rimas em -ével...), a maior parte das pessoas considerará, estou eu convencido, uma rima em -ével mais “rara” do que uma rima em -isne. Mais improvável. Por isso é que, se quisermos ir além dos critérios tradicionais para aferir a raridade de uma rima e pensar em termos de improbabilidade, temos dificuldade em classificar uma rima como oó (escrito “ó, ó” no texto original) com pó de Guerra Junqueiro (“In pulvis”, in Os simples):
(…) Tem o velho ao colo o seu netinho doente; / Morte negra, foge do telhado, ó, ó... / E no lar as brasas simultaneamente / Dizem para o anjo: – tudo é oiro ardente... / Dizem para o velho: – tudo é cinza e pó!... (…) E o bom velho embala o seu netinho doente... / Morte negra, foge... dorme, dorme... ó, ó... / E, fitando as chamas simultaneamente, / Ri-se a creancinha, vendo o oiro ardente, / Lagrimeja o velho, vendo cinza e pó!... (…)
Altamente improvável, se bem que ambas as palavras sejam nomes e façam parte do vocabulário básico de todos os falantes do português. Talvez se devesse ter também em conta até que ponto é que determinadas palavras e/ou o facto de aparecerem juntas numa frase ou num pedaço de texto são, a priori, consideradas poéticas, isto é, fazem parte das expectativas do leitor; mas isto é, obviamente, mais difícil de medir.
Também o conceito de rima preciosa é discutível: Normalmente (diz-nos Ricardo Sérgio, e muito bem, na página citada atrás), chamam-se preciosas «as rimas artificiais, feitas, forjadas com palavras combinadas, tais como: [múmia com resume-a]; [vence-a com sonolência]; [pântanos com quebranta-nos]; e [águia com alague-a], etc.» Mas não será tão preciosa como estas uma surpreendente rima de Cesário Verde, na parte III (Ao gás) do seu “O sentimento de um ocidental”:
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos / Passeios de lajedo arrastam-se as impuras. / Ó moles hospitais! Sai das embocaduras / Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
Foi uma rima muito mal recebida na época. E até nisso se pode, talvez, encontrar marca de preciosidade, porque não é raro serem acusadas de falta de naturalidade ou de gosto (muitas vezes com toda a razão, na minha modesta opinião) as rimas preciosas. Creio que o que choca mais neste caso, porém, é que nos, contracção de em + os, é uma palavra átona. E então, digo eu? É só aos olhos que choca, não ao som, pelo menos se seguirmos a regra clássica de respeitar, na leitura dos poemas, a pontuação e a lógica sintáctica e não fazer paragens nos fim dos versos.
Além disso, mesmo cantando uma melodia em que a acentuação recai no fim do verso, há autores consagrados que não desdenham utilizar palavras átonas para rimar. Brassens, por exemplo (que eu não tenho dúvida em considerar um verdadeiro poeta e não apenas um letrista) usa este procedimento por exemplo no refrão da famosa “La mauvaise réputation” [1]:
Non, les braves gens n’aiment pas que / l’on suive une autre route qu’eux.
Pode até ir-se mais longe e fazer rimar uma palavra com uma parte apenas de outra, translineada. Na maior parte dos casos, pretende-se com isto um efeito humorístico, mas nem sempre. Encontramos mais uma vez em Brassens este processo pouco habitual no refrão da canção “La non-demande en mariage”.
(…) J'ai l'honneur de / Ne pas te de- / Mander ta main / Ne gravons pas / Nos noms au bas / D'un parchemin. // Laissons le champs libre à l'oiseau, / Nous seront tous les deux priso- / Nniers sur parole / Au diable les maîtresses queux / Qui attachent les cœurs aux queues / Des casseroles! // (…) On leur ôte bien des attraits / En dévoilant trop les secrets / De Mélusine. / L'encre des billets doux pâlit / Vite entre les feuillets des li- / Vres de cuisine.
Georges Brassens, "La non-demande en marriage"
Brassens não só usa esta técnica três vezes na canção, como lhe junta ainda, no refrão, o procedimento muito pouco ortodoxo, que referi antes, de usar palavras não acentuadas em fim de verso [2].
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[1] E Pierre Pascal retoma-o na sua versão da canção em castelhano (No, a la gente no gusta que / uno tenga su propia fe), que Paco Ibañez popularizou e que Brassens também gravou.
[2] Depende, evidentmente, de como escrevamos os versos. Se tivermos em conta a melodia da canção, o corte de palavras em fim de verso/frase melódica aparece três vezes. Há quem considere que essas rimas são apenas rimas internas de versos alexandrinos. Segundo a minha interpretação, as estrofes teriam uma métrica 8/8/4/8/8/4; segunda essa outra interpretação, de 8/12/8/12. Mas, mesmo que consideremos que os versos da estrofe são alexandrinos com acentuação na 4ª e 8ª sílaba, pelo menos é óbvia a acentuação de sílabas átonas (Ver, a propósito, o meu texto sobre silabadas aqui na Travessa). Podem ver também uma análise detalhada da canção no site Analyse Brassens.